O equilíbrio que vem de saltos altos, entre danças com Aysha Jhanne

Bailarina, professora e coreógrafa, Albertina Costa, ou simplesmente Tina, despertou para a dança a partir de ritmos africanos, primeiro passo para uma carreira iniciada há mais de uma década. Hoje com 32 anos coordena movimentos com sentimentos nas aulas de High Heels, e manifesta a expressão feminina outrora perdida no universo do dancehall. Pelo caminho apanhou o “bichinho da televisão”, com a participação no programa “Achas que sabes dançar?”. Mais uma experiência a suportar os planos de criação do próprio centro artístico. Em construção.

por Paula Cardoso

Roupa larga, nem um só movimento de sensualidade, e uma actuação o mais máscula possível. Por quatro anos, entre os 19 e os 22, a presença de Albertina Costa na dança permaneceu reprimida.

“Queria ser respeitada da mesma forma que os rapazes”, conta, recuando mais de uma década na própria história, nessa época marcada pela participação nas chamadas ‘batalhas’ de hip-hop.

“Estava num meio dominado por homens, maioritariamente brancos, e eu sentia que não olhavam para mim com respeito. Via isso no tipo de gestos, na abordagem, nas conversas…”.

Única mulher negra nessas competições, e uma das poucas bailarinas a ‘batalhar’, Albertina, também conhecida por Tina e Aysha Jhanne, acabou por acusar o peso da dupla excepção a cada gesto.

“Sentia que tinha de me pôr de uma certa forma…mostrar que não sou nenhum brinquedo”.

A libertação pelo dancehall

Entre aquilo que era naturalmente e tudo o que o seu instinto de sobrevivência lhe dizia que tinha de ser, a distância de si própria começou a assumir contornos intransponíveis até à descoberta do dancehall.

“Encontrei uma cultura muito mais livre, embora muito machista também, mas onde as mulheres são muito expressivas sensual e sexualmente”, conta, de volta a um processo de resgate determinante para a sua carreira.

“Ao estudar essa cultura do dancehall, comecei a ver coisas que tinham muito a ver com a minha personalidade, também com a minha cultura enquanto mulher angolana, e pensei: ‘Fogo, estou a perder tudo isto porque não me sinto confortável devido ao que outras pessoas acham em relação ao meu corpo, à minha forma de me apresentar’. Então passei a trabalhar isso em mim”.

O reencontro consigo mesma aprofundou-se dos 22 aos 26 anos, evidenciando o poder da dança como espaço de autoconhecimento e transformação.

“Lembro-me de ouvir coisas como: ‘Ah, abanas tão bem a anca’, e de isso me irritar. As pessoas achavam que era um elogio, e não se apercebiam que me estavam sempre a hipersexualizar. Acabei por me anular, e depois tive de fazer todo um trabalho de desbloqueio”.

Expansão individual com expressão corporal

A experiência pessoal de resgate e fortalecimento identitário a partir de movimentos dançados tornou-se, com a passagem do tempo, uma ferramenta importante de diferenciação profissional.

Hoje com 32 anos, a bailarina, professora e coreógrafa transforma as aulas num lugar de expansão individual, e não apenas de expressão corporal.

O ‘2 em 1’ cumpre-se através das lições de High Heels, onde a dança de saltos altos se revela como “um espaço psicológico, energético e astral”, capaz de restituir a auto-estima, recuperar a autoconfiança e o amor próprio.

“Não quero que vão às minhas aulas apenas para aprender coreografias, quero que se sintam à vontade para partilhar histórias, que encontrem um espaço que lhes permita libertar o peso do dia-a-dia.”

Além de ensinar movimentos, Aysha faz questão de ir ao encontro das emoções das “pessoas especiais” que a procuram, seja pela partilha de músicas com mensagens apropriadas a cada estado, seja pela desconstrução de crenças tantas vezes castradoras da liberdade de ser.

Desde alguém que mudou completamente a sua relação com o corpo, e partir daí também o julgamento constante que fazia das mulheres à sua volta, a uma pessoa com disforia de género, pelos ‘Saltos Altos’ descobrem-se múltiplos equilíbrios, particularmente valiosos em contexto de confinamento.

“O ambiente anda muito pesado no mundo todo. É fundamental conseguirmos sair desse peso e termos um sítio onde dá para respirar, termos um bocado de alegria, de expressão, em que podemos mexer o corpo que não seja apenas para fazer tarefas, como ir às compras, tomar banho ou comer”, sublinha Aysha, desde o primeiro confinamento, há um ano, a coordenar movimentos em modo online.

Subir no salto e descer barreiras

Consciente de que a exposição constante aos ecrãs, associada às restrições de mobilidade e outras preocupações conseguem drenar bastante a nossa energia, a professora redobra o suporte emocional.

“Incentivo muito as minhas alunas. Digo: ‘Vistam-se bem, se quiserem maquilhem-se, e, pelo menos durante 1 hora ou 1 hora e meia, temos aqui um escape”.

A par das aulas de High Heels e de Dancehall, Aysha também ensina hip-hop, onde continua a enfrentar algumas barreiras de discriminação.

“Numa das escolas em que dou aulas, há rapazes que costumam competir e fazem vários estilos de dança, incluindo hip-hop. Notei que optaram por outra professora, mais baixinha e com aspecto mais másculo”.

