Quem inventou o negro? Porquê e para quê? – As reflexões que Baldwin nos deixou

Que referências nos acompanham na nossa construção de negritude e africanidade? Quais os livros, filmes, séries, discografia ou palestras que nos ajudaram a desmontar a armadilha da história única? Publicamos, uma vez por semana, sugestões que espelham esse despertar identitário. “I am not your negro”, documentário que une os génios de James Baldwin (escrita), Raoul Peck (realização), e Samuel L. Jackson (narração), é, para o Afrolink, uma produção de visualização obrigatória.
por Paula Cardoso

A voz de Samuel L. Jackson carrega dor, revolta, injustiça, sofrimento, mas também esperança. No tom exacto das emoções que as palavras de James Baldwin transmitem, a narração de “I am not your Negro” transporta-nos para o turbilhão racial da América, na longa e sangrenta luta pelos direitos civis.

O documentário nasceu das páginas de “Remember This House”, romance que a morte de Baldwin, em 1987, interrompeu.

O livro, segundo nos conta a produção de Raoul Peck, parte do compromisso assumido pelo escritor de “contar a história da América, através das vidas de três dos seus amigos que foram assassinados: Medgar Evers, Martin Luther King Junior e Malcom X”.

Todos símbolos de um movimento que continua a pagar com a morte a luta pela igualdade racial.

A trajectória dos três ícones, indissociável da de Baldwin – e de tantos outros afroamericanos que marcharam e marcham contra a opressão, pela libertação negra –, começou a ser documentada pelo escritor em 1979, mas “nunca foi além das 30 páginas de anotações”, revela-nos o documentário.

Estava em curso uma “missão impossível”, conforme o romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social, acabaria por descrever.

O caminho de regresso a casa, para quem há muito se tinha mudado para França – numa fuga ao racismo e homofobia de que era alvo nos EUA -, acabou por se cumprir sob a direcção de Raoul Peck, a quem Gloria Karefa-Smart, irmã do escritor, confiou as notas de “Remember This House”.

“Aqui está Raoul. Saberás o que fazer com isto”.

Estava consumada a passagem do testemunho de Baldwin, já depois de uma batalha jurídica centrada no adiantamento de 200 mil dólares que o autor tinha recebido da editora.

“I am not your Negro”, estreou-se em 2016, e chegou a estar na corrida aos Óscares, na categoria de Melhor Documentário.

O prémio da Academia de Hollywood não veio, mas o contributo desta produção para o entendimento das tensões raciais que atravessam a América é inequívoco.

“Não somos os ‘vossos’ negros, somos seres humanos”

“O que as pessoas brancas devem tentar compreender, olhando para dentro dos seus corações, é, antes de mais, a razão de ter sido necessário criar a figura do ‘negro’”, defende Baldwin, apelando à reflexão sobre a origem de uma construção social que oprime e marginaliza cidadãos em função da cor da pele.

O escritor, cujo livro de estreia foi o aclamado “Go tell it on the Mountain” (“Se o disseres na montanha”) – que apenas chegou a Portugal no ano passado, 65 anos após a publicação –, coloca-nos perante uma evidência.

“Nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado”, observou Baldwin, acrescentando: “O confronto nem sempre traz uma solução para o problema, mas enquanto não enfrentarmos o problema, não teremos solução”.

O problema é o racismo, exposto nas imagens e mensagens que fazem de “I am not your negro” um documentário com relevância histórica. O problema é continuarmos sem reconhecer que as sociedades em que vivemos estão racialmente contaminadas por séculos de elevação do branco e opressão do negro. O problema é não aceitarmos que a estrutura social que herdámos está automatizada para favorecer brancos e subjugar negros. Ou, como escreveu, Baldwin: “A História não é o passado. É o presente. Carregamos a História connosco. Nós somos a nossa História. Se fingirmos que não, estaremos a ser criminosos, literalmente. Eu comprovo-o. O mundo não é branco. Nunca foi branco, nem pode ser branco. Branco é a metáfora do poder”.

Um poder que criou o negro para se perpetuar, que lhe retirou humanidade para o subjugar. Entenda-se de uma vez por todas, a necessidade de se enfrentar esses demónios. Porque, conforme sentenciou Baldwin, que parafraseamos no plural: “Não somos os ‘vossos’ negros. Somos seres humanos”.