Notas do julgamento do assassino de Candé: “Trazê-lo de volta do impossível”

A terceira sessão do julgamento do assassino confesso de Bruno Candé, que decorre no Tribunal de Loures, ficou marcada não apenas pela audição de mais seis testemunhas, mas também por uma vigília. Para recordar o actor e exigir Justiça. Vanda Marques da Silva, uma das pessoas que se juntou à acção, e das poucas que puderam entrar na sala de audiências, partilha com o Afrolink as notas do que ouviu, observou e sentiu. “Foi a primeira vez que olhei conscientemente nos olhos nebulosos de um psicopata. Parecia que não havia qualquer abertura, não havia nenhuma janela, havia desconforto, nada conseguia verter cá para fora. Obstrução. Tudo era obstrução”. O testemunho sobre o que se passou no dia 21 de Maio prossegue na primeira pessoa, com notas de edição, assinaladas em itálico e bold.

por Vanda Marques da Silva

Além da imprensa, apenas foram autorizadas oito pessoas para assistirem ao julgamento. Sentámo-nos onde nos indicaram, em lugares que supostamente estavam reservados às forças de segurança. Evaristo Marinho entra algemado, escoltado pela polícia. Oferece prontamente as suas mãos aos guardas para o desalgemarem. Antes de se sentar, olha, apertado em si mesmo, para trás, para ver quem estava na audiência. Foi a primeira vez que olhei conscientemente nos olhos nebulosos de um psicopata. Parecia que não havia qualquer abertura, não havia nenhuma janela, havia desconforto, nada conseguia verter cá para fora. Obstrução. Tudo era obstrução.

O arguido perturbava pela sua banalidade: casaco curto impermeável, de cor caqui, dentro do casaco, no rebordo do pescoço, consegui distinguir uma fita verde-azulada, o forro do casaco num branco mais lágrima que pérola. Aparentemente, parecia tratar-se de um “velhote indefeso”, passaria despercebido em qualquer transporte público, misturava-se facilmente com a multidão. Despenteado. Cabisbaixo. Pequeno de estatura. Os ombros sempre arqueados, como se estivesse a voltar-se para dentro de si mesmo, a trancar-se na introversão e a tornar-se inacessível ao mundo. Continuava reservado, perversamente calmo ou impedido de extravasar o seu interior, nada vertia cá para fora. Nada. Estava num ensimesmamento de ególatra que causou uma cegueira total das suas feições.

A primeira testemunha a ser ouvida foi Mónica Oliveira, actriz, encenadora e amiga de Bruno Candé. Seguiu-se a irmã mais velha do actor, Olga Moreno Araújo. O tribunal ouviu também Maria Alice Costa, esposa do assassino confesso de Candé, bem como David Monteiro Lopes e Ricardo Jorge Monteiro Lima. O primeiro é um mecânico com oficina perto da residência do arguido, o segundo o presidente da Junta de Freguesia de Moscavide e Portela. A terceira sessão do julgamento de Evaristo Marinho incluiu ainda o testemunho de Joana Rita Baeta Costa de Moura, estudante de enfermagem que prestou os primeiros socorros ao actor. Por ouvir ficou uma sétima pessoa, que, por não ter sido notificada, passou para a sessão seguinte, prevista para 18 de Junho.

Mais do que reproduzir o que as testemunhas disseram, e assinalar o que ficou por contar, as notas que se seguem registam também o olhar da observadora Vanda.

Testemunho de Mónica Oliveira, actriz e encenadora

Grande amiga de Bruno Candé, conhecia os filhos, a mãe, as sobrinhas e os irmãos. Era a responsável pelo projecto de reinserção social no estabelecimento do Vale dos Judeus, “Casa Conveniente”, onde o actor tinha sido integrado como profissional. Foram apresentados por Mário Fernandes, do Bairro do Condado.

Pelos relatos de Mónica, recorda-se a vida de Candé. Sabemos que, em adolescente, enquanto estudava na Casa Pia, fez um curso de formação para actores. Ficamos a conhecer algumas das produções em que participou: Macabeth, Primeiro Rufar no coração, Bang Bang, Driving in, Atlas, num currículo com presenças no teatro, cinema e televisão.

