“Resgate” moçambicano na Netflix,
pronto para soltar mais África no ecrã

Cerca de um ano depois da apresentação, o filme moçambicano “Resgate” chega à maior plataforma mundial de streaming, tornando-se a primeira produção de um país africano de língua portuguesa a entrar para o catálogo da Netflix. A estreia, esta quarta-feira, 29, representa o culminar de uma longa caminhada para a equipa da Mahla Filmes, reconstituída pelo Afrolink. A começar em 2016.

Texto: Paula Cardoso
Fotos: Mahla Filmes

Filmar, estrear, e…conquistar um lugar na Netflix! À primeira leitura, o trio de verbos pode soar a uma adaptação cinéfila da máxima latina “Veni Vidi Vici”. Mas, qualquer semelhança desta história com a velocidade de ascensão contida nessa expressão é pura coincidência, garante Mickey Fonseca.

“Colocar o “Resgate” na Netflix foi uma dança muito grande”, conta o guionista, realizador e co-produtor do primeiro filme moçambicano e dos países africanos de língua portuguesa a estrear-se na Netflix.

A entrada para o catálogo da poderosa plataforma de streaming, confirmada para amanhã, 29, cumpre um destino traçado desde os primeiros planos de gravação.

“O nosso sonho sempre foi pôr o filme na Netflix. Então lutámos para isso”, destaca o realizador, fazendo rewind ao “processo super longo e muito stressante”, forjado a partir da Mahla Filmes.

Uma montra chamada crowdfunding

A história conta-se a três vozes: além do realizador Mickey, protagonizam esta acção Pipas Forjaz, director de fotografia e edição, e Maura Quatorze, a responsável de comunicação e produção.

“Este projecto veio para o público em 2016, com o lançamento de uma campanha de angariação de fundos para produção do filme”, recorda Maura, adiantando que a recolha “não atingiu nem 10% da sua meta em termos financeiros”.

Apesar de ter ficado muito aquém do pretendido, a iniciativa acabou por funcionar como uma montra para o “Resgate”. Segundo a também script supervisor do projecto, o crowdfunding criou expectativa em torno da produção, e, mais do que isso, fez nascer uma comunidade de seguidores a apoiantes.

Cinema, TV, DVD e Netflix

Quatro anos depois da campanha de partida, o suporte do público multiplica-se além-fronteiras e por vários canais.

“Em Moçambique, Portugal, e nos vários festivais por onde o filme passou, acho que já ultrapassámos os 10 mil espectadores”, calcula Pipas, lembrando que o “Resgate” também chegou ao pequeno ecrã – pela grelha da STV –, e está disponível em DVD, “em cerca de 30 lojas na cidade de Maputo, e algumas em Inhambane”.

Os números prometem ganhar expressão mundial com a entrada na Netflix, inicialmente prevista para 1 de Julho, mas adiada de forma a permitir a dobragem para inglês.

A derradeira etapa é celebrada pela equipa do “Resgate” com honras de marco nacional.

“Metemos a bandeira moçambicana na Netflix, e a Netflix está em todo o mundo”, sublinha Pipas Forjaz, confiante no efeito multiplicador desta viagem: “Que seja o primeiro de muitos filmes moçambicanos”.

Resgatar novos valores

A vontade de abrir portas, nomeadamente “para o financiamento de futuras produções”, ressalta igualmente das palavras de Maura.

“Esperamos que esse efeito vá além da Mahla Filmes, e que alcance outros produtores moçambicanos, especialmente uma nova geração de produtores, de realizadores, de guionistas, de actores, que tentam levar o seu trabalho mais longe, e que precisam bastante de financiamento”.

A responsável de comunicação e produção, e também script supervisor da equipa lembra que “a indústria cinematográfica moçambicana é muito pequenina”, pelo que necessita de “todo o apoio que puder aparecer”, no sentido de “encorajar as narrativas nacionais, as histórias contadas pelas vozes de moçambicanos”.

As palavras de Maura fundamentam-se na ‘corrida de obstáculos’ que o “Resgate” teve de realizar para chegar ao grande ecrã.

Fotografia, a partir da direita: Mickey Fonseca, Gil Alexandre, Maura Quatorze, Pipas Forjaz e Laquino Blacka

Maratona de contactos

Além de ter contornado a falta de abertura das empresas moçambicanas para formas alternativas de publicidade, de que é exemplo o product placement, a equipa da Mahla enfrentou o desinteresse do mercado português, e uma maratona de contactos até alcançar a Netflix.

