“Ser cigano é sonhar e construir um mundo melhor”, Bruno Gonçalves mostra como

Dirigente da Associação Cigana Letras Nómadas, Bruno Gonçalves, de 44 anos, soma mais de duas décadas de liderança comunitária e associativista, contributo entretanto alargado à participação política. Natural de Coimbra, onde se formou em Animação Socioeducativa, é, para além de mediador sociocultural, formador do Conselho da Europa e uma das vozes mais activas contra a ciganofobia, combate que tem no seu livro infantil “A História do Ciganinho Chico”, uma valiosa ferramenta. Vamos conhecê-lo melhor amanhã, na emissão semanal d’O Lado Negro da Força. Até lá, partilhamos algumas das suas notas biográficas, e um conto tradicional cigano que tem a sua assinatura na adaptação.

texto por Afrolink

fotografia por Sérgio Aires

Em 1521, “O Auto das Ciganas”, de Gil Vicente, testemunhava, com uma representação na corte de D. João III, que a presença dos povos ciganos em Portugal já era uma realidade. Mas, em 2021, o país continua a desprezar a herança de pelo menos cinco séculos de História.

“Estamos em Portugal há 500 anos e ainda somos considerados estrangeiros; somos a comunidade que mais sofre no país”, assinala Bruno Gonçalves, dirigente da Associação Cigana Letras Nómadas, em declarações ao semanário Expresso.

Com mais de duas décadas de experiência como líder associativo, o próximo convidado do Lado Negro da Força tornou-se uma das vozes portuguesas mais activas contra a ciganofobia.

Licenciado em Animação Socioeducativa pela Escola Superior de Educação de Coimbra, cidade de nascimento, também tem formação na área dos Direitos Humanos, pelo European Roma Right Centre (Centro Europeu dos Direitos dos Roma).

Além de intervir como formador do Conselho da Europa na Área da Mediação Intercultural, foi eleito pelo Bloco de Esquerda para a Assembleia de Freguesia de Buarcos e São Julião, na Figueira da Foz, e é mentor do projecto Opré Chavalé (“Erguei-vos, jovens ciganos”, na língua romani), promovido pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, em parceria com a Associação Letras Nómadas, para incentivar o acesso das comunidades ciganas ao Ensino Superior.

A assinatura de Bruno Gonçalves estende-se ainda à escrita: em 2011 lançou o livro infantil “A História do Ciganinho Chico”, que recupera, a partir da sabedoria de um avô, momentos da trajectória dos Roma (termo cunhado em 1971, no 1.º Congresso Mundial dos Ciganos, realizado em Londres).

Contos tradicionais ciganos para nova relação entre a escola e as comunidades ciganas

A essa obra junta-se “Conhece-me antes de me odiares”, titulada em alusão a um provérbio somali. Apesar de ainda não ter sido publicada, a narrativa já contribui para um maior conhecimento da história e cultura ciganas, integrando uma ferramenta pedagógica criada no âmbito do projecto Reflexo, para uma nova relação entre a escola e as comunidades ciganas. 

Nesse instrumento, disponível online, para além de passagens do livro “Conhece-me antes de me odiares”, encontramos igualmente contos tradicionais ciganos, adaptados por Bruno, como o que partilhamos nas linhas seguintes.

 

À noite, sentada na cama, a avó da Maria enquanto contava uma história, disse, num sussurro:

– Tu és filha do vento, minha cigana! Ouve: esta história faz parte do nosso povo, e aconteceu há muitos, muitos anos atrás que nem se conseguem contar pelos dedos das nossas mãos…

Os ciganos viajaram pela Europa Central trazendo alegria e coisas úteis, costumavam afiar facas da cozinha, vendiam potes para as casas, outros liam a sina e alguns sabiam muito sobre o poder de cura de algumas plantas, para tirar a dor de dentes, de ouvidos…

Os ciganos eram também excelentes contadores de histórias, cantores, malabaristas, tudo isso faziam os ciganos!

Quando chegavam a uma cidade eram recebidos com muita agitação e muita curiosidade.

Todos deixavam as suas casas e reuniam-se na praça para ouvirem as boas novas que o nosso povo trazia de outras cidades e aldeias. As pessoas cantavam, riam e ouviam as nossas histórias. Durante algum tempo, as pessoas trataram os ciganos com muita amizade.

Certo dia, chegaram a uma pequena aldeia com as suas músicas e danças, ninguém saiu para os receber: as portas das casas não se abriram, nem um suspiro se ouvia, parecia que o mundo tinha parado!

Ficaram intrigados com o silêncio, quando, de repente, uma menina apareceu e lhes contou o que tinha acontecido:

– Tudo começou quando o padeiro recusou ao moleiro um pouco de massa. Ele, por sua vez, negou grão ao sapateiro. O sapateiro negou-se a consertar o calçado de uma mulher camponesa. A camponesa recusou um copo de água ao carteiro, o carteiro não quis entregar as cartas à professora, a professora não deu aulas e os alunos recusaram-se a ajudar na lavoura.

A solidariedade desapareceu da aldeia. Todos estavam trancados nas suas casas e a tristeza tomou conta das ruas.

Os ciganos sentaram-se para encontrar uma solução para aquela situação, decidiram fazer uma festa para a qual iriam convidar todos os residentes da aldeia de forma a trazer de novo a solidariedade às ruas.

Cozeram pão, assaram carne, iluminaram e enfeitaram as ruas!

As ruas da aldeia estavam lindas, mas ainda vazias, então os ciganos foram de casa em casa e chamaram os aldeões para a festa.

Naquela noite, a padeira, o moleiro, a camponesa, o sapateiro, o carteiro e a professora dançaram toda a noite de mão dada à volta da fogueira, a “senhora Solidariedade” voltou aos corações daquelas pessoas, distribuiu beijos e abraços…

– Maria, lembra-te e ensina os teus filhos e os teus netos que o nosso povo ama a vida e a liberdade, viemos de um país chamado Índia, mas o mundo inteiro é a nossa casa! A família é o nosso lema, a solidariedade arde nos nossos corações! Nunca negues a tua origem!

Ser cigano é sonhar e construir um mundo melhor!

Bruno Gonçalves (Adaptação de um conto tradicional cigano)

Acompanhe amanhã, em directo, a partir das 21h30, mais uma emissão d’ O Lado Negro da Força. No Facebook e no YouTube.