O Lado Negro da Força que multiplica vozes na luta anti-racista

Desenhador, radialista, músico, funcionário público, poeta, empreendedor e activista anti-racista, José Rui Rosário, ou simplesmente Zé Rui, dá sentido literal à expressão “homem dos sete ofícios”. Cabo-verdiano de nascimento e pertencimento, o codê da eterna Dona Rosa apresenta-nos, todas as quintas-feiras, “O Lado Negro da Força”. Para dar voz a quem não a tem.

por Paula Cardoso

A clássica dor de cabeça de uma ida às Finanças explode, na história de José Rui Rosário, para um irreversível ACV: Aperto Crónico Vitalício.

“Nunca esqueci, e nunca vou esquecer aquela situação”, assevera, recuando cerca de duas décadas na sua narrativa pessoal.

“Estava sentado na repartição, à espera da minha vez, quando reparo numa senhora negra que está a ser atendida por uma funcionária branca”, recorda Zé Rui, para sempre impactado pelo tom hostil da comunicação.

“Pelo que percebi na altura, a senhora não percebia bem o que estava a ser dito, mas, em vez de tentar explicar melhor, a funcionária mostrava que estava a perder a paciência. Às tantas, começou a levantar a voz e a ficar muito mais agressiva”.

A observação, testemunhada por Zé Rui com múltiplos espasmos de indignação – “Fui-me controlando para não me meter” –, continuou no atendimento seguinte, desta vez a uma mulher branca.

“O comportamento da funcionária mudou do oito para o 80, ou, neste caso, do 80 para o 8”, assinala o assistente técnico da Câmara Municipal do Seixal, desde aí enredado num turbilhão de emoções.

“Senti revolta e, ao mesmo tempo, a certeza de que alguma coisa não batia certo. Então, comecei a pensar: Será que isto acontece sempre?”.

Policiamento racial

O questionamento activou um estado de alerta que se mantém até hoje.

“Passei a prestar atenção a estas coisas sempre. Desde os meus 30 anos que tento perceber a interacção que é feita [entre negros e brancos], principalmente quando não se domina tão bem o português, quando, como diz o meu amigo Pedro, não se tem a articulação que é valorizada”.

Agora com 51 anos, Zé Rui reabre o dossiê das principais lições raciais, enquanto revê o álbum das memórias familiares.

“Falo disto porque a minha mãe foi uma pessoa que sempre fez questão de falar crioulo em casa. Sempre! Ela nunca deixou de falar, nunca perdeu o sotaque, e sabemos que isso é muito importante na forma como nos tratam”, observa o caçula da Dona Rosa, revelando o orgulho na herança materna.

 “Eu era o codê da minha mãe, ou seja, o filho mais novo”, celebra o cabo-verdiano, explicando que esse estatuto o enraizou em afectos.

“Acho até um bocado perverso para os mais velhos, porque, na prática, codê é aquele que continua a ter colo, independentemente da idade. É o que vai recebendo a afectividade toda. Por isso, tive mimos quase até a minha mãe ter falecido”.

Com a morte da Dona Rosa, em 1997, o clã Rosário perdeu, não apenas a sua matriarca, mas também um velho legado ancestral.

“Eu e a minha irmã falávamos sempre português em casa. Hoje acho que não termos mantido a tradição de falar crioulo na nossa família foi um mal que fizemos, porque, dentro da nossa linhagem, se calhar a nossa mãe foi a última que só falava crioulo”.

Resgate ancestral

A consciência do extravio linguístico – por mais involuntário que tenha sido –, conduziu Zé Rui para um caminho de resgate das origens, ensaiado através da música.

Vocalista dos Dixit, banda que em 2019 celebrou 25 anos de palco, o codê da Dona Rosa inaugurou, mais recentemente, uma aventura a solo onde o idioma materno comanda as notas.

“Quero falar da questão da africanidade na perspectiva de um cabo-verdiano”, introduz, ainda a afinar os acordes do seu “Zé Ninguém”, apresentado como “um projecto musical cantado em crioulo, e com uma roupagem electrónica”.

