O alfarrabista que saiu da ‘gruta’ para criar a Tchatuvela, uma livraria-conceito

Luís Vieira é o nome do alfarrabista por detrás da Livraria online Tchatuvela, criada com o propósito de despertar o gosto e interesse pela cultura africana, através da literatura, tendo autores negros e africanos como referência. O projecto, já apresentado aqui no Afrolink, a partir do texto de Filipa Bossuet, volta a ser destaque porque amanhã é dia de o conhecermos melhor n’ O Lado Negro da Força, pela voz de Luís, o próximo convidado. 

por Filipa Bossuet

O primeiro contacto que Luís Vieira teve com literatura produzida por autores africanos e negros foi na ‘gruta’, o nome dado, em jeito de brincadeira, à “operação cirúrgica” que desenvolveu durante dois anos.

Nesse período, conta Luís, seleccionou 100 livros por dia, fotografou-os e arrumou-os numa prateleira, que colocou ao alcance dos seguidores da página de Facebook “Leiloamos”, especializada em leilões de obras em segunda mão.

Com a aproximação aos livros, o alfarrabista tomou consciência do seu lugar na sociedade enquanto pessoa negra, e identificou quatro vertentes da literatura africana.

A começar pela ultramarina, caracterizada por “uma abordagem muito saudosista e ideias imperialistas”, que encontrou na selecção de livros realizadas para a “Leiloamos”.

“O que me ficou na memória foi um diário de bordo que dizia algo como: «Nunca deixar um grande grupo de indígenas juntarem-se no porão de um navio porque depois tornam-se insubordinados»”. A pessoa que escreveu o texto, acrescenta Luís, refere que a técnica de controlo passava por arranjar um cão grande para amedrontar os indígenas, prática que o luso-cabo-verdiano define como “extremamente racista e de desumanização”.

A liberdade literária da pessoa negra

Da vertente ultramarina o alfarrabista salta para uma segunda, em que nota uma tentativa de apresentar a identidade do continente africano, mas sempre sem ferir as susceptibilidades das potências coloniais. O terceiro prisma que identificou nesse mergulho literário reflecte a tomada de consciência do negro sobre o seu lugar de subjugação na sociedade, e a luta contra esse lugar.

Já na actualidade, Luís observa que a escrita expressa a liberdade da pessoa negra sobre aquilo que vê, pensa e sente.

“Só nessa fase ganhei noção de que a sociedade não me percebe da mesma maneira que percebe um branco”, afirma o ex-assistente operacional da “Leiloamos”.

Mais do que analisar percepções, o alfabarrista reflecte sobre a desigualdade de oportunidades, lembrando os desafios que teve de ultrapassar, nomeadamente de habitação.

“O facto de ter crescido na Marianas, em Carcavelos, um bairro degradado, uma espécie de ilha onde eu e muitas gerações nasceram e cresceram, é revelador”.

Nesse processo de reflexões e constatações, Luís apercebeu-se que os livros “só eram vendidos para pessoas não-africanas”, reconhecimento que favoreceu a criação da  livraria online Tchatuvela.

O destino como alfarrabista especializado em literatura africana também começou a ganhar forma a partir de conversas com um colega de trabalho, que acompanhou de perto a sua insatisfação.

Tchatuvela, a livraria que valeu a pena esperar 

Na altura, recorda Luís, o colega recomendou-lhe essa via profissional como forma de pagar a licenciatura em Gestão, e não enquanto caminho de resgate da ancestralidade africana.

“Sempre me senti cabo-verdiano e nunca me propus mudar, porque era a minha zona de conforto, não havia conflito. Mas isso trazia-me a identidade que não me era reconhecida em Portugal”.

Em busca de pertenças, o fundador da Tchatuvela encontrou, aos 18 anos, um lugar na cultura afro-americana, com o rapper Tupac, já depois de, num primeiro momento, as suas referências musicais se terem fixado em Gil Semedo, Jorge Neto e Tabanka Djaz.

“Acho que durante a minha infância e adolescência a africanidade viveu-se muito dentro de casa, quase como se da porta para a rua tivesse de existir uma adaptação à sociedade, que não fosse geradora de conflito pessoal nem para os outros”.

Agora com 35 anos, Luís gere a livraria online Tchatuvela, nome que adoptou do apelido de uma amiga, e que significa “valeu a pena a espera”.

Inaugurada há um ano e meio, e com montra no Facebook e no Instagram, a Tchatuvela assume a missão de criar pontes entre a literatura e a comunidade negra.

Fazer parte da mudança

Além de promover a venda de livros de literatura negra e africana, o projecto pretende estimular o poder de compra dentro da comunidade, favorecendo que, nas palavras do seu criador, a Tchatuvela, “faça parte da rotina das pessoas, e seja um conceito e não apenas uma opção comercial”.

Amílcar Cabral, Alice Walker, Frantz Fanon, Ondjaki e Véronique Tadjo são alguns dos autores presentes nas estantes da Tchatuvela, compostas a partir de obras que Luís encontra em leilões online, no projecto editorial Falas Afrikanas, em feiras, ou em contacto com amigos alfarrabistas que avisam sempre que têm “livros de literatura associada a África ou que fogem da norma”.

De ligação em ligação, Luís mantém um catálogo com cerca de 500 livros, na maioria em segunda mão e disponíveis para venda online.

“Costumo ver milhares de livros nas feiras e em alfarrabistas, isso é o reflexo do consumo que existe em Portugal. A oferta de livros que há em livrarias, no geral, é maior que a compra e, mesmo assim, não há uma oferta para a comunidade negra”, constata o alfarrabista.

Incansável na criação dessa oferta, o alfarrabista dedica-se à pesquisa de referências bibliográficas para a comunidade negra,  conceito que ultrapassa as estantes cheias de livros que compõem o seu cenário de trabalho.

Para o futuro, Luís pretende, em nome da Tchatuvela, estrear-se no mercado da edição de livros e criar um espaço físico cultural onde qualquer pessoa possa ler, debater e produzir, “fazendo parte da mudança”.

 

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