Quem tem medo do feminismo negro? – romper a máscara do silêncio

Que referências nos acompanham na nossa construção de negritude e africanidade? Quais os livros, filmes, séries, discografia ou palestras que nos ajudaram a desmontar a armadilha da história única? Publicamos, neste espaço, sugestões que espelham esse despertar identitário. A obra “Quem tem medo do feminismo negro”, da autora brasileira Djamila Ribeiro, é um contributo essencial para fazer cair a nossa “máscara de silêncio”.

por Afrolink

Numa semana em que a discussão feminista subiu de tom, conforme já referido no artigo “Um coro de vozes para afinar o feminismo…longe do Twitter”, o Afrolink propõe mais de 100 páginas de argumentos que permitem aprofundar o debate.

Falamos da obra “Quem tem medo do feminismo negro?”, da escritora brasileira Djamila Ribeiro, que também publicou “Pequeno Manual Antirracista” e “Lugar de Fala”.

No livro que hoje destacamos, a mestre em Filosofia Política reúne 34 artigos de opinião, publicados entre 2014 e 2017, no blogue da revista Carta Capital.

“Muitos textos reagem a situações do cotidiano — o aumento da intolerância às religiões de matriz africana; os ataques a celebridades como Maju ou Serena Williams – a partir das quais Djamila destrincha conceitos como empoderamento feminino ou interseccionalidade”, lê-se na sinopse.

Djamila, prossegue a apresentação, “também aborda temas como os limites da mobilização nas redes sociais, as políticas de cotas raciais e as origens do feminismo negro nos Estados Unidos e no Brasil, além de discutir a obra de autoras de referência para o feminismo, como Simone de Beauvoir”.

O resgate ancestral pela leitura de autoras negras

Mais do que uma oportunidade de percorrermos quatro anos de opiniões da filósofa e activista, “Quem tem medo do feminismo negro?” ajuda-nos a conhecer e reconhecer inúmeros mecanismos de silenciamento das histórias negras, a partir das vivências da própria Djamila.

“Na maior parte da minha infância e adolescência, não tinha consciência de mim. (…) Mas todo dia eu tinha que ouvir piadas envolvendo meu cabelo e a cor da minha pele. Lembro que nas aulas de história sentia a orelha queimar com aquela narrativa que reduzia os negros à escravidão, como se não tivessem um passado na África, como se não houvesse existido resistência. Quando aparecia a figura de uma mulher escravizada na cartilha ou no livro, sabia que viriam comentários como “olha a mãe da Djamila aí”. Eu odiava essas aulas ou qualquer menção ao passado escravocrata — me encolhia na carteira tentando me esconder”. 

O relato, que encontramos na introdução da obra sob o título “A máscara do silêncio”, mostra-nos como o despertar identitário aconteceu na história da filósofa, e como a leitura de autoras negras foi fundamental nesse processo.

“A sensação de não pertencimento era constante e me machucava, ainda que eu jamais comentasse a respeito. Até que um dia, num processo lento e doloroso, comecei a despertar para o entendimento. Compreendi que existia uma máscara calando não só minha voz, mas minha existência”.

O ponto de viragem aconteceu com a entrada para a Casa de Cultura da Mulher Negra.  “Foi lá que tive a primeira oportunidade de um trabalho que valorizava minha formação, oferecida por mulheres negras feministas de facto. Redescobri minha força. Trabalhei quase quatro anos na biblioteca da Casa de Cultura, onde entrei em contacto com bell hooks, Carolina Maria de Jesus, Lima Barreto, Sueli Carneiro, Alice Walker, Toni Morrison. Fui aprendendo a falar por outras vozes, a me enxergar através de outras perspectivas”.

A escritora brasileira nota que o acesso a autoras e autores negros lhe permitiu recuperar o orgulho nas suas raízes, e a reconfigurar o mundo de forma a finalmente se sentir confortável nele.
“Foi um divisor de águas na minha vida”, sublinha, partilhando alguns dos pensamentos que marcaram o seu renascimento.

Estilhaçar a máscara do silêncio

“Grada Kilomba, pesquisadora e professora da Universidade de Humboldt, faz uma analogia interessante entre a máscara que as pessoas escravizadas eram obrigadas a usar cobrindo a boca e a afirmação do projecto colonial de impor silêncio, um silêncio visto como a negação de humanidade e de possibilidade de existir como sujeito. Com ela, aprendi que ‘a máscara não pode ser esquecida. Ela foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte do projecto colonial europeu por mais de trezentos anos’”.

Ainda sobre o conceito da máscara, a filósofa recorda os ensinamentos da escritora Conceição Evaristo, que entrevistou em 2017.  “Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio. Penso nos feminismos negros como sendo esse estilhaçar, romper, desestabilizar, falar pelos orifícios da máscara”, disse Conceição Evaristo na ocasião.

Djamila acrescenta: “Ao perder o medo do feminismo negro, as pessoas privilegiadas perceberão que nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mulheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ataques, a humanidade toda corre perigo”.