Além de compor as letras na língua ancestral – ou “tentar fazê-lo”, conforme prefere colocar – o auto-intitulado “mindelense de gema” assume a construção de novas linguagens.

“O Zé Ninguém está muito fora do que se ouve em termos de música africana, porque não quero fazer o habitual”.

Já com dois temas produzidos, o compositor adianta que o projecto nasceu para ir acontecendo: “É algo que quero construir a espaços, porque faço várias coisas”.

Afirmação capilar

Para trás, definitivamente silenciadas, ficaram as vozes de apagamento da identidade de nascença e pertença.

“Sou de uma altura em que se dizia que os cabo-verdianos usavam facas, que eram violentos, e que matavam as crianças. Ouvia tanto estes comentários, todos super depreciativos, que, mesmo que a minha mãe nos mostrasse que a nossa comunidade não era nada daquilo, às vezes dava por mim a tentar esconder que era cabo-verdiano”.

Já em adulto, as interacções raciais continuam a espelhar preconceitos, ainda que de forma mais subtil.

 “Trabalho na Câmara do Seixal há 20 anos e, por vezes, faço atendimentos. Quando o contacto é apenas por telefone é uma coisa, mas depois há pessoas que vão ao serviço pessoalmente e não conseguem esconder a surpresa: ‘Foi a pessoa com quem falei ao telefone? Ah, você é que é o…”.

Além da escassa presença de profissionais negros no meio laboral – a falta de representação acaba por ser indissociável das reacções de perplexidade, defende –, a identidade capilar do assistente técnico tende a acentuar olhares e comentários de discriminação.

 

“Não entrei para o funcionalismo público de rastas, nem sou rastafári, ao contrário do que algumas pessoas julgam. Antes até usava o cabelo muito curto, mas comecei a deixar crescer quando a minha irmã faleceu”, conta Zé Rui, desde 2004 a redefinir o penteado.

A opção, prossegue, explica-se pelo fim de uma longa tradição familiar. “A minha irmã, que foi uma segunda mãe para mim, costumava trançar-me desde os tempos em que isso nem sequer era habitual entre os homens. Depois dela morrer, como fiquei sem o nosso ritual, decidi começar a enrolar o cabelo”.

Sem qualquer orientação, de forma totalmente experimental, as tranças foram desaparecendo enquanto as rastas iam dando nas vistas. A determinada altura, lembra o cabo-verdiano, o processo de transição obrigou-o a lutar pelas suas raízes.

“Naquela fase intermédia, em que o cabelo parecia um cacto, tive uma chefe que me chamou à atenção. Limitei-me a responder: ‘Doutora, isso já é um departamento que a si não compete’. A partir daí nunca mais fez nenhum comentário. Nem ela nem ninguém”.

O Lado Negro da Força

Funcionário público e músico, Zé Rui junta ao cartão-de-visita atributos de desenhador, radialista, poeta, empreendedor e activista anti-racista.

“Sei, por experiência própria, que o racismo tem de ser combatido no dia-a-dia, todos os dias. Por isso, comecei a fazer o meu activismo nas redes sociais, através do meu perfil e de alguns grupos no Facebook”.

A intervenção online ganha visibilidade crescente há cerca de um mês, com o relançamento de “O Lado Negro da Força”.

Inaugurado em Março de 2019, para “dar alguma visibilidade a sujeitos racializados”, o projecto começou por se materializar como um espaço de entrevistas, assumindo agora um formato de talk-show.

Sempre às quintas-feiras, a partir das 21h30, em directo do YouTube e Facebook, “O Lado Negro da Força” assume a missão de “mostrar que em Portugal existem sujeitos negros a desenvolver trabalho válido e de qualidade, nas mais variadas áreas, para além da música e do futebol”.

 

O manifesto, exibido na morada facebookiana, cumpre-se em equipa, alargada ao músico Alfredo Costa e ao jurista Pedro Filipe, amigos e companheiros na luta anti-racista.

“O grau de intimidade que temos permite-nos conversar sobre assuntos sérios de uma forma mais descontraída”, destaca Zé Rui, acrescentando que o trílogo está em permanente actualização.

