Onde estão as referências negras? A busca de Mariama continua

Após uma infância e adolescência sem exemplos de personalidades negras que, em Portugal, a pudessem inspirar ou simplesmente acompanhar no dia-a-dia, Mariama Injai lançou, já em adulta, o projecto AfroMary. Um canal para dar a conhecer, através de entrevistas, histórias de africanos e afrodescendentes às quais gostaria de ter sido apresentada desde sempre. “Não havia ninguém como eu”, lamenta.
por Paula Cardoso

O primeiro dia de aulas aconteceu há 27 calendários, mas continua bem presente nas memórias de Mariama Injai, hoje com 33 anos.

“Era a única rapariga negra. Lembro-me de ter toda a gente na sala a olhar para mim. Toda a gente. Nunca tinham visto alguém da minha cor”.

Entre a estranheza e o desconforto, vividos no início da década de 90, em Mangualde, distrito de Viseu, Mariama teve de lidar precocemente com o peso da diferença, precursor de um sentimento de despertença.

“Comecei a questionar-me: Não há ninguém igual a mim?”.

Os anos foram passando, e, com o tempo, a exposição à televisão e a outros meios de comunicação, confirmaram a sensação inicial. “De facto, não havia ninguém como eu, a não ser na minha família”, sublinha, de volta aos primeiros rounds de um duro combate identitário, travado entre a ascendência guineense e a vivência portuguesa.

 

Se, por um lado, tentava encontrar um lugar num mundo aparentemente sem espaço para a sua diversidade étnica, por outro lado, os olhares dos “outros” pareciam dispostos a garantir que ficasse perdida para sempre.

“Tive colegas que os pais diziam: ´Tu brincas à porta com ela. Essa preta não entra em minha casa’. Ouvi estas coisas com 10 ou 11 anos”, conta, enquanto revive as dores da discriminação.

“Esses maus momentos marcaram-me muito, muito, muito”, reforça. “São experiências que traumatizam, e se sobrepõem a muitos momentos bons que passei na altura”.

 Do passado, em Mangualde, para o presente, em Lisboa, a experiência é revivida com um sentido de missão.

“Agora faço o que gostava de ter visto alguém fazer quando era mais nova”, diz Mariama, desfiando o propósito do seu projecto AfroMary.

“Habituada a ser invisibilizada em todos os tipos de meios – TV, media, online –, decidi que iria ter a força suficiente para contrariar isso e ser eu o exemplo”, explica, na descrição da sua marca, disponível no Facebook.

Foco na representatividade e informação

O processo de visibilização, criado por Mariama, assenta na produção e partilha de conteúdos sobre temas maioritariamente afrocentrados, com foco “na celebração e empoderamento da negritude”, e “onde outros jovens negros se possam ver representados”.

Para isso, promove entrevistas com africanos e afrodescendentes de diferentes áreas, incentivando a discussão e desconstrução de temáticas contemporâneas e relevantes.

“Acho que a melhor forma de enaltecer outras pessoas é mostrar o trabalho que fazem. Como sempre quis ver o trabalho de pessoas negras, por causa da dificuldade em encontrar essa representatividade, decidi: É isto que tenho de fazer, documentar estas histórias”.

Online desde os últimos meses de 2018, o AfroMary não só assume o compromisso de criar mais referências negras, como se dedica, cada vez mais, à criação de conteúdos informativos e educativos.

 

“Acredito que o nosso conhecimento é a chave que nos pode tornar mais poderosos”, adianta na sua conta do Instagram, recém-alargada à discussão de conceitos que tendem a inflamar opiniões, como os da apropriação cultural ou das microagressões do quotidiano.

Para quem durante muito tempo sentiu que estava sozinha no mundo, encontrar milhares de pessoas dispostas a seguir, reagir e comentar as entrevistas realizadas no YouTube, as notícias partilhadas no Facebook, ou os conteúdos produzidos no Instagram, tornou-se inspirador e fortalecedor.

“Por ter crescido numa cidade em que a minha era a única família negra, sentia que não havia ninguém com quem pudesse partilhar as experiências de racismo. E, quando tentava falar com os meus amigos brancos, ouvia frases como ‘não é bem assim’, ‘isso não é racismo’”.

O peso da mentalidade conservadora do interior de Portugal

Consciente dos múltiplos e sucessivos silenciamentos que enfrentou no passado, Mariama encontrou no AfroMary não apenas um canal de divulgação, mas também um espaço de superação.

“Tinha de deitar tudo cá para fora”, atira.

Das frases preconceituosas escutadas no dia-a-dia, aos olhares de escrutínio, passando pelas incontáveis conversas sobre racismo, em que a acusavam de ser exagerada e agressiva, todas as partilhas no AfroMary transportam para realidades vividas na primeira pessoa.

“Obviamente que a experiência não é igual para toda a gente…só se fizermos generalizações. Como tal, não falo por toda a gente”, ressalva Mariama, enquanto revisita o crescimento no distrito de Viseu.

“Nas cidades do interior de Portugal há uma linha de pensamento muito conservadora, que divide entre ‘nós’ e ‘os outros’. Se calhar, a única coisa pela qual me valorizavam era o desporto”.

 

O peso da mentalidade conservadora do interior de Portugal

Ex-atleta, filha e irmã de dois ex-futebolistas, Mariama recorda que ponderou seguir Desporto, não apenas pelo bem-estar que sempre lhe trouxe, mas também por sentir que “era o único espaço em que era completamente aceite, em que não era questionada”.

“Até a minha mãe jogou futebol”, observa, adiantando que, no seu caso, o habitat natural eram as pistas de atletismo e não os relvados.

Mas as corridas ficaram para trás, tal como Mangualde, cuja falta de abertura à diferença se tornou ainda mais evidente quando a criadora do AfroMary ganhou mundo. Primeiro para estudar em Coimbra, de onde saiu com uma licenciatura em Engenharia do Ambiente e um mestrado em Gestão Ambiental. Seguiram-se moradas no Porto e na espanhola Valência, até à chegada a Lisboa, há quase dois anos.

De lá para cá, os encontros adiados desde a infância sucedem-se.

“Entrevisto pessoas com quem me vou cruzando naturalmente. Por exemplo, fui fazer um workshop e conheci a Carla Palavra, que trabalha com programação neurolinguística”, revela Mariama, lembrando que a representatividade negra é fundamental para a construção da auto-estima, amor-próprio e auto-confiança da comunidade africana e afrodescendente.

“Eu não tive isto, e isto que eu não tive é exactamente o que queria ter tido: este tipo de entrevistas, de questionamentos…No início até me lembro de pensar: Mas onde é que estavam estas pessoas? Parece que estamos a uma distância super gigante, quando estamos aqui ao lado uns dos outros”. Cada vez mais perto. Ao alcance de um clique.