Os “amigos pretos de casa”, e os brancos saudosistas da senzala

No Portugal de 1934 expunham-se “pretos de casa” – que é como quem diz, lá das colónias – como forma de demonstrar amizade civilizadora. No Portugal de 2020 exibem-se, em horário nobre televisivo, amigos “pretos de casa” como forma de legitimar racistas. É o “país dos brancos costumes” em todo o seu esplendor, um dos temas que estará em análise na emissão de hoje de O Lado Negro da Força, esta noite com o líder comunitário José “Sinho” Baessa de Pina como convidado.

por Paula Cardoso

Caros portugueses brancos que não vêem cores, eu vejo-vos em toda a vossa branquitude. Por isso, reconheço a dificuldade que têm em distinguir “preto” de “negro”. Por isso, volta e meia acompanho as vossas inflamadas trocas de argumentos pseudo-cientificamente sustentados sobre o termo que deve ser usado para se referirem aos portugueses negros. Também assisto à reprodução indiscriminada da ideia de que “tanto faz preto ou negro”, porque o que conta não é aquilo que se diz, mas a forma como se diz – sem maldade, entenda-se.

Caros portugueses brancos que não vêem cores, podem inclusivamente acrescentar que o vosso “amigo preto de casa” nunca se importou de ser chamado de preto, “porque é o que ele é”. Podem mesmo insistir no fado de que “tudo agora é racismo”, e, por isso “já não se pode dizer nada”.

Caros portugueses brancos que não vêem cores, informo que no verbo e no substantivo PODER mora toda a vossa confusão. Porque se habituaram a ter o exclusivo do poder, e a poder decidir, ao longo dos últimos séculos de História, aquilo que os negros estão autorizados a ser.

E, se em 1934, éramos “selvagens” a precisar de “civilização”, “animais de senzala”, e, por isso, material de exibição em zoos humanos – de que é exemplo a 1.ª Exposição Colonial Portuguesa de 1934 –, em 2020 somos, em pleno horário nobre televisivo, os “pretos de casa”.

Aparentemente, no “país dos brancos costumes” – grata pelo título, Joana Gorjão Henriques – vale tudo para legitimar poderes, validar agendas políticas, justificar o injustificável.

Caros portugueses brancos que não vêem cores, eu vejo-vos e ouço-vos, e tenho todo o direito de exigir que me vejam e ouçam também. Não apenas quando digo o que acham aceitável dizer – “tu não eras assim, agora estás uma radical, é impossível falar contigo” –, mas sobretudo quando digo o que consideram que não tenho o direito de dizer: que Portugal é um país estruturalmente racista. Sim, Portugal é um país estruturalmente racista, o que não equivale a dizer que todos os portugueses são racistas. Isto é algo que já todos teriam percebido se estivessem abertos ao diálogo. 

Caros portugueses brancos que não vêem cores, peço-vos, com toda a empatia, que não continuem a debater aquilo que me afecta directamente, e a milhares de outras pessoas com a mesma pertença do que eu, como se fôssemos objectos de um qualquer estudo sociológico.

Nós somos sujeitos – não coisas – e, enquanto sujeitos reiteramos: em Portugal, o uso da palavra preto para se referirem a pessoas negras é ofensivo para uma grande parte dessas pessoas. Não o será para todas, mas de quantas precisam para perceberem que esta não é uma discussão de semântica?

Eu e TODAS as pessoas negras que conheço, e  consideram pejorativo o uso da palavra preto para as definir, coincidem nesta experiência: nunca a ouviram “apenas” como elemento de caracterização fenotípica. Preto, na minha experiência e das “minhas” pessoas, sempre veio carregado de insultos – de preto de merda para cima –, embrulhado em visões estereotipadas e ataques à nossa condição humana – “vi logo, tinha de ser preto”.

Caros portugueses brancos que não vêem cores, e até têm “amigos pretos de casa”, informo-vos que é um privilégio branco não ver cores, da mesma forma que a vossa resistência em discutir o racismo é uma expressão clara da fragilidade branca.

(Para maior compreensão dos conceitos de privilégio e fragilidade branca, linkam-se duas sugestões de leitura)

Caros portugueses brancos que não vêem cores, e até têm “amigos pretos de casa”, eu vejo-vos, eu ouço-vos, mesmo quando isso me causa dor, revolta e angústia, porque em vez de defender a ‘devolução’ ou o confinamento de pessoas e de comunidades que por algum motivo me parecem distantes – e até inacessíveis –, eu procuro sempre construir entendimentos.

Sem ódios disfarçados de “boa portuguesidade”, nem complexos de superioridade étnica. Faço-o com empatia, e com o suporte de uns quantos amigos brancos de casa. E vocês?

O espaço de diálogo sobre o “país dos brancos costumes” expande-se mais logo, a partir das 21h30, em O Lado Negro da Força, o talk-show online das noites de quintas-feiras. Com José Rui Rosário, Pedro Filipe, Paula Cardoso, Mariama Injai e Danilo Moreira. Acompanhe O Lado Negro da Força, no Facebook e no YouTube.

Vem isto a propósito de….

Na última segunda-feira, Miguel Sousa Tavares entrevistou, em horário nobre, na TVI, o candidato à Presidência da República, André Ventura, no arranque do que foi apresentado como um novo espaço televisivo que, a cada semana, dará a conhecer os candidatos a São Bento. Durante esse tempo de antena, o líder do partido Chega, popularizado pelas suas propostas racistas e xenófobas – entre outros atropelos à democracia – teve a oportunidade de destilar o seu ódio de estimação contra a comunidade cigana, e de rejeitar acusações de racismo, tudo com a cumplicidade do entrevistador. Em vez de confrontar André Ventura com as inúmeras propostas racistas que tem difundido, Miguel Sousa Tavares lançou-lhe várias perguntas ao melhor estilo populista: “Tem algum amigo negro?”. Vários, respondeu o candidato. “Amigos de casa?”, insistiu o entrevistador. “Sim”, respondeu Ventura, acrescentando até que alguns desses amigos estão no Chega. Já em relação à comunidade cigana, Miguel Sousa Tavares quis saber como André Ventura reagiria se uma filha se casasse com um cigano. “Não ia gostar”, esclareceu. A nós ocorre escrever que, para a propaganda ficar completa, bastaria acrescentar: e se fosse uma cigana? Talvez assim ficasse resolvida a preocupação expressa pelo candidato de extrema-direita sobre os direitos da mulher cigana.