“As questões que abordamos no Lado Negro da Força são as mesmas sobre as quais falamos em privado”.

Dos estereótipos raciais às micro agressões do quotidiano, passando pelo impacto do racismo institucional, as tertúlias semanais têm a particularidade de agregar um convidado às discussões.

Mamadou Ba, da SOS Racismo, foi o primeiro a juntar-se à conversa, ontem, dia 16, alargada à deputada Joacine Katar Moreira.

O braço feminino na luta

Até ao final do mês, outras duas mulheres se juntarão ao encontro de amigos: a socióloga Cristina Roldão, no dia 23, e a pedagoga Georgina Angélica, a 30.

A forte presença feminina no alinhamento responde a uma crítica inicial – “levámos na cabeça porque o primeiro programa só tinha homens”–, ao mesmo tempo que confirma uma percepção construída no terreno.

“Olho em volta, e vejo que a luta anti-racista tem sido feita particularmente por mulheres. Em Portugal, e também no estrangeiro, são elas que encabeçam”.

Justamente por isso, Zé Rui defende a importância de trazer para a discussão mais vozes masculinas. “Acho que é preciso mostrar que os homens não estão apenas num canto a acompanhar”.

O compromisso tem no seu próprio exemplo um bom ponto de partida para desfazer qualquer ideia de inércia.

“Tenho uma profissão que me paga as contas, às vezes de forma complicada, mas não me defino por aí”, aponta, descolando-se de todos os rótulos.

“Costumo dizer que a única coisa que me define é ser humano e, dentro da inerência de ser humano, está a criatividade. Basicamente, sou um ser humano que gosta de criar”.

O engenho criativo manifesta-se desde a infância, por entre rasgos de artes visuais.

“Na escola desenhava os meus colegas todos, e até cheguei a fazer bandas desenhadas. Acho que tenho algum jeito, mas acabei por me cansar”, admite, explicando que dos 5 aos 21 anos nunca parou de dar ao mundo as suas próprias formas e cores.

A reforma da ‘rádio-actividade’

Pelo caminho, sempre em multitasking, descobriu nas ondas do éter radiofónico uma paixão, iniciada no frenesim pirata da década de 80.

De microfone em estúdio, sempre enraizado na Margem Sul, Zé Rui manteve-se ‘rádio-activo’ até perder o gozo criativo.

“Naquele tempo não tínhamos playlists. Os programas fluíam mediante os nossos gostos. Claro que também passávamos as músicas que estavam a dar no momento, mas tudo acontecia sobretudo de acordo com a nossa sensibilidade”, recorda, sem esconder as saudades do vinil.

“Mesmo antes de haver internet fazíamos investigação, procurávamos descobrir novidades. No meu caso, tinha amigos com discos raríssimos, que pedia emprestado para os programas”.

 

Empreendedor digital

A dinâmica de produção transformava o locutor num faz-tudo minuciosamente cronometrado: “Tinha de pôr o vinil a tocar, tirar, limpar, voltar a pôr, e ainda calcular bem aqueles segundos para falar antes da música começar”.

A adrenalina, vivida nas rádios Seixal, Baía, Super FM e Voz de Almada, acabou por se extinguir com o triunfo do digital.

“Acho que tive um problema de adaptação. Não me revejo nesta nova forma de fazer rádio, em que está tudo automatizado. Carrega-se num botão, e fica-se o tempo todo a olhar para um computador”.

Reformado o capítulo radiofónico, mas não a veia criativa, Zé Rui consolidou a sua multifacetada personalidade, aprimorando-se como “homem dos sete ofícios”.

Autor de duas obras de poesia – “69 razões para não se apaixonar por um poeta” e “50 voltas ao Sol” –, o cabo-verdiano também co-fundou a plataforma digital Seixal In.

Sempre aberto a novas páginas, o codê da Dona Rosa parte de uma inspiração comum para escrever cada capítulo da sua história. “Na génese dos meus projectos está sempre a independência”, nota, sublinhando que tanto os livros como os discos foram publicados sem amarras editoriais. Como mais uma expressão de liberdade.