Além do actor extraordinário, a encenadora, lembrou o homem: tinha uma grande generosidade, e uma noção forte de família e de unidade; era determinante no estabelecimento de relações pessoais; e possuía uma capacidade inata para destruir o preconceito e criar ligações.

Exaltava-se com facilidade?, quis saber a juíza. “Não”, respondeu Mónica. Bruno tinha um sorriso especial, com uma alegria contagiante. Era impossível não se gostar dele, era muito inteligente e sensível.

No seu testemunho, a actriz referiu também o acidente de bicicleta que afectou a capacidade motora e a memória de Candé, acrescentando que uma das primeiras coisas de que o amigo se recordou foi do primeiro texto que tinha lido no teatro. Sabia-o de cor, sublinhou.

Mónica destacou igualmente a disciplina e perseverança do actor: fazia reabilitação porque esteve sem falar e sem andar após o acidente, e como não conseguia verbalizar tudo o que queria –  faltavam-lhe as palavras devido à perda de memória –, resolveu ler um dicionário de língua portuguesa para se voltar a exprimir. Ao mesmo tempo, andava a tirar apontamentos para o livro que estava a escrever: Os Miseráveis. Nessa rotina, a sua cadela Pepa, com quem passeava diariamente, era presença fundamental.

Foi assim até ao homicídio, mas como terão sido os dias que antecederam o crime?

A pergunta da juíza deixa a amiga abalada. A perturbação de Mónica era bastante visível na voz e na linguagem corporal: baixou a cabeça e mexia com transtorno nas mãos, como se tivesse a tocar num anel. À medida que dizia que não tinha falado com Candé antes do assassinato, abanava a cabeça em negação, como alguém que sente culpa e transtorno por não se ter despedido de uma pessoa que lhe faz falta. Mas como o poderia ter feito se tudo foi inesperado?

Afinal, como se explica a violência, a dor brutal e o sentimento de injustiça?, questionou a juíza. Mónica continuou a abanar a cabeça e respondeu o quanto Bruno faz falta à família, realçando que os filhos vão crescer sem o pai e que a mãe perdeu um filho. Ausências impossíveis de colmatar.

Terminou o depoimento com uma frase que Bruno Candé costumava dizer: “Nasci preto, pobre, dizem que sou feio, mas eu acho que não sou. Tinha tudo para dar errado. Eu sou um milagre. Eu sou Bruno Candé Marques”.

As palavras de Mónica sustinham-me e destroçavam-me a alma.

Testemunho de Olga Moreno Araújo, irmã mais velha de Bruno Candé

Senti um calafrio. Vi a dignidade com que esta Senhora se cruzou com o homicida confesso do irmão. O tremor foi completamente meu, senti agonia ao saber que, devido ao espaço e ao distanciamento, provavelmente por isso, tinha passado a escassos centímetros do arguido. Achei o espaço exíguo e não contive a preocupação pela senhora, nem a ansiedade que eu, Vanda, sentiria ao passar a escassos centímetros daquele assassino.

Perguntaram a Olga como era Bruno Candé com a família.

Era muito amigo dos irmãos e da mãe. Preenchia a família e contagiava com a vivacidade da sua alegria. No período em que esteve na Casa Pia, apenas ia para casa da mãe aos fins-de-semana. Mais ia. Sonhava ser actor e fez um curso no Chapitô. Tinha três filhos, e um grande amor por eles. Por isso, embora fossem de mulheres diferentes, juntava-os e brincava muito com eles. Tinham todos uma relação muito próxima e ainda não conseguem entender que o pai partiu. De tal forma que a filha mais nova, de três anos, fez um desenho para oferecer ao pai, no último Dia do Pai.

Enquanto falava, as palavras de Olga eram entrecortadas por soluços de choro. Dizia sempre “desculpe” quando era tomada pela emoção. A juíza respondia que não tinha de pedir desculpa, que a sua reacção era normal. Apesar da comoção, continuava num discurso solto de quem não se conforma, mas se sente retalhada pela dor, aflição e mágoa.

