Por que importa eleger Anabela Rodrigues? – a opinião de Mamadou Ba

As próximas Legislativas “são um referendo à democracia”, considera Mamadou Ba, num artigo de opinião que o Afrolink publica em exclusivo. O activista anti-racista sublinha que a 10 de Março “seremos chamados a escolher entre uma sociedade em que ser diferente não pode ser motivo para ser violentado, e uma sociedade em que a diferença legitima a violência e a discriminação”. De igual modo, “seremos chamados a enfrentar o racismo que alimenta a negrofobia, a ciganofobia, a islamofobia e a xenofobia, e que já estilhaçou os telhados de vidro desta democracia de baixa intensidade que convive com uma certa fatalidade com a fascização da disputa democrática ao acomodar organizações de extrema-direita no jogo eleitoral”. Importa, assim, reconhecer que “escolher Anabela Rodrigues, mulher negra, dirigente associativa e lutadora pelos direitos das pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade, nomeadamente negras e imigrantes, será precisamente escolher enfrentar a letargia da fatalidade institucional que, através do jogo eleitoral, nos quer impor uma normalização do racismo, enquanto alternativa política de um projeto de sociedade”. Para Mamadou Ba, escolher a candidata número quatro do BE pelo círculo de Lisboa, “é precisamente recusar esse jogo do fatalismo e da inevitabilidade do mal menor, sempre que somos confrontados com o avanço do fascismo”. Prosseguindo na sua análise, o dirigente do SOS Racismo defende que Anabela “representa a articulação das lutas contra o racismo, o machismo e a exploração laboral e as suas inerentes desigualdades estruturais”, e antecipa o seu sentido de voto. “Não só votarei obviamente à esquerda, como votarei no BE para garantir que Anabela Rodrigues seja eleita”. 

Texto de Mamadou Ba

Foto de Rafael Medeiros

Para definir o meu voto para as eleições legislativas de 10 de março, confrontei os programas dos partidos de esquerda. Nenhum me satisfaz inteiramente. No que concerne à relação capital-trabalho, por exemplo, mesmo achando que o BE e o PCP apresentam propostas obviamente mais avançadas do que o social-liberalismo do PS, noto que são propostas fundamentalmente reformistas e pouco disruptivas. São propostas que não parecem ter em conta que o modelo económico vigente que estrutura o paradigma de governação dos recursos públicos é incompatível com a ideia de bem comum e justiça social.

Por um lado, noto um quase deserto programático quanto ao capitalismo bélico no sul global, e à urgência de resgatar o internacionalismo como o melhor instrumento para construir solidariedades globais e defender a dignidade humana em qualquer parte do mundo. Por outro lado, na questão das desigualdades estruturais, nomeadamente na questão racial, considero também que as propostas dos partidos de esquerda continuam infelizmente bastante tímidas, para não dizer mesmo muito pobres. Poder-se-á dizer talvez que, desde 2019, há um certo avanço em relação àquilo que se via em anteriores eleições. De então para cá, a questão racial e da representatividade política de pessoas não-brancas na disputa democrática ganhou, de facto, uma certa centralidade no debate político. O que, aliás, resultara na eleição direta de três mulheres negras para a Assembleia da República, pela primeira vez em democracia: Beatriz Gomes Dias pelo BE, Joacine Katar Moreira pelo Livre (antes de ser deputada independente), e Romualda Fernandes pelo PS. Disse-o nas legislativas de 2019 e volto a dizê-lo de novo: enquanto os partidos políticos não tiverem a coragem de colocar pessoas racializadas a encabeçar listas nacionais, a tão propalada questão da representatividade será simplesmente uma mera questão de mercearia política ao sabor de taticismos eleitoralistas, sem qualquer compromisso programático.

Como se admite ou se explica que, depois de quase 50 anos de democracia, continuemos ainda a não ter pessoas negras e ciganas em lugares diretamente elegíveis para a Assembleia da República? Esta ausência diz mais sobre a indigência política do sistema partidário do que sobre a pressuposta “imaturidade política” das comunidades racializadas.

Negros, ciganos e imigrantes são imputáveis para, com os seus impostos, contribuírem para a nossa vida coletiva, mas continuam indesejáveis para os lugares de elaboração, definição e execução das políticas de gestão dos seus impostos.

