O veredito de Chauvin: “Uma condenação justa não é sinónimo de Justiça”

No rescaldo da condenação do ex-polícia norte-americano Derek Chauvin, culpado dos três crimes de homicídio de que foi acusado pela morte de George Floyd, publicamos a análise da filósofa, activista feminista e anti-racista Luísa Semedo. Um excelente ponto de partida para a discussão reservada para a segunda parte do Lado Negro da Força desta semana. Hoje com o comunicólogo Omar Prata como convidado.

Activista feminista e anti-racista, Luísa Semedo  é doutorada em Filosofia pela Universidade Paris-Sorbonne, na especialidade Filosofia Política e Ética, lecciona a cadeira de “Criação e Gestão de Associações e ONGs” na Universidade Clermont-Auvergne e é docente de Filosofia no liceu.

Luísa Semedo

por Luísa Semedo

As notas de Luísa Semedo, no rescaldo da condenação de Chauvin: 

  1. O alívio de ontem ao ouvir três vezes “guilty” para Derek Chauvin não é normal. Este julgamento deveria ter sido uma “formalidade”, mas não foi. O medo foi real de que mais uma vez a justiça não fosse feita, apesar da tortura e assassinato terem sido evidentes. Para além das inúmeras experiências passadas, a estratégia da defesa de Chauvin também contribuiu para esse medo. Os argumentos delirantes apresentados só foram possíveis porque se acreditou que de facto o júri e uma parte de opinião pública poderia cair na narrativa da inocência de Chauvin, e na culpabilidade direta ou indireta de Floyd. Essa narrativa foi e continua a ser promovida pela facho-esfera e até “moderados” exibem argumentos do estilo “o júri foi pressionado pela rua, tinham medo das consequências”, minimizando o facto de que simplesmente foi feita justiça independentemente dos eventuais protestos. 
  1. Mas esses “moderados” têm parcialmente razão, apesar do veredito ser justo, não sabemos qual teria sido o seu teor se não tivesse havido tanta mobilização, e talvez não tivesse sido a exceção que confirma a regra. E a regra é que a violência policial racista e aliás a violência racista tout court fica quase sempre impune. É, portanto, necessário que fique explícito que a mobilização não consistiu numa chantagem com ameaça de violência, mas na simples exigência de justiça. 
  1. Não há progresso sem mobilização, quem tem o poder não abre mão dele por consciência, mas porque houve resistência, e por vezes porque consegue encontrar uma nova forma de continuar a usufruir de privilégios. Os “moderados” que nos dizem, mas há progresso, isso do racismo agora é residual, etc… esquecem-se sempre deste fator. Se hoje nos podem dizer isso de sorriso satisfeito é porque antes de nós andaram por aí uns “identitários”, umas pessoas muito chatas, que não se calavam. E que tiveram também na altura de levar com o antes era pior, vocês é que acendem fogos, falam alto de mais, não dão a mão, vocês é que veem cores, vocês é que são racistas, agora não se pode dizer nada… Sim, houve progresso, e graças a quem? Mas ainda temos muito caminho a percorrer, e os mesmos que dizem, mas há progresso, são os mesmos que criam agora os obstáculos. Pensam que o progresso é fruto de geração espontânea e por isso não é surpreendente que sejam contra qualquer medida de ação afirmativa. Por isso dá tanto jeito não ver cores. Assim não é preciso fazer espaço, partilhar privilégios, ouvir… porque o progresso, essa coisa desencarnada, trata disso. 
  1. O progresso precisa de mobilização coletiva, mas também acontece por vezes graças a iniciativas individuais. Sem a coragem da jovem Darnella Frazier que filmou a tortura e assassinato de George Floyd, a versão do que aconteceu teria sido a primeira versão mentirosa da polícia. No meu caso, também devo o facto de ter podido fazer queixa da agressão do porco nazi, porque a minha amiga Luciana teve a coragem e a presença de espírito de filmar, senão o polícia nem queria aceitar a queixa porque “não valia a pena” (apesar de eu ter fotos do agressor). Poder filmar uma agressão tornou-se uma verdadeira arma de justiça, não é por acaso que em França se quer impedir de poder filmar polícias e divulgar as imagens. Há poucos dias circulou um vídeo da Feijó no Adamastor que também mostrou a importância de ter coragem para filmar injustiças. 
  1. O vídeo da Feijó faz-me pensar na importância dos aliados, daqueles que de facto não se contentam de não ser racistas, mas que são antirracistas. Há poucos dias também circulou um vídeo de um polícia que, indignado, mostrava a que ponto não era possível confundir uma pistola com um taser, no homicídio pela polícia de Daunte Wright. Estas pessoas apesar de viveram num mundo que ainda é racista, são antirracistas, e os aliados antirracistas existem há muito. Apesar de se dizer muitas vezes sobre pessoas racistas “eram homens do seu tempo”, a questão é que havia a possibilidade de não ser, havia a possibilidade de pensar de outra forma, de ser corajoso, de preferir a justiça à ordem, de preferir a igualdade a uma defesa egoísta de grupo. Havia a possibilidade de não fingir que não se via a dor do oprimido, porque pouco importa o tempo, o racismo, para as suas vítimas, sempre foi doloroso. 
  1. O veredito de Chauvin não é o fim de nada, é mais uma etapa. Uma condenação justa não é sinónimo de Justiça. Mas apesar das tentativas de estilo neo-colonialista de dividir para melhor reinar. Porque não tenhamos dúvidas sobre o facto de que as acusações de identitarismo ou de tribalismo (palavras horríveis utilizadas neste contexto a primeira porque é a marca dos supremacistas brancos que utilizam essa denominação até nos nomes que dão às suas organizações e a segunda… será que é mesmo preciso explicar porque é que é no mínimo de mau gosto de falar de tribalismo a pessoas negras?) proferidas pelos oprimidos do antirracismo têm como objetivo consciente ou “ingénuo” de impedir a coesão na mobilização e até de a criminalizar ou criar medos irracionais como a “grande substituição” e ainda de afastar os aliados. Portanto, apesar destas tentativas a mobilização não quebra… e ontem [dia 20] o que mais me tocou não foi a condenação de Chauvin, mas a coesão de quem estava à porta do tribunal a mobilizar-se por uma causa justa, as palavras de ordem, os olhares, o choro, os abraços…

A luta continua!

As reflexões prosseguem mais logo n’ O Lado Negro da Força, que pode acompanhar no Facebook e no YouTube, a partir das 21h.