Contou o quanto a mãe sentiu muito e continua a sentir a morte do filho Bruno – nunca mais teve descanso.  A irmã mais velha de Candé partilhou ainda os planos de levar a progenitora para o Reino Unido, onde ela vive e trabalha.

Continuou dizendo que ninguém conhece a dimensão do seu sofrimento. O irmão não merecia. Lutava muito para realizar os seus sonhos. Se tivesse sido um acidente, provavelmente a família já se teria resignado.

Testemunho de Maria Alice Costa, esposa do arguido

Perante a questão: quer prestar depoimento?, sentou-se e respondeu: “Não tenho nada a dizer, ele sempre foi…”

Interrompida, porque tinha de dizer objectivamente se queria ou não falar, assentiu, e foi a única testemunha que prestou juramento sentada, proferindo um: “Juro, quero…” – as únicas palavras que consegui reter.

A vida de 50 anos de casamento com Evaristo era normal. Têm dois filhos, de 45 e de 48 anos, ambos a viver com os pais.  Um foi apresentado como “doente da cabeça”, sem rendimentos e que só vê televisão, a outra é empregada de escritório.

Sobre si própria, Maria adiantou ser reformada desde os 65 anos. Hoje tem 70, descreve o marido como um homem honesto, que trabalhou numa padaria e foi segurança. No seu dia a dia, o arguido ia às compras e ajudava os filhos. Garante que o marido não era violento, nem nunca lhe ouviu comentários racistas. Basicamente, o assassino confesso de Candé almoçava, descansava um pouco no quarto e às 16 horas dava uma volta a pé. Maria nunca o acompanhava nas caminhadas.

Apesar disso, e mesmo que não fizesse comentários sobre esses passeios – porque não era muito amigo de contar –, a mulher arrisca o itinerário: dava uma volta à Avenida e ia até à Expo. Continua a fazê-lo antes do crime, aparentemente sem alterações de comportamento.

Vinha normal, como ia. Lanchava, fazia as palavras cruzadas. Nunca teve desentendimentos com o marido, e desconhecia que ele tinha uma arma em casa.

“Foi um grande choque, nunca pensei”, garantiu a esposa de Evaristo Marinho, estendendo a admiração a toda a família.

Ninguém esperava.

A má notícia veio da Polícia, e quase um ano depois, Maria continua sem saber porque é que o marido assassinou Bruno Candé. Refere apenas que já lhe perguntou, que ele não respondeu e que nunca mais voltou a questionar.

A mulher do homicida confesso sabe apenas que o marido tinha estado calmo, dentro dos possíveis, e adianta que é a mesma pessoa que está na prisão.

Ao sair, Maria olha para trás, para Evaristo, como quem se despede renitentemente. Ele cabisbaixo.

Testemunho de David Monteiro Lopes,  mecânico

Conhece o arguido há 30 anos, porque tem uma oficina a poucos metros da sua residência. Apesar dessa proximidade, garante que Evaristo não falava muito, só fazia uma saudação. O seu testemunho resume-se a isso: garantiu que nunca o viu em guerras com ninguém, que nunca o ouviu a fazer comentários racistas, mas reconheceu que o assassino confesso de Bruno Candé não exteriorizava muito. Via-o de manhã quando vinha e ia das compras e a interacção não ia além de um: “Bom dia/boa tarde”. Não havia confidências, não havia conversas.

Testemunho de Ricardo Jorge Monteiro Lima, presidente da Junta de Freguesia de Moscavide e Portela

Sabe que Evaristo Marinho vivia no bairro há muito tempo, mas nem lhe conhecia o nome, era apenas uma cara familiar, “um senhor sem notoriedade”. Assinala que o ocorrido foi grave, e que havia várias versões nos comentários de rua. A defesa perguntou se ele era “daquele tipo de munícipes picuinhas que estavam sempre a queixarem-se”. Não, não era, afiançou a testemunha. 

