Pioneiro contra o “crime da colonização”, Mário Domingues fez da escrita arma

Por ocasião dos 100 anos de publicação da série “Para uma História da Colonização Portuguesa” no jornal “A Batalha”, realiza-se hoje, dia 18, a partir das 18h30 uma sessão evocativa de Mário Domingues, na Câmara Municipal de Lisboa. A iniciativa, do vereador Rui Tavares, incluirá um momento de leitura de textos do autor e contará com a presença da professora e ensaísta Inocência Mata e do investigador José Luís Garcia. O Afrolink aproveita a ocasião para republicar um texto sobre a vida e obra do escritor, que nos deixou cerca de 170 livros de vários géneros, e uma voz activa contra o colonialismo.

por Paula Cardoso

Portugal estava longe de reconhecer o génio artístico de Almada Negreiros, quando o então jornalista Mário Domingues o apontou como “o desenhador de maior talento” que o país havia visto nos últimos tempos.  Na altura, algures nos anos 20 do século passado, as palavras do ainda aspirante a escritor tornaram-se motivo de chacota entre movimentações culturais. “Recordo-me de entrar na Brasileira, que era um centro intelectual do Chiado daquela época, e de me troçarem”, contou mais tarde o autor, explicando que publicou a crítica a Almada Negreiros antes sequer de a pintura ganhar expressão na sua obra. Daí a referência a desenhador, em vez de pintor.

O episódio, relatado à RTP na primeira pessoa, num programa de 1970, é bastante relevador do seu carácter visionário e pioneiro, demonstrado de forma cabal pelo sociólogo José Luís Garcia.

“Mário Domingues é o primeiro a defender claramente a independência das colónias portuguesas de forma coerente num jornal português de grande popularidade”, atesta o investigador, em declarações ao Público.

Diferença racial politizada

À mesma publicação, José Luís Garcia, que há mais de duas décadas se dedica a estudar a vida e obra do jornalista e escritor, nota como o mesmo tirou partido da sua diferença racial e a politizou. “Ele é um mulato que pega nas leituras que faz sobre a identidade e os direitos dos negros, a que muitos não tinham acesso, e adapta-as à realidade que conhece.”

Nascido na Ilha do Príncipe em 1899, Mário Domingues cresceu em Lisboa sob os cuidados da avó paterna, algo assombrado por um vazio ancestral.

“Havia nele uma tristeza que vinha da ausência da mãe, e do facto de ter descoberto que as pessoas que lhe mentiram sobre ela foram das que mais amou na vida. Essa mágoa ficou. Falava muito da mãe, do facto de ela ser negra”, disse José Luís Garcia, ao Público, baseando-se em testemunhos de pessoas que privaram com o escritor.

Filho de uma africana que, ainda menor, tinha sido arrancada de Angola e forçada a trabalhar numa roça são-tomense, Mário Domingues assumiu precocemente que a mãe tinha morrido.

Na realidade, porém, o afastamento familiar resultou de uma das inúmeras violências cometidas pelo regime português nos territórios colonizados.

Menino entre gigantes

Enviado para Lisboa com apenas 18 meses, Mário deveria ter sido acompanhado pelos pais, “mas o capataz da roça onde a mãe trabalhava não a libertou, como vingança pelo facto de António Domingues [o pai] o ter denunciado por maltratar e violentar o pessoal”.

A história é recordada pelo sociólogo João Pedro George, num artigo publicado em 2019, na revista Sábado.

No texto, o também escritor apresenta Mário Domingues como “um dos vultos mais interessantes da literatura portuguesa”.

“Ontem, como ainda hoje, um escritor português negro era um caso anómalo. Só um indivíduo de infinita persistência e coragem seria capaz de o conseguir. E, principalmente, de ombrear com os colegas de profissão”, considera João Pedro George nessa publicação.

O sociólogo acrescenta à sua leitura sobre a história do são-tomense, a leitura que o próprio nos deixou em obra.

Autor de uma extensa e diversificada produção literária, onde se cruzam vários géneros, como aventuras, policiais e romances, Mário Domingues assinou também um registo auto-biográfico.

O livro, intitulado “O menino entre gigantes”, é citado por João Pedro George enquanto testemunho de uma consciência racial precocemente adquirida.

“Era a primeira vez que me faziam sentir, de maneira humilhante, a cor negra da minha pele. Talvez não acredites, Marisa adorada: eu nunca fizera até então reparo em que era muito diferente das pessoas que me cercavam”.

As palavras, extraídas dessa obra de 1960 – que dedicou à mãe que não conheceu –, surgem na voz de um personagem criado à medida do escritor. Trata-se de Zezinho, menino mulato e educado por uma família burguesa de Lisboa.

