O filme das nossas vidas, que acontece num abrir e fechar de fronteiras

Entre idas e vindas, num quotidiano lisboeta, os passos de Ricardo Falcão cruzaram-se com os de Mbaye Sow. O encontro trouxe conversas, entendimentos, e planos de filmagens, concretizados no road movie “Yoon”, realizado em parceria com Pedro Neto Figueiredo. A produção, em exibição nas salas de cinema nacionais, acompanha uma das viagens de Mbaye Sow até ao Senegal, durante os mais de 10 anos em que, a partir de Portugal, trabalhou como routier – uma espécie de caixeiro-viajante dos tempos modernos. A história desfia-se na língua wolof, ao longo de 4.000 quilómetros de estrada cumpridos ao volante de um antigo Peugeot 504, desafiando-nos a questionar as nossas próprias fronteiras. Geográficas, políticas, linguísticas, humanas…numa rota que nos guia por uma conversa com Ricardo Falcão e Pedro Neto Figueiredo. Assim na vida como no grande ecrã.

Os realizadores de “Yoon”, Pedro Neto (esq.) Figueiredo e Ricardo Falcão 

Texto de Paula Cardoso

Fotos cedidas pela produção de “Yoon”

Os olhos procuram decifrar o que os ouvidos não conseguem reconhecer: quão familiar pode ser uma língua que nos é desconhecida?

A pergunta assalta-me à medida que a acção de “Yoon” decorre, pontuada por um idioma que procuro entender, para além da compreensão facilitada pelas legendas. É com ele – o wolof – que atravesso a minha primeira fronteira – linguística – desta viagem tão cinematográfica quanto biográfica.

Seguem-se outras, percorridas ao longo de 84 minutos de estrada, onde encontramos os 4.000 quilómetros que aproximam Portugal do Senegal. Ou será que afastam?

“Poderíamos explicar imensa coisa, mas isso seria outro filme: um filme que impõe um discurso e que usa as imagens para passar esse discurso. Nós não queríamos fazer isso. Queríamos um filme que suscitasse mais reflexão do que desse respostas. Aqui as imagens falam primeiro”, nota Ricardo Falcão, que juntamente com Pedro Neto Figueiredo assina a realização de “Yoon”.

Premiado no Doclisboa e no festival de documentário de Jihlava, na República Checa, o trabalho, em exibição nas salas nacionais, apresenta-nos uma das viagens de Mbaye Sow durante os mais de 10 anos em que, a partir de Portugal, trabalhou como routier – uma espécie de caixeiro-viajante dos tempos modernos.

À boleia do seu antigo Peugeot 504, seguimos, desde a Reboleira, por Espanha, Marrocos e Mauritânia até chegar ao Senegal, num trajecto onde cabem dezenas de vidas.

Muitas ouvem-se à distância de um telefonema, outras vêem-se no pára-arranca imposto por geografias politicamente demarcadas: quanto pesam o nosso corpo, a nossa pertença, e os nossos documentos na liberdade de ir e vir?

Nos limites do movimento

“A fronteira muitas vezes não está sequer onde está marcada. Tu entras em Marrocos e ainda estás a ver Espanha. O carimbo da entrada em Marrocos não acontece na linha a meio do Estreito de Gibraltar, acontece cinco minutos depois de o barco partir quando abre o guichet do carimbo”, reflecte Pedro, revisitando as rotas por detrás da rota de “Yoon”. A Mauritânia, por exemplo, prossegue o realizador, é, em toda a sua extensão uma fronteira, ideia reforçada em dupla.

“Desde a entrada até à saída, tens uma escolta policial, e dão-te 24 horas para atravessar o país e voltar a sair”, sublinha Ricardo, acrescentando que as barreiras à circulação não se extinguem nos espaços que nos habituamos a reconhecer como casa.