A par dos preconceitos enraizados na aparência mais ou menos feminina, a coreógrafa destaca a influência racial nos olhares que recebe.

“Às vezes ouço algumas coisitas de pessoas que vão experimentar as aulas, como por exemplo: ‘Mexes-te assim porque isso para ti é natural. Ai, tu fazes assim, mas eu não tenho o teu corpo’”, conta Aysha, explicando que a ideia de que os negros são naturalmente exímios dançarinos inibe participações.

Como se houvesse o receio, ainda que subconsciente, de que não conseguirão acompanhar as indicações.

“Isso não tem nada a ver. O meu irmão é negro como eu e tem dois pés de chumbo. Quando eu dizia dois passos para a esquerda, ele dava um para a direita e meio para a esquerda”, ilustra Aysha, sublinhando que “a percepção corporal adquire-se”.

O poder da técnica rumo à profissionalização

Por isso, antes de maiores instruções, faz questão de desmontar cada movimento, demonstrando o poder da técnica que ela própria descobriu na viragem para a maioridade.

“Sempre gostei imenso de dançar. Era uma coisa que fazia na escola e também na rua, com amigas, sempre por hobby”.

O registo freestyle tornou-se consciente a partir de uma mudança na antiga vizinhança.

“Morei em Ermesinde durante muitos anos, e, na altura, na minha rua não havia mais pessoas negras.  Quando foi para lá viver uma família angolana, como a nossa, começámos a conviver todos, e, como eles tinham um grupo de danças africanas com uma senhora que era a tia Zita, um dia decidiram levar-me”.

Até então habituada a improvisar passos, Tina passou a aprender “movimentos a sério” quando tinha 12 anos.

“Foi aí que se começou a dar a primeira parte mais profissional da minha história na dança, porque fazíamos várias actuações. Chegámos mesmo a ir à Praça da Alegria”, recorda, acrescentando que esse percurso foi interrompido com a mudança da tia Zita para Londres.

“Aí fiquei um bocadinho à nora, mas depois fui procurando aulas e fazendo workshops, embora só tenha começado a fazer aulas mais profissionais aos 18 anos, depois de uma audição, aos 17, em que conheci bailarinos a sério”.

Entre o andebol e a dança

Já inserida num grupo, em que todos os integrantes eram profissionais, Aysha começou também a ensinar, ocupação conciliada com os estudos e ainda com os treinos de andebol, modalidade na qual chegou a ser federada.

“A determinada altura tive de escolher: ou me profissionalizava como jogadora de andebol, ou continuava com a minha carreira na dança”.

A decisão tornou-se mais evidente a partir de um castigo. “Há males que vêm por bem, porque numa fase de maior rebeldia, a minha mãe para ter alguma mão em mim, começou a proibir-me de ir ao andebol. Então virei-me mais para a dança”. 

A escolha, reconstitui Aysha, obrigou a transpor a desaprovação familiar. “Um dos tios que me criou, e que foi a primeira pessoa a quem chamei de pai, não via com bons olhos as mulheres no meio da dança e do entertainment. Dizia que parecem todas prostitutas, que dançam assim e vestem-se assado, usam muita maquilhagem. Era uma mentalidade muito cerrada, e um bocado um reflexo da verdade na minha família”.

Apesar da oposição inicial, foi também no meio familiar que Aysha encontrou forças para continuar.

“Sempre fui uma pessoa que questionou as coisas que não achava correctas, porque a minha educação me trouxe isso. A minha tia dizia sempre: ‘Questiona sempre aquilo que te metem no prato’, e isso foi uma lição para a vida”.

Firme na sua decisão, a então bailarina iniciante nunca poupou recursos na sua formação. “Quando consegui fazer os meus primeiros trabalhos, comecei a juntar dinheiro e a viajar. Todo o dinheiro que eu conseguia era para workshops, viagens e tudo”.

A rota de aprendizagem, que, entretanto, se alargou a destinos para dar formação, passou muitas vezes pela França, também pela Bélgica, Alemanha, Espanha, Jamaica, e, antes da pandemia, pela Rússia.

O “bichinho da televisão” e o sonho angolano

O caminho de profissionalização cruzou-se ainda com a participaçãono programa “Achas que sabes dançar?”, que a contagiou com o ‘bichinho da televisão’.

“Gosto muito do trabalho em TV, tudo o que há por detrás da câmara, o ambiente de backstage. Adoro mesmo”, assinala, para já sem planos de regresso.

“Vejo-me, um dia, com o meu próprio centro artístico, no qual os bailarinos poderão estar em várias áreas, e onde também terei espaço para albergar músicos e pintores, porque as artes plásticas têm tudo a ver com a dança”.

A par de um encontro de artes, Aysha planeia também abrir portas a um intercâmbio entre vários países, com passagem pela sua terra natal. “Um dos meus maiores sonhos é conseguir dinamizar mais Angola, porque vejo que há muito talento, vejo que há muita gente que não tem possibilidade de seguir uma carreira profissional em dança, a menos que seja o bailarino de algum kudurista, ou de algum cantor que cante kizomba, e tenha concertos fora do país”.

A cada impossibilidade, a luso-angolana procura inspiração para criar novas oportunidades. Passo a passo, dona do seu próprio movimento.

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