O auto-exílio que confronta a “narrativa única e manipuladora” da história lusa

Após 13 anos em salas de aulas do Brasil, onde desenvolveu o projecto “O que há de negro em nós?”, o professor Danilo Cardoso partiu para um “auto-exílio” europeu, precipitado por um quotidiano “tenebroso” de convulsões políticas. Desde 2015 em Portugal, depois de uma breve passagem por Espanha, este mestre em Educação, graduado em História, encontrou nos manuais escolares lusos uma “narrativa única e bem manipuladora” do passado, que procura desmontar com a sua intervenção no grupo anti-racista Educar.

por Paula Cardoso

O encantamento da chegada a Portugal, iludido pela esperança de um encontro de redenção histórica, quebrou-se num abrir e fechar de livros.

“Tem a questão de estar na ex-metrópole, e tudo mais, e ficar pensando: ‘Ah, agora eu vou entender tudo o que se passou. Agora eu vou conseguir dialogar directamente com o irmão que está separado por um oceano”.

Das primeiras considerações, formuladas em 2015, até à realidade de 2020, Danilo Cardoso desbravou demasiadas páginas de incompreensão.

“Bastou pegar nos manuais portugueses, para ver a questão da narrativa única e bem manipuladora”, recorda o mestre em Educação, folheando os primeiros capítulos da sua aventura na capital do antigo império.

“Quando começo a fazer uma colecta de livros, desde o estudo do meio até ao 12.º [ano], para ver como são ditas as coisas, fico completamente em choque com HGP [História e Geografia de Portugal]”, conta Danilo, indignado com a leitura.

“HGP é uma lavagem cerebral absurda. Acho que é no quinto e no sexto ano que você desprepara a geração mais nova para viver a realidade do país”.

O confronto com o enviesamento do passado, ostensivamente romantizado, realçou a necessidade de uma intervenção pedagógica, a partir de 2018 enquadrada nas actividades do grupo Educar.

Educar contra o racismo estrutural

Apresentado como uma plataforma “aberta, horizontal, independente e multidisciplinar de educadores anti-racistas”, o colectivo assume o compromisso de “re-conhecer e combater, diariamente, o racismo estrutural”.

A missão cumpre-se, na história de Danilo, com o suporte de 13 anos de experiência em salas de aulas brasileiras, tanto no ensino público, como no privado.

 

O percurso, abruptamente interrompido desde o recrudescimento da direita no Brasil, revisita-se num Portugal partidariamente minado por forças racistas e xenófobas.

Lá como cá, o professor, de 36 anos, defende “a necessidade de haver afecto, porque ninguém aprende sem afecto, ninguém se relaciona sem afecto”.

Mas, no país do ‘Presidente dos afectos’, essa lição continua excluída dos conteúdos e abordagens curriculares.

“Tem muita gente que me pergunta: você não quer dar aula em Portugal? E eu fico meio assim: ‘Aula dentro da escola portuguesa?! Eu acho que não”.

O ‘prejuízo’ de “falar brasileiro”

Além do choque com o ensino da História, a recusa de Danilo cimenta-se sob muros de opressão linguística.

“Dei aulas de explicação em Belas [no concelho de Sintra], e logo tive um conflito com a professora de Português, porque ela dizia que eu falava brasileiro, e isso ia prejudicar os alunos”.

Apesar de não ter dúvidas de que o contacto foi benéfico para os estudantes, e de ressalvar que ele próprio gostou da experiência com os miúdos, o mestre em Educação não esquece o poder destrutivo das ‘bem-intencionadas’ ingerências.

“Esses embates são bastante cansativos”, sublinha, cerca de seis anos depois suportar o desgaste da sua identidade profissional.

“Como eu trabalhava em várias escolas particulares, de classe média-alta branca, eu percebi, dentro da sala de aula, que o negócio ia explodir”, lembra Danilo, de volta aos primórdios das movimentações que arrancaram Dilma Rousseff da Presidência do Brasil.

“Historicamente falando, essa crise política começa em Junho de 2013 [com as denominadas manifestações dos 20 centavos], antes do segundo mandato da Dilma, em 2014. A Dilma ganha, mas essa corrida eleitoral é bem baixa, baixo nível mesmo”, recua o professor, para contextualizar o “clima tenebroso” que começou a observar nas escolas.

