Sem cura nem curadora, o interno feminino que se manifesta na arte

A expressão artística de cinco mulheres –  presente num colectivo de criações onde se incluem as obras de Alice Marcelino, Indira Grandê, Pamina Sebastião, Carlota Bóia Neto e Daniela Vieitas – dialoga com a proposta de desconstrução de fronteiras de género assinada pela artista Keyezua, para a exposição “Não há cura”. Inaugurada ontem, 19, em Luanda, a mostra está patente até 11 de Agosto e resulta de um desafio lançado pelo Camões – Centro Cultural Português à Movart. Um espaço que desde o final de 2020 também ocupa morada em Lisboa. Mas, por agora, voamos até Angola, à boleia de “Não há cura”.

Texto por Afrolink

Fotos de Movart 

A estreia na maternidade revelou um “percurso de altos e baixos” no caminho de Alice Marcelino, a partir do nascimento do primeiro filho marcado por “dias de total inspiração, seguidos de ansiedade extrema pela monotonia doméstica”. Algo perdida entre momentos de “felicidade perfeita” e situações pautadas por “medo, pânico e dúvidas sobre os instintos para cuidar”, a fotógrafa deparou-se com um “questionamento incessante”. Seria ela a única mulher a sentir isso?

A busca por respostas, partilhada na sinopse da exposição “Não há cura”, inspirou-a a criar o projecto multimédia “MOTHER Untitled”, no qual observa “as representações tradicionais da mãe, encontradas na cultura popular” e questiona “os mitos e tabus que cercam a maternidade”, reflectindo sobre “como influenciam as percepções e expectativas sobre o papel das mulheres no século XXI, agora intensificado com a pandemia”.

O exercício criativo, desenvolvido na sua Londres de residência, pode ser visto em “Não há cura”, patente até 11 de Agosto no Camões – Centro Cultural Português de Luanda.

A mostra, organizada pela Movart – espaço que desde o final de 2020 também ocupa morada em Lisboa –, exibe os trabalhos de outras quatro criadoras, seleccionadas pela artista Keyezua, que ocupa aqui o papel de uma curadora nada convencional.

“Existo como uma iniciadora de conversa”, adianta Keyezua na mensagem de divulgação de “Não há cura”, onde descreve a exposição como “um espaço seguro de expressão artística que desconstrói ideias, cria interrelações e questiona a importância e as atribuições de curadoria nos espaços, permitindo que a ambiguidade do título da exposição se transforme no início de uma discussão sobre a importância e o uso da palavra curador”.

Uma mostra da expressão da arte no feminino

Reconhecida internacionalmente pelo trabalho de desconstrução dos estereótipos femininos e africanos, a curadora prossegue o caminho de ruptura com as fronteiras de género em “Não há cura”.

“As obras expostas tornam-se metodologias de arte que ajudam a desenvolver uma compreensão abrangente da arte como sistema simbólico. Usados para mobilizar significados, valores e emoções num contexto social”, assinala, reforçando: “Esses corpos de trabalho não existem com o objectivo de somente dar ao público uma peça de arte para comprar, compreender, gostar ou amar, mas sim, como uma expressão de ideologias, novos visuais, conceitos e compreensão da criatividade. Este é o começo da nossa conversa”.

O diálogo proposto por Keyezua confronta-nos não apenas com as angústias da maternidade mostradas por Alice Marcelino, mas também com “a improvável beleza do objecto quotidiano sugerida por Carlota Bóia Neto”, a que se juntam “os caminhos alternativos da porta ao lado desafiados por Daniela Vieitas”. Igualmente em exposição, estão “a busca de um destino na imensidão do nada pelo comboio de Indira Grandê”, e “a desconstrução do papel de género no corpo feminino de Pamina Sebastião.

“Não há cura pretende, pois, ser uma mostra da expressão da arte no feminino. Parte do pressuposto de que o género importa – e muito – como factor criativo na definição do objecto artístico e dos seus sentidos”, lemos na apresentação da exposição, assinada por Telmo Gonçalves, director do Camões.

O responsável destaca ainda que, logo no título, “Não há cura” “diz (e não diz) exatamente ao que vem”: “Por um lado cativa (habilmente) invocando o desespero por essa cura que tarda. Por outro lança a proposta inovadora de uma curadoria sem cura e sem curadora. Um espaço artístico em que a noção de uma organização institucional se pretende diluída”.