Pelo caminho, venceu os prémios de Melhor Roteiro (Mickey Fonseca) e Melhor Direcção de Arte na 15.ª edição dos African Movie Academy Awards, realizada no final de Outubro do ano passado, na Nigéria.

“No fim valeu a pena”, reforça Mickey Fonseca, que, de email em telefonema, sempre em ‘teia de relações’, abriu canais até à plataforma de streaming. “Eu acredito que o mundo está todo ligado. Há sempre alguém que conhece alguém, que conhece alguém”.

 

A chegada à Netflix permitiu à Mahla Filmes ultrapassar barreiras na distribuição – próprias das produções independentes –, mas, garantem os responsáveis, nunca teve como ponto de partida seduções financeiras.

“Não metemos o filme na Netflix para ganhar dinheiro, nem fizemos este filme para ganhar dinheiro. Fizemos mais como um cartão-de-visita do que conseguimos fazer”, nota Pipas, taxativo em contabilizar o maior mais-valia do “Resgate”.

“Somos filmakers e queríamos fazer uma longa nossa, senão iríamos ficar aqui malucos, sem fazer filmes”.

Mais produções com foco social

Para já salvos da insanidade, Mickey, Pipas e Maura não param de trabalhar na protecção desse diagnóstico.

“Queremos fazer mais filmes, um atrás do outro. Temos tantas histórias para contar, tantas ideias, tantos scripts em preparação”, revela Mickey, que deseja reforçar a ligação à Netflix, através de co-produções.

Dessa forma, clarifica o realizador, o clássico problema da distribuição ficaria automaticamente resolvido.

Mas, seja qual for o caminho para viabilizar os projectos, a Mahla Filmes vai continuar a “dar atenção aos temas sociais que afectam a vida dos moçambicanos, mas que são também temas universais”, salienta Maura.

O foco está presente em “Resgate”, inspirado na onda de raptos de empresários, muitas vezes estrangeiros, que, nos últimos anos, tomou de assalto a Pérola do Índico.

O filme teve estreia mundial a 18 de Julho de 2019 em Maputo e na Matola, e percorreu outras cidades moçambicanas: Nampula, Tete e Chimoio.

Passagem agridoce por Portugal

Portugal também entrou na rota do “Resgate”, através de uma parceria com a NOS (cinemas Lusomundo), mas a produção esteve em cartaz apenas uma semana, em salas marginais, e horários limitados.

“Acho que poderiam ter apostado um pouco mais no filme”, considera Mickey, sem esconder a insatisfação com a experiência lusa.

O guionista refere mesmo que a NOS começou por descartar a possibilidade de exibir o filme em cinemas portugueses – “porque não valia a pena, porque não haveria de funcionar, etc” –, situação que se alterou a partir de apelos nas redes sociais.

“As pessoas começaram a reclamar no Facebook, e o Pipas disse a verdade: que o filme não passava em Portugal porque a NOS não achava que era o filme certo para passar”.

As mensagens acabaram por colocar o “Resgate” em duas salas do país – uma em Lisboa e outra no Porto –, mas a experiência viveu-se com um sabor agridoce.

 

“Espero que, no futuro, a NOS comece a considerar um pouco os filmes africanos, e comece a considerar também a audiência africana e os africanos que vivem na diáspora”, exorta Mickey.

Já Pipas considera que “foi bom” o “Resgate ter passado, mesmo que de forma marginal, sublinhando que a sua condição de filme independente travou uma presença mais expressiva nas salas lusas.

“A Lusomundo disse-nos que poderia pôr-nos em muitos mais cinemas, se tivéssemos um orçamento de publicidade para gastar nas televisões em Portugal. Mas o mínimo para gastar eram 20 mil euros”, indica o director de fotografia e edição.

A vida pós-Netflix

O investimento, impossível para os cofres da Mahla pré-Netflix, será uma realidade na era pós-Netflix?

Enquanto esperamos para ver, a produtora assume o papel de embaixadora da identidade moçambicana no mundo.

“Representamos ir atrás, luta, força, não parar, seguir os sonhos e tentar realizá-los”, sublinha Mickey Fonseca, de planos apontados para as próximas produções. A acção continua!