O fado viral de Amália Santana, e o aplauso da representatividade negra
por Paula Cardoso
“Foi Deus” que colocou Amália Rodrigues na voz de Amália Santana. O tema, imortalizado pela eterna ‘Rainha do Fado’, projecta-se online pela interpretação da estudante de Enfermagem, que imprimiu à canção um arranjo viral.
A actuação, gravada em vídeo e partilhada nas redes sociais, recebeu mais de 800 mil visualizações no Facebook, e, com a exposição, evidenciou a importância da representatividade negra. “Só quando comecei a receber mensagens é que me apercebi que algumas pessoas não estavam à espera de ver uma negra a cantar o fado”.
Embora defenda que o solo “não deveria causar esse espanto”, a futura enfermeira reconhece o seu potencial multiplicador. “Acaba por ser uma maneira de dizer o que sempre ouvi dos meus pais: ‘Nós podemos ser o que quisermos”.
Musicalidade precoce
Filha de são-tomenses, nascida em Lisboa há 24 anos, Amália solta a voz desde as primeiras expressões de vida.
“Daquilo que os mais pais costumam contar sobre a minha história, eu sempre cantei. Aliás, dizem que comecei a cantar antes de saber falar”.
As notas infantis cedo se cruzaram com Amália Rodrigues – “um dos fados que cantava mais em criança era a ‘Canção do Mar’” –, mas, com o crescer dos anos, as preferências ganharam outros tons.
“Gosto muito de música, de fado também, mas a verdade é que nunca esteve no centro da minha vida”, revela Amália, mais sintonizada na música gospel e sacra.
A preferência afina-se na prática religiosa, com a participação no coro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, desligada de planos de profissionalização.
Herança de Saúde
“Tive sempre as duas opções em aberto: ou seguia música, ou seguia Saúde”, diz Amália, educada entre a paixão artística e uma linhagem de médicos e enfermeiros.
“Quase todos os meus tios e primos, da parte da minha mãe, são profissionais de Saúde. O meu tio Arlindo [de Carvalho] chegou a ser ministro da Saúde de São Tomé”, nota a futura enfermeira, segura das suas escolhas.


“Se calhar é um preconceito que tenho em relação ao mundo da música, mas acho que a pessoa começa bem, e depois acaba por se perder”.
Sem desvios de um destino na Saúde, Amália não hesitou na escolha de Ciências e Tecnologias como área de estudos no Secundário.
A opção é recordada com o entusiasmo da participação em vários concursos, onde se inclui o “Sciencecalifragilistic”, projecto financiado pela Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica e apoiado pela Fundação Champalimaud.
“Não me lembro das conclusões, mas foi uma experiência muito interessante, em que estudámos o comportamento das moscas da fruta em relação ao CO2”.

A surpresa fadista
Pouco depois dessa aventura, vivida no ano lectivo 2013/14, a Ciência e a Música, até aí conciliadas entre as lições curriculares e extra-curriculares, desencontraram-se.
“Os meus pais puseram-me numa escola de música aos 13 anos, onde acabei por fazer piano e violino. Depois, passei para o conservatório [de Artes de Loures], onde fiz violino, coro e formação musical”, adianta, acrescentando que, poderia ter continuado, “mas não dava para conciliar tudo”.
Agora no último ano de Enfermagem, Amália planeia a entrada no mercado de trabalho lado a lado com a música. “Sei que vai estar sempre presente”, adianta, ainda hoje surpreendida com o impacto da sua intervenção fadista.
“Tinha visto que era a comemoração dos 100 anos da Amália Rodrigues [centenário do nascimento], então disse para mim: vou aprender um fado e vou cantar”.
Sem se demorar no assunto, Amália escolheu o tema “Foi Deus”, que nem sequer conhecia, agarrou no telemóvel, gravou um vídeo, e partilhou no Facebook.
“Nunca pensei que tivesse tantas visualizações. Acredito que se eu tivesse outro nome talvez não tivesse tanto alcance. Acho que as pessoas também param por isso: uma Amália a cantar outra Amália”.
Registo profético
A coincidência pode até sugerir escolhas de registo musicalmente inspiradas, mas, esclarece a futura enfermeira, a fadista não amadrinhou a sua identidade.
“Nem sequer era para me chamar Amália. Os meus pais tinham decidido que eu seria Rosângela Marisa, mas acho que o registo não aceitou. Tinha de ser Rosa Ângela, não podia ser tudo junto”.
Sem alternativa imediata, a família regressou para casa e, no dia seguinte, sozinho, o patriarca resolveu o assunto.
“O meu pai decidiu registar-me como Amália Marisa. Ele sempre contou a história de que não sabe como é que o nome surgiu, mas foi completamente aleatório porque ele nem sequer era fã da Amália Rodrigues”.
O acaso recupera-se agora com ecos de providência divina. “Foi Deus”, canta Amália.
