O tráfico de pessoas é uma grave violação dos Direitos Humanos, mas…

Sempre que se denunciam violações dos direitos das minorias, e se exigem responsabilidades, há uma maioria – pelo menos no ruído que produz –, que se ofende. Mesmo que estejamos perante graves violações dos direitos humanos, como aquelas que se repetem há anos no Sul de Portugal, persiste um mas de desresponsabilização, pública e privada. O que o caso de Odemira nos diz sobre a forma como acolhemos os imigrantes? Reflectimos juntos n’ O Lado Negro da Força.  Hoje com a jornalista Flávia Brito como convidada.

por Afrolink

O alerta soou há anos. “Muitos dos casos de tráfico para exploração laboral, em Portugal, ocorrem na agricultura e envolvem muitos asiáticos, o que quer dizer que há um fluxo permanente, organizado, feito através das agências de emprego temporário”, avisavam, em 2016, os investigadores da Associação de Estudos Estratégicos e Internacionais (NSIS), Cláudia Pedra e Miguel Santos Neves. Os dois especialistas realizaram, entre 2013 e 2014, o projecto “Comunidades Activas Contra o Tráfico de Pessoas em Odemira e Odivelas”, abordado nessas declarações de 2016 à Associação para a Cooperação sobre População em Desenvolvimento.

Na mesma ocasião, a dupla de investigadores defendou que “Para se combater o tráfico de pessoas, tem de haver coordenação entre Estado e ONG”.

Dois anos depois, no final de 2018, a agência Lusa dava conta da detenção, no Alentejo, de seis indivíduos “por suspeitas de tráfico de pessoas, numa operação que identificou mais de 200 estrangeiros em situação de exploração laboral”.

Meses antes, outro alerta tinha soado do sindicato de inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF): “A exploração laboral nas áreas agrícolas, em particular na região do Alentejo, está fora de controlo”.

Em declarações à RTP, Acácio Pereira, no papel de presidente dessa estrutura  sindical, acrescentava que esse é um crime de difícil investigação, silenciado porque as vítimas têm medo. “Estão numa situação de fragilidade e não têm coragem para o denunciar. Do nosso ponto de vista este é um crime hediondo. Trata-se de um crime do mais grave que pode haver. É o ser humano a explorar o outro ser humano e a explorar a sua fragilidade”.

“Podiam espetar-me uma agulha que não sentia nada”

O fenómeno ganhou maior atenção mediática já em 2019, sobretudo a partir de um relatório da Comissão Europeia.

Segundo o documento, citado pela Rádio Renascença, “entre 2015 e 2016 Portugal registou a proporção mais elevada de vítimas de tráfico laboral por cada milhão de habitantes em comparação com todos os Estados-membros da UE à excepção de Malta”.

Nesse mesmo 2019, uma grande reportagem do Público dava a conhecer que, em Odemira, “em três anos, o número de nepaleses triplicou e o de indianos quintuplicou”. 

Trocados por vidas, os números revelam realidades inumanas. “Podiam espetar-me uma agulha que não sentia nada”, contou uma das imigrantes ouvidas pelo Público, que chegou a Portugal em 2015 para apanhar frutos vermelhos e terminava os dias da mesma forma: com muitas dores de costas.

Passaram-se anos desde os primeiros alertas e, de repente, o país olhou para o problema. Mas o que está a ver? Mais do que a velha narrativa do “nós” e “eles”? Será que vemos os imigrantes como seres humanos com direitos, ou apenas como autómatos com obrigações?

O que esperar de um país que evita enfrentar os problemas e assumir responsabilidades?

Portugal, um país de negreiros?

O mesmo primeiro-ministro que reconhece que “alguma população vive em situações de insalubridade habitacional inadmissível, com hipersobrelotação das habitações”, e relata situações de “risco enorme para a saúde pública, para além de uma violação gritante dos direitos humanos”, parece esquecido da aprovação, pelo Conselho de Ministros, de um regime excepcional e transitório no Perímetro de Rega do Mira.

À luz dessa decisão, válida por 10 anos, o Governo legalizou o alojamento desumano de pessoas em contentores, como se fossem meros utensílios agrícolas, a armazenar o mais próximo possível dos campos de trabalho.

A aparente amnésia do líder do Executivo é reforçada pela alienação de alguns odemirenses, que, nas redes sociais, partilham imagens apelativas do município como forma de combater a “publicidade negativa”. Ao mesmo tempo, assiste-se a uma histeria em torno do complexo Zmar, bem reveladora do valor que damos aos Direitos Humanos.

Para o bastonário da Ordem dos Advogados, por exemplo, parece que a única violação dos Direitos Humanos presente em Odemira é a da requisição das instalações desse empreendimento turístico. Deveria ter sido feita de outra forma? Não deveria de todo ter sido equacionada? As construções foram ali erguidas ilegalmente, por isso a discussão deveria ser outra?

O que sabemos é que “para o senhor bastonário, o direito à propriedade privada é um direito humano precedente ao da saúde pública e à vida de uns quantos nepaleses, indianos, romenos, moldavos ou de outras nacionalidades distantes do circuito dos interesses caseiros dos tugas”, conforme assinalou o jornalista Pedro Tadeu, no texto de opinião publicado no Diário de Notícias, com o título: “Portugal, afinal, sempre é um país de negreiros?”.

As reflexões prosseguem mais logo n’ O Lado Negro da Força, que pode acompanhar no Facebook e no YouTube, a partir das 21h.