O sopro que coloca Erline Moreira no circuito musical da Coroa britânica
por Paula Cardoso
Sopra maestria musical com o fagote, instrumento pelo qual se encantou, há uma década, para nunca mais parar de tocar. O engenho de Erline Moreira, desbravado a partir dos 12 anos na Orquestra Geração, garantiu-lhe um lugar no renomado Royal Northern College of Music, onde prestou provas no início do ano.
Aprovada para o mestrado em Master Music, numa altura em que ainda estava a terminar a licenciatura na Academia Nacional Superior de Orquestra, em Lisboa, a fagotista, de 22 anos, começou a fazer contas à vida.
De um lado estava o sonho da entrada num dos quatro conservatórios que integram o prestigiado núcleo de escolas do Associated Board of the Royal Schools of Music. Do outro lado, vislumbrava-se o pesadelo de uma factura de mais de 10 mil libras só em propinas anuais.
“Desde essa altura, comecei à procura de bolsas, só que tudo o que encontrei, e era a minha esperança, acabou por não se concretizar”, conta a recém-licenciada no curso de Instrumentista de Orquestra.
Campanha de crowdfunding continua
Sem dinheiro para custear a continuidade dos estudos em Inglaterra, a luso-cabo-verdiana lembrou-se de uma ideia que, um ano antes, chegou a fazer parte dos seus planos.
“Tinha pensado criar uma campanha de crowdfunding, juntamente com a Orquestra Geração, quando precisei de comprar o meu instrumento, mas acabámos por não o fazer. Então, depois de não conseguir nenhuma bolsa, lembrei-me: ‘Ah, se calhar podia fazer agora”.
O valor foi arrecadado em três semanas, ultrapassando as melhores expectativas da fagotista, mas não cobre nem o primeiro ano de propinas. Por isso, a campanha de recolha de fundos mantém-se online, esclarece a luso-cabo-verdiana.
Pelo mesmo motivo, a viagem para Manchester, cidade de localização do Royal Northern College of Music, está a ser preparada com a consciência de um duplo desafio: Erline vai ter de conciliar os estudos com um trabalho.
Futuro incerto em Portugal
Ainda sem data de voo, previsto para meados de Setembro, a estudante deverá ficar em Inglaterra no mínimo dois anos, tempo de duração do mestrado.
O que se segue “é uma incógnita”, antecipa a luso-cabo-verdiana, pouco optimista em relação a um futuro imediato em Lisboa.
“Só costuma haver dois ou três fagotistas por orquestra, e os que há em Portugal agora são todos muito novos, o que significa que não vou conseguir um lugar tão cedo”, calcula, já à espera de uma mudança forçada.
“Se calhar, depois de acabar o mestrado, vou ter de ir à procura de uma orquestra fora. Mas não quero que isso aconteça. Prefiro ficar no país, porque cresci aqui”.
Nascida na cidade cabo-verdiana da Praia, na Ilha de Santiago, Erline vive desde os quatro anos em Portugal.
“A minha mãe veio primeiro, em 2000, e eu vim em 2002”, conta, quase sem memórias da infância africana, marcada pela morte precoce do progenitor.
“O meu pai faleceu quando a minha mãe estava grávida de sete meses”.
Um acaso chamado Orquestra Geração
Desde os seis anos a viver em Vialonga, Erline imaginou um futuro na veterinária – “gosto muito de animais, e queria tratar deles” –, bem antes de descobrir a paixão orquestral. “Era mesmo muito pequenina quando pensei nisso”, diz.
Com a passagem para a Escola EB23 de Vialonga, e a entrada na Orquestra Geração, qualquer outra ideia de futuro que não passasse pela música ficou irremediavelmente hipotecada. “Vi o fagote, e fiquei logo ‘wow, o que é aquilo?’”.
Até aquele momento, vivido há uma década, Erline nunca tinha visto o instrumento de sopro que agora lhe abre as portas da Royal Northern College of Music.
O inesquecível primeiro encontro aconteceu por acaso, enquanto frequentava o sexto ano. “Estava numa turma de cerca de 26 alunos, em que apenas uns sete não faziam parte da Orquestra [Geração]. Por isso, quando havia concertos e ensaios, éramos tão poucos na sala que os professores ficavam sem saber o que fazer, se davam matéria, se não davam. Por causa disso, sugeriram a todos que entrassem para a orquestra”.
A proposta entusiasmou Erline – “eu disse logo que sim, porque queria muito” –, mas a mãe ainda precisou de ser convencida pela então directora do Agrupamento de Escolas de Vialonga, Armandina Soares.
Dúvidas vocacionais
Dez anos foram musicados desde a estreia no instrumento de sopro, num primeiro momento em disputa com um rival de corda.
“Antes de entrarmos na orquestra, tínhamos de escolher o que iríamos tocar. Como gostei muito do violoncelo, foi isso que meti em primeiro lugar, e o fagote ficou logo a seguir, em segundo. Mas, o professor disse que eu tinha muito jeito para tocar o fagote, então…”.
A escolha aprimorou-se primeiro na Escola de Música do Conservatório Nacional, depois consolidou-se na Academia Nacional Superior de Orquestra, e agora ganha mundo no Royal Northern College of Music.
Pelo caminho, Erline questionou a sua vocação. “No início, quando entrei no Conservatório, tive algumas dificuldades. Por isso, havia várias alturas em que pensei: “Se calhar não escolhi bem, se calhar não estou preparada para isto”.
As dúvidas, hoje encaradas com normalidade – “não estava ao nível dos meus colegas, porque eles começaram a tocar no segundo ano e eu só entrei no sexto” –, acabaram por atrasar a entrada Academia Nacional Superior de Orquestra. “Não me sentia pronta para entrar no Ensino Superior. E como não queria passar pelo que passei quando entrei no Conservatório, ou seja, chegar e apanhar um grande choque, achei melhor ficar mais um ano e consolidar os conhecimentos, para entrar mais bem preparada”.
Cada vez mais resistente aos impactos das mudanças – “acho que há sempre algum choque” –, Erline aprendeu a superar os próprios limites. “Naquele momento em que pensei: ‘Isto se calhar não é para mim’, tive de dar 200% até perceber que, ok, afinal eu consigo”.
Terminada a Escola de Música do Conservatório Nacional e a Academia Nacional Superior de Orquestra, o verbo conseguir conjuga-se, a partir de Setembro, no Royal Northern College of Music. Se for preciso, a mais de 100%.