O que é lugar de fala? Pare para escutar, e quebrar a violência de um longo silêncio

Que referências nos acompanham na nossa construção de negritude e africanidade? Quais os livros, filmes, séries, discografia ou palestras que nos ajudaram a desmontar a armadilha da história única? Publicamos, uma vez por semana, sugestões que espelham esse despertar identitário. A obra “O que é lugar de fala?”, da escritora brasileira Djamila Ribeiro, cruza várias vozes negras, num concerto de perspectivas que não só tem o mérito de “quebrar com o discurso autorizado e único”, como o de evidenciar “a dificuldade da pessoa branca em ouvir”.

por Paula Cardoso

“Já não se pode dizer nada. Agora tudo é racismo”, “Devia era esta calada. Vive à custa do dinheiro dos contribuintes portugueses”, “Se acham que Portugal é assim tão racista como dizem, como é que temos uma ministra negra?”. As frases de desautorização e deslegitimação do discurso negro sucedem-se diariamente no espaço público luso, como mais uma expressão de violências e opressões históricas,  explanadas na obra de Djamila Ribeiro .

“A história tem nos mostrado que a invisibilidade mata (…) A reflexão fundamental a ser feita é perceber que, quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida”, a autora em “O que é lugar de fala?”.

A partir deste questionamento, a escritora, mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo, junta a sua voz a outras vozes negras que rompem, desde tempos de escravatura, cordões de silenciamento.

O concerto inclui, entre outros, os nomes da histórica ex-escravizada e abolicionista Sojourner Truth, de sociólogas reputadas como Patricia Hills Collins, e de várias escritoras, feministas e activistas negras, como bell hooks e Audre Lorde.

“O não ouvir é a tendência daquele que se intitula poder falar sobre os Outros”

“Ao promover uma multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal. Busca-se aqui, sobretudo, lutar para romper com o regime de autorização discursiva”, lê-se no livro de Djamila Ribeiro, publicado pelo grupo editorial Letramento, no âmbito da colecção Feminismos Plurais.

Na obra, a autora brasileira sublinha que “os saberes produzidos pelos indivíduos de grupos historicamente discriminados, para além de serem contra-discursos importantes, são lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e geografias”.

A relevância da fala dos silenciados continua, contudo, a esbarrar na resistência de quem sempre silenciou e agora se recusa a escutar. 

“O não ouvir é a tendência a permanecer num lugar cómodo e confortável daquele que se intitula poder falar sobre os Outros, enquanto esses Outros permanecem silenciados”, escreve Djamila, trazendo para as páginas de “O que é lugar de fala?” as interrogações levantadas por Grada Kilomba em “Memórias da plantação: episódios de racismo quotidiano”.

“As perguntas que a autora faz (…) são importantes para a nossa reflexão de quem pode falar. Questiona: “Quem pode falar?”, “O que acontece quando nós falamos?” e “Sobre o que é nos permitido falar?”. Esses questionamentos são fundamentais para que possamos entender lugares de fala”, salienta a filósofa brasileira, prosseguindo com a problematização proposta por Kilomba.

“Dentro desse projecto de colonização, quem foram os sujeitos autorizados a falar? O medo imposto por aqueles que construíram as máscaras serve para impor limites aos que foram silenciados? Falar, muitas vezes, implica em receber castigos e represálias, justamente por isso, muitas vezes, prefere-se concordar com o discurso hegemônico como modo de sobrevivência? E, se falamos, podemos falar sobre tudo ou somente sobre o que nos é permitido falar?(…) Quando existe algum espaço para falar, por exemplo, para uma travesti negra, é permitido que ela fale sobre Economia, Astrofísica, ou só é permitido que fale sobre temas referentes ao facto de ser uma travesti negra?”.

 

“É preciso, cada vez mais, que homens brancos cis estudem branquitude”

A par de um profundo convite à reflexão branca – “é necessário escutar por parte de quem sempre foi autorizado a falar” –, Djamila desfaz alguns equívocos que a reivindicação do lugar de fala tende a suscitar.

Desde logo, a autora afasta a ideia de que apenas os negros podem falar de racismo. “Entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de localização social”, esclarece a escritora, defendendo que todos os grupos podem e devem discutir todas as questões que atravessam a vida em sociedade, mas devem fazê-lo com a consciência de que falam de lugares distintos.

A autora realça que, da mesma forma que os silenciados devem reflectir sobre a sua posição, também aqueles que integram as estruturas de poder devem pensar nos seus privilégios.

 

“É preciso, cada vez mais, que homens brancos cis estudem branquitude, cisgeneridade, masculinos”, porque, “como disse Rosane Borges, ‘saber o lugar de onde falamos é fundamental para pensarmos as hierarquias, as questões de desigualdade, pobreza, racismo e sexismo”.

Djamila Ribeiro alerta ainda para a tentação de se fazer corresponder a pertença a um grupo a uma fala única.

“O facto de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá reflectir crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo. Inclusive, ela até poderá dizer que nunca sentiu racismo, que sua vivência não comporta ou que ela nunca passou por isso. E sabemos o quanto alguns grupos adoram fazer uso dessas pessoas. Mas o facto dessa pessoa dizer que não sentiu racismo, não faz com que, por conta de sua localização social, ela não tenha tido menos oportunidades e direitos”, esclarece a filósofa, adiantando que o inverso desta premissa também se aplica.

“Por mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressões, elas não deixarão de ser beneficiadas, estruturalmente falando, pelas opressões que infligem a outros grupos. O que estamos questionando é a legitimidade que é conferida a quem pertence ao grupo localizado no poder”.

A escritora destaca ainda que, perante a resistência branca em ouvir as vozes negras, todas aquelas que conseguem “produzir ruídos e rachaduras na narrativa hegemónica” enfrentam, muitas vezes, e “desonestamente”, a acusação de que são agressivas. Como se lutar “contra a violência do silêncio imposto” não fosse um direito universal.