Testemunho de Joana Rita Baeta Costa de Moura, estudante de Enfermagem

Após o juramento e ainda de pé, olhou pertinazmente para trás, para o arguido, só depois é que se sentou.

Conhecia Bruno Candé apenas de vista. Nas folgas do seu estágio, ajudava uns amigos numa mercearia em Moscavide, por mero gosto.

Recorda que o actor ouvia a sua música, tranquilo, com a sua cadelinha.

No dia do assassinato, não assistiu ao tiroteio, mas estava na loja e ouviu os disparos. Saiu com grande cautela, porque estava bastante consciente do perigo e temia pela sua segurança. Embora não tenha sido a primeira pessoa a chegar ao local do crime, foi a primeira a prestar socorro a Bruno Candé.

No seu testemunho, conta que avançou para ajudar a vítima. Mas, mal chego, viu que não havia nada a fazer: sempre que tocava no corpo saía mais sangue. Joana caracterizou a respiração de Bruno Candé como de “gasping”, de alguém que parece lutar pela vida, mas já não está.

Talvez o INEM tenha demorado mais tempo do que o normal, disse,  relembrando a sua condição de estudante de enfermagem numa situação de grande aflição.

Neste momento, o meu pensamento deambulou ao encontro da palavra “gasping”. Mesmo sem saber o significado, pelo contexto consegui imaginar uma respiração de agonia, ineficaz, com espasmos. Não era propriamente uma respiração que imaginava, era apenas um movimento e sons curtos.

Ao regressar deste pensamento, voltei à Joana, que estava a descrever a chegada do INEM. Sim, parecia-lhe que demoraram muito tempo a chegar e a preparar o local, e que deveriam ter socorrido imediatamente Bruno Candé. Mas insistiu no seu papel de “mera estudante de enfermagem”.

E se o INEM tivesse socorrido imediatamente, faria  diferença?, o tribunal quis saber.

Joana respondeu que não. “Gasping”. Voltei a divagar, desta vez sobre aquele acto de coragem da jovem que se contrapunha à insegurança da própria realidade inconcebível com que se defrontou naquele dia. Humildemente, via-se como uma simples estudante de enfermagem. No fundo, ela sabia que tinha agido corretamente, mas eu senti que procurava uma razão para aquela morte, um esforço humano que nenhuma Faculdade oferece. Nas suas palavras transparecia a sua vocação. Cientificamente, agiu de forma correcta, mas o seu lado humano puxava-a para o receio de ter cometido algum erro, como se Bruno Candé pudesse ter sobrevivido. Queria validação.

O seu procedimento tinha sido o correto, não tenhamos dúvidas e Joana, no seu interior, também o sabia. Joana procurava a vida em Bruno Candé, uma vida que não lhe poderia restituir, fizesse o que fizesse. Procurava repetidamente validação do seu humanismo, do porquê daquela morte e o receio pelos seus actos de prestação de cuidados. Essa foi a forma que encontrou para exteriorizar a sua inquietude e aflição por chegar a um local onde a vítima de um assassinato brutal já nem está a lutar pela vida, porque a vida já terá desaparecido, e apenas restam meros resquícios de uma vivência. Quando os olhos estão abertos e já não vêem. Joana procurava algum consolo para aquele martírio e, claro, não o encontrava.

Continuou cheia de presença de espírito a narrar o que recordava daquele dia: viu Evaristo Marinho com um objecto reluzente na mão direita; gritou; ele ainda se encontrava ao seu lado direito; não tinha o auxílio de bengala nenhuma; a sua preocupação focava-se em Bruno Candé e não nesse sujeito. No entanto, identificou o arguido como alguém que se afastou do local do crime, sem apressar o passo, caminhando calmamente. Ainda o viu de costas, ele olhou para trás, mas continuou. O objectivo de Joana era preservar vidas. A preocupação de Joana era Bruno Candé, a existência de Bruno Candé, a presença do corpo de Bruno Candé que jazia no chão, um Bruno Candé presente, mas que já repousava como que dormisse. Foi como se Joana continuasse com a sua persistência para trazê-lo de volta do impossível que lhe aconteceu.