“Já no Senegal, e depois de sairmos da alfândega, há um controlo policial na estrada e um tipo resolveu embirrar com o Mbaye, com os papéis dele, com o que trazia no carro, com a forma como as mercadorias estavam acondicionadas. Foi o momento da viagem em que ele ficou mais irritado, porque chegou ao próprio país e ainda teve de ouvir qualquer coisa como ‘vocês imigrantes vêm para aqui, e acham que sei lá mais o quê’”.

O episódio, acrescenta Ricardo, ilustra bem a ideia de que a fronteira está longe de se esgotar num limite físico. “Envolve também as lógicas que as pessoas querem imprimir”.

Poderá haver humanidade nessas delimitações? Não será a sua existência, por si só, sinónimo de desumanização?

“Acabas por estar sempre na fronteira”, acrescenta Pedro, de volta à experiência de Mbaye.  “Chegou ao Senegal e continuou a carregar essa fronteira, porque já não é um senegalês que vive lá, mas que vive noutro sítio”.

Sobreviver ao fim

As reflexões vão muito além do grande ecrã: os realizadores, que também partilham a Antropologia como área de especialização, transportam o movimento de “Yoon” para a academia.

Mais do que se debruçarem sobre o vaivém demarcado por fronteiras, Pedro e Ricardo discorrem sobre a ideia de obsolescência.

“Até depois de deixar de andar, um carro como aquele que vemos no filme, ainda pode servir para construir uma bomba de água”, aponta-se entre exemplos que desafiam a finitude. Inclusivamente da resistência humana aos “imponderáveis”, conforme descreve Ricardo.

“Fizemos um primeiro guião, mas depois quando fomos rodar muito pouco ou quase nada do que tínhamos imaginado aconteceu, à parte da questão de se tratar de um road movie, em que são transportadas e trocadas coisas. Os imponderáveis são muito grandes nestas viagens”.

Dos problemas mecânicos, à relação com as autoridades e consequente necessidade de negociar o direito de circular, a lista de inesperados renova-se a cada viagem.

“Experimentámos um bocadinho de tudo”, aponta Ricardo, desfiando o rosário de provações: “tivemos um furo no radiador, tivemos a gasolina a verter para cima do motor porque as tubagens não estavam em condições, tivemos furos, ficámos sem mudanças a meio do deserto, tivemos problemas no escape, ficámos sem travões, sei lá…”.

Os percalços viveram-se a dobrar, porque o filme envolveu duas rodagens – em 2017 e em 2019 –, desdobráveis em múltiplas aprendizagens.

Reflexos da nossa humanidade

“Se pensarmos nos travões como nas coisas da vida, podemos considerar que um problema só é um problema se não soubermos que está ali”, observa Pedro, partilhando aquela que identifica como a “lição mais sábia” a extrair de tantos imponderáveis. “A partir do momento em que sabes que não tens travões, por exemplo, isso deixa de ser um problema e passa a ser uma questão que tens de gerir. É mais uma circunstância”.

Ricardo revê-se na aprendizagem. “Uma coisa que me vem à mente é a ideia de que não há problemas, só soluções. A ansiedade que uma pessoa transporta para locais em que não está sob controlo deve ser posta de lado. Devemos ir para as coisas e fazer, resolver quando é necessário, não assumir que as coisas são feitas de problemas, mas sim que se temos um objectivo devemos ir por aí”.

Neste caminho, o que de nós conseguimos ver nos ‘outros’?

Na história de Mbaye Sow, com quem Ricardo se cruzou, por acaso, entre idas e vindas de um quotidiano lisboeta, quanto do todo que somos está nas partes que observamos?

“Para mim, este filme é tanto sobre o Mbaye e os routiers como sobre nós próprios. Nós enquanto sociedade”, sublinha Pedro, reflectindo sobre as intersecções que transportamos.

“Podemos pensar sobre as questões da obsolescência programada dos nossos carros, dos objectos que consideramos lixo, do que consideramos fronteiras, dos próprios usos das línguas, e conseguimos ver, numa espécie de espelho invertido, aquilo que somos ou não somos”. Reflexos da nossa humanidade.