O que há de negro em nós?

Criador do projecto de arte-educação “O que há de negro em nós?”, que permitiu humanizar relações raciais no ambiente escolar – através da visibilização e melhor compreensão dos “corpos diferentes que estão numa escola branca” –, Danilo tornou-se uma voz dissonante e incómoda no seu universo de intervenção.

“Alunos de 11 a 15 anos iam todos para a sala de aula com o autocolante do candidato de direita. Eu, que fazia a discussão racial e de classe, logo me transformei no professor petista, dilmista, lulista, anarquista, comunista”. Os sucessivos rótulos de reprovação vieram colados a novas e insuportáveis orientações pedagógicas:

“Danilo, não faça mais esses projectos, faça só o feijão com arroz, todo o mundo só faz o feijão com arroz, só você é que inventa um monte de coisa”.

As palavras da antiga coordenadora, combinadas com a propaganda ostentada pelos alunos, foram avolumando a desmotivação, até a ruptura se tornar inadiável.

Desligado da prática escolar, o brasileiro embarcou para um “auto-exílio”, conforme gosta de descrever. Inicialmente fixado em Barcelona, onde aterrou com planos de abrir um pequeno espaço de restauração – “não deu certo, até pela questão do catalão” – Danilo reajustou a rota até Lisboa. No novo destino, o mestre em Educação e graduado em História agregou um “doutoramento” inesperado ao currículo.

O auto-exílio europeu com um doutoramento às mesas

“Chego e vou trabalhar em restaurante”, conta, completamente rendido à experiência. “É engraçado porque eu servia uma coisa [aulas] e passei a servir outra [refeições], e isso foi fundamental para sair desse lugar do saber, ocupado pelo professor”.

Transferido para um lugar de aprendiz, Danilo não tem dúvidas de que acumulou conhecimento “para o resto da vida”.

Por um lado, o brasileiro sublinha que teve a oportunidade de “perceber as condições precárias de trabalho”. Por outro lado, o auto-intitulado “professor-copeiro” nota que conseguiu aceder a “estratégias de combate ao racismo e classismo, num quotidiano cruel”.

Resumidamente, a passagem pela restauração, essencial para garantir uma permanência legal no país, adquire, na avaliação de Danilo, a equivalência a um “doutoramento”.

“Pode até soar romântico o que vou dizer, mas tudo o que vivi servindo me lembra o Mao Tsé-Tung, quando ele falava que o trabalhador intelectual teria de fazer também o trabalho braçal, para ter consciência do trabalho”.

O educador anti-racista valida o pensamento do histórico líder comunista com o seu exemplo. “Acho que todo o mundo deveria ter uma experiência manual, porque tem certos aprendizados que você não consegue em gabinete, ou por livro. Você tem de vivenciar”.

Uma das lições que o professor aprendeu na prática foi perceber que, em Portugal, há um ónus associado à pergunta “és de onde?”, quando dirigida a populações racializadas.

“Para mim é uma forma que a gente tem de se conhecer. Mas é lógico que eu aprendi a perguntar, não parto do pressuposto que a pessoa não é daqui”, aponta Danilo, reforçando a ideia de que aplica esse questionamento para expandir proximidades. “É fundamental ver aonde é que estão os nossos laços”.

Mais do que isso, acrescenta o educador anti-racista, é vital desatar os nós que tantas vezes interferem nessas ligações.

“Na questão de conhecer o outro, respeitar o lugar de fala é essencial”, assinala o professor, alertando para algumas distorções que tendem a transformar esse espaço de autodeterminação num palanque.

“O nosso compromisso no Educar é fazer com que esse lugar de fala seja um lugar de conhecimento e de reconhecimento do outro. A gente fala para a gente se conhecer e se reconhecer, não fala para dar espectáculo, ou fazer palestra”.

A missão, revela Danilo, antecipa uma aproximação à Associação de Professores de História, com quem a plataforma anti-racista quer construir uma narrativa histórica plural. Sem romantismos ilusórios.