O instinto maternal que desafia, com a História Negra, uma velha sina racial

Nasceu em Angola, mas veio, ainda ao colo, para Portugal, onde cresceu e viveu até aos 29 anos, altura em que ganhou mundo. Primeiro na Grécia e depois na França, a fotógrafa Alice Marcelino reside há cerca de uma década em Inglaterra, onde a multiculturalidade inspirou novos ângulos para o seu trabalho, cada vez mais focado na identidade negra. Permanentemente em construção e reconstrução, e agora com um desafio adicional: a maternidade.

Texto: Paula Cardoso
Fotos: Alice Marcelino

Insultos gratuitos na rua que roubam inocências, narrativas históricas que, na escola, exterminam heranças ancestrais, intimidação e violência policial estruturalmente alinhadas para marginalizar e amputar mobilidades, oportunidades profissionais armadilhadas…os testes à sobrevivência num mundo sistemicamente racista sucedem-se e repetem-se com tanta normalidade que, para uma mulher negra consciente desses desafios, a maternidade pode se assemelhar a uma bomba-relógio. Não se sabe quando vai rebentar, mas, a determinada altura, a pertença étnica torna-se fonte de múltiplas explosões discriminatórias.

“Há coisas pelas quais passei, coisas pelas quais todas as pessoas negras passam, e que me preocupam ainda mais agora que sou mãe. Sei, por exemplo, que essa experiência de vida é intensificada se a cor da pele for mais escura e se o género for masculino”, constata Alice Marcelino, por estes dias a reajustar rotinas ao nascimento do primeiro filho.

Um futuro de conversas desagradáveis

A partir de Inglaterra, onde vive há nove anos, a fotógrafa antecipa rondas de conversas familiares “desagradáveis”.

“Não quero que o meu filho passe por aquilo que passei, mas provavelmente há coisas pelas quais vai mesmo ter de passar, e que estão fora do meu controlo. Por isso faço questão de me preparar, para o poder criar orgulhoso das suas raízes”.

O plano familiar, executado em sintonia com o companheiro –  francês negro, de ascendência antilhana –, tem como eixo primordial a Educação.

“É desafiador, mas também me dá uma certa esperança, no sentido de que vou tentar fazer muito melhor do que aquilo a que tive acesso, porque estou muito mais informada”.

Nascida em Luanda, Alice migrou para Lisboa ainda ao colo da mãe, e, vive, há nove anos em Londres. Antes passou pela Grécia e por França, destinos cumpridos sempre em cidades capitais e com encontros de resgaste identitário.

“Talvez continuasse sem referências negras fora da música pop, do entretenimento e desporto. se não tivesse saído de Portugal”, nota a fotógrafa, apontando uma das suas descobertas tardias: Mansa Musa.

“Foi uma das pessoas mais ricas do mundo, há milhares de anos. Tenho quase 40 anos e só soube da sua existência há três ou quatro anos. Como é que isso se justifica, o que é que se está a passar?”.

A descoberta do africano mais rico da humanidade

A cada questionamento, aprofundado na desconstrução de uma pretensa História Universal, Alice confronta-se com uma narrativa de sentido único: a exaltação do branco herói e conquistador, e a extinção do legado negro, enterrado em capítulos de escravatura e colonialismo.

Assim se explica que a vida de Mansa Musa, antigo Imperador do Reino da África Ocidental  que hoje corresponde ao Mali, permaneça na penumbra, mesmo diante de inúmeras evidências de que foi o homem mais rico de sempre.

“Ainda temos uma educação muito imperialista, que faz com que muitos de nós cresçamos desligados da nossa riqueza cultural. A verdade é que só vamos ter essa informação mais tarde, e se avançarmos nos estudos. Depois é um choque, porque percebemos que tudo o que aprendemos está errado. E, se está errado, a pergunta torna-se inevitável: afinal quem somos nós?”.

Filha de uma negra com raízes angolanas e congolesas e de um português branco, a luso-angolana conta que nunca rejeitou a sua concentração de melanina, embora reconheça o poder das imagens de promoção de ideais brancos na construção de preferências estéticas.

“Quando era adolescente, tinha uma atracção por um perfil louro, de olhos claros…se calhar construído muito a partir do que via na televisão”, admite, acrescentando que as vivências mostraram exemplarmente que as idealizações não passam disso mesmo. “O que importa é gostarmos das pessoas em si, não uma fachada”, reforça, sem esquecer que o amor-próprio é fundamental nesse processo.

“Sempre gostei do meu tom de pele, sempre achei que é lindo e sempre tive orgulho nele”.

Confrontar os perigos da Histórica única

Apesar de adiantar que, em casa, nunca houve uma conversa directa sobre a dor da cor negra, a fotógrafa recorda as aproximações ao tema.

“Não recebi muita informação em termos de como navegar por certas situações, mas o meu pai sempre me disse: ‘Não és mais nem menos do que ninguém, és igual a toda a gente’. Quando penso nisso, imagino que talvez fosse a forma dele me preparar para o racismo, sem dizer de forma frontal que iria ter sempre problemas por causa da cor da pele”.

Da não-conversa de antes para a conversa incontornável de agora, “temos de continuar a exigir que o sistema educacional mude”, sublinha a luso-angolana.

 “Quando se questiona determinadas estátuas, e depois se diz que isso é tentar apagar a História, devíamo-nos perguntar a que História nos referimos”, insiste Alice, lamentando que continuemos a desperdiçar oportunidades de aprendizagem colectiva.

Individualmente, as memórias da fotógrafa vão sendo revistas e reescritas não apenas no núcleo familiar, mas também no meio profissional.

Com um portfólio que desafia velhas representações estéticas, visibilizando e celebrando a identidade negra, a luso-angolana vem expondo o seu trabalho em galerias e publicações europeias, africanas e asiáticas.

Na série “Kindumba”, produzida entre 2015 e 2017, Alice concretiza um “projecto sobre a diversidade e riqueza cultural” das raízes capilares negras. Ao mesmo tempo, “Kindumba” – termo da língua angolana kimbundu traduzível para “Meu Cabelo” –, reflecte sobre as construções colectivas que “perpetuam ideais de beleza estereotipados”.

A ressignificação de pertenças secularmente discriminadas e oprimidas sobressai igualmente em “Popping Colours”, trabalho que combate a ausência de maiores concentrações de melanina nos principais editoriais de moda.

Além de alertar para a escassez de corpos negros nas sessões fotográficas, a luso-angolana nota que a sua presença tende a estar enquadrada em “temas tribais e étnicos”.  Como se a pele escura fosse um acessório, à mercê de ser usado ou abandonado à medida de tendências.

Semear referências negras

O foco identitário presente nas criações de Alice – que actualmente complementa a licenciatura em Fotografia com o mestrado em Digital Media na Goldsmiths, University of London – acaba por preencher, através de imagens, um vazio crónico de representatividade.

“Espero que o futuro seja diferente para o meu filho, que a educação escolar passe, entretanto, por uma grande reforma. Mas não posso ficar sentada à espera. É meu dever cobrir, dentro de casa, essa lacuna do sistema”.

Em família, onde a ascendência antilhana do companheiro – que além do francês fala o crioulo de Guadalupe – se mescla com as suas origens luso-angolanas e o sotaque da residência britânica, Alice finca o futuro.

“Quero que o meu filho cresça orgulhoso das suas raízes, que ele saiba que elas vêm de muitos lados, que conheça mais e mais a nossa História”, realça esta mãe de primeira viagem, reiterando a importância de semearmos referências negras para fazermos florescer a nossa identidade. E colhermos igualdade.