Do Comércio para o Jornalismo

Desde cedo apaixonado pelas artes e lides literárias, Mário Domingues foi paternalmente encaminhado para estudar Comércio.

“Fiz o curso com a melhor das boas vontades, mas muito no íntimo contrariado. Todos os meus momentos de ócio eram dedicados do estudo de Literatura, de Arte, de Sociologia, etc”, recordou à RTP, naquele programa de 1970.

A forte orientação para a escrita acabou por vencer a via convencional: aos 19 anos, trocou o trabalho de ajudante de guarda-livros para se juntar à redacção do jornal anarquista A Batalha.

Não só pôde profissionalizar a veia literária – antes já tinha publicado textos na Alba, revista editada por estudantes de Medicina –, como pôde colocar a escrita ao serviço de uma causa que o mobilizou: a luta contra o colonialismo.

Combater a tirania colonial

No artigo “O ideal da independência”, de 1922, o então jornalista identifica, em quase toda a África portuguesa, um “espírito separatista”, “revigorado a cada perseguição, robustecido pela própria tirania de alguns brancos sem escrúpulos”.

Nas palavras de Mário Domingues, citadas pelo Público, “(…) o separatismo alojou-se definitivamente no cérebro e no coração do negro escravizado e vexado por uma colonização iníqua.”

Acérrimo defensor da libertação, o escritor escreveu também que “às infâmias praticadas pelo despotismo branco, em África, só um ideal de independência se pode opor com eficácia.”

Nesse sentido, apelou a que os negros se unissem “numa consciência rácica”, sublinhando que “a liberdade não se concede, conquista-se”, e que “a colonização não pode ser definida senão numa palavra – crime”.

Os apelos à luta contra o opressor estão presentes em dezenas de artigos assinados por Mário Domingues, que, conforme assinala o sociólogo José Luís Garcia, elencou “exigências muito concretas” para a auto-determinação de todos os povos.

O caderno reivindicativo incluía, por exemplo, o fim dos castigos corporais, a equiparação de salários entre brancos e negros e a amnistia dos presos políticos.

“Quase todo o seu trabalho jornalístico tinha que ver com o facto de ele ser um homem negro a trabalhar num meio dominado por homens brancos, e a viver numa sociedade em que aos negros não eram reconhecidos os mesmos direitos que aos brancos”, analisou José Luís Garcia ao Público.

Activismo poliglota

Os posicionamentos de Mário Domingues foram enformados por um acervo de leituras internacionais – com destaque para os escritos de W.E.B. Dubois –, facilitadas pela veia poliglota: estava familiarizado com o francês, o inglês e o alemão.

De leitor ávido a escritor prolífico, a passagem pelo jornalismo, onde assinou reportagens épicas e críticas de arte, cumpriu-se como um “interregno na carreira das ambições”, conforme o próprio descreveu à RTP.

“Cheguei à conclusão que persistir na minha carreira jornalística era prejudicar a minha carreira nas Letras. Eu tinha a ambição de ser um escritor, apenas um escritor”, declarou à televisão pública, reconhecendo a ousadia das suas aspirações.

“Seria uma audácia em Portugal querer viver única e exclusivamente do livro. Em todo o caso, aventurei-me, porque quem não arrisca não petisca”.

Cerca de 170 livros publicados

Além de ter conseguido viver dos livros – “exactamente como ambicionava desde a adolescência” –, ultrapassou “em número de títulos e extensão de colaboração dispersa, a obra dos outros escritores profissionais seus contemporâneos, Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro”.

A comparação é apresentada pelo escritor e crítico de arte Rodrigues Vaz, que, em 2012, no Cultura – jornal angolano de Artes e Letras, nos dá a conhecer várias obras da bibliografia de Mário Domingues.

A contabilidade estende-se a cerca de 170 títulos, muitos escritos sob pseudónimos estrangeiros, e com um forte desejo de emancipação.

“Eu escolho os temas, eu encaro-os conforme me apetece, não tenho de obedecer a uma regra superior à minha, a não ser aquelas regras da ética profissional, da ética do escritor, que tem a obrigação de escrever a verdade mesmo que ela pessoalmente lhe doa”.

O compromisso com a “verdade” foi explicado à RTP entre referências a figuras históricas, sugerindo que o escritor se manteve sempre fiel aos manifestos independentistas, embora, a determinada altura, tenha começado a biografar personalidades indissociáveis das opressões do regime português.

Antes de encerrar o derradeiro capítulo da sua história – morreu na Costa de Caparica, em 1977 – Mário Domingues resumiu assim a sua vida profissional: “Acho que em 50 anos de trabalho intenso não perdi muito o meu tempo”.

Pelo contrário, mais de quatro décadas após a sua morte, Portugal continua a desperdiçar tempo no reconhecimento da sua obra. Até quando?