Apesar de todos os buracos programáticos das propostas em disputa à esquerda, registo com uma certa satisfação o quarto lugar na lista do BE da Anabela Rodrigues (Belinha, para a malta do movimento), uma mulher negra vinda de uma longuíssima luta no terreno. Teria naturalmente preferido vê-la encabeçar a lista – com a certeza de que seria efetivamente eleita, qualquer que fosse o resultado -, mesmo que o quarto lugar, face ao quadro político atual, pareça corresponder a uma possibilidade real de eleição. Como teria gostado de ver pessoas ciganas em lugares elegíveis nas listas para estas legislativas.

Ter pessoas como a Anabela Rodrigues na AR é justamente uma forma de não desperdiçar o ensejo que se conseguiu em 2019, com a eleição direta de três deputadas negras, pela primeira vez na história da democracia. Portanto, não me venham com conversas, porque sei que é mais importante o programa do que o seu intérprete, mas sem intérprete adequado, a execução de qualquer programa pode ser comprometida, ou de ainda mais difícil concretização.

E a isto acresce ainda que acredito fundamentalmente que não se pode nem se deve continuar a fazer política por procuração. Todo o sujeito político de uma qualquer condição social deve poder desempenhar o papel de protagonista na busca e construção de soluções para os seus problemas.

Não haverá emancipação nem libertação total sem a superação da ordem capitalista, hétero-patriarcal-normativa e racial que subalterniza as suas vítimas na busca da rutura com o sistema opressivo.

Mas nenhuma transformação radical das relações de força na sociedade se fará pela metade ou por omissão de determinados fatores de discriminação e desigualdade e, muito menos, dos seus principais protagonistas enquanto vítimas e potenciais atores da mudança.

Tal como não se vislumbra nenhuma luta consequente por mais e melhores direitos laborais sem os operários, nem se imagina derrotar o patriarcado sem as mulheres, também não será possível imaginar vencer o racismo sem as pessoas racializadas.

Numa altura em que vivemos uma encruzilhada, em que a nossa democracia e as suas instituições estão sob ataque, em que o neoliberalismo económico alavanca o fascismo e o racismo para lhes assegurar um lastro de normalização institucional, através da disputa eleitoral, as próximas eleições são um referendo à democracia. Nestas eleições, seremos chamados a escolher entre uma sociedade em que ser diferente não pode ser motivo para ser violentado, e uma sociedade em que a diferença legitima a violência e a discriminação. Nestas eleições, seremos chamados a enfrentar o racismo que alimenta a negrofobia, a ciganofobia, a islamofobia e a xenofobia, e que já estilhaçou os telhados de vidro desta democracia de baixa intensidade, que convive com uma certa fatalidade com a fascização da disputa democrática ao acomodar organizações de extrema-direita no jogo eleitoral.

Por isso, escolher Anabela Rodrigues, mulher negra, dirigente associativa e lutadora pelos direitos das pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade, nomeadamente negras e imigrantes, será precisamente escolher enfrentar a letargia da fatalidade institucional que, através do jogo eleitoral, nos quer impor uma normalização do racismo, enquanto alternativa política de um projeto de sociedade. Escolher Anabela Rodrigues é precisamente recusar esse jogo do fatalismo e da inevitabilidade do mal menor, sempre que somos confrontados com o avanço do fascismo.

O combate contra a violência seletiva do capitalismo e do fascismo não avança sem o combate contra o racismo, o machismo e o privilégio de classe.

Anabela Rodrigues representa a articulação das lutas contra o racismo, o machismo e a exploração laboral e as suas inerentes desigualdades estruturais. Por isso, não só votarei obviamente à esquerda como votarei no BE para garantir que Anabela Rodrigues seja eleita.

Face a uma extrema-direita racista de vento em popa, eleger Anabela Rodrigues para a Assembleia da República é reforçar a luta contra o racismo, o machismo e o privilégio de classe. Porque a sua eleição é a garantia de que o combate contra o racismo terá voz própria, e juntar-se-á às vozes de todas as outras lutas que contam para a defesa da dignidade humana.

Mamadou Ba,

Bolonha, 21-02-24