Silêncio, que se vai dançar o fado! Com um gingado afro-brasileiro

Património Imaterial da Humanidade, o fado é reconhecido como um dos símbolos maiores da nação portuguesa, habitualmente associado aos mitos da expansão marítima, e pouco conhecido nas suas expressões africanas e brasileiras. Mas que as há, há. 

por Paula Cardoso

Pronta para partilhar a teoria de José Ramos Tinhorão sobre a origem afro-brasileira do fado, a investigadora e professora Kimberly DaCosta Holton deparou-se com uma inesperada oposição. Perante uma plateia de centenas de ouvintes entusiastas, na abertura de um workshop sobre o fado e o flamenco, a especialista introduzia a obra “Fado: Dança do Brasil, Cantar de Lisboa, o fim de um mito”, desse autor, quando uma voz se pronunciou.

“Isso são ideias de pseudo-intelectuais. Não acreditem neles! Eles estão completamente errados. O fado é português. O fado nasceu em Portugal. O fado não veio do Brasil. Se apareceu no Brasil é porque nós o levamos para lá. O fado é nosso”.

A reacção, protagonizada por um guitarrista português, confrontou Kimberly com “o alto risco envolvido no debate” sobre as origens do fado, que, até então, lhe parecia “puramente académico”.

Mais do que um episódio isolado, a experiência, vivida em 1999 no País de Gales – à margem do Festival “Given Voice”, que levou vários fadistas portugueses à cidade de Aberystwyth –, é, para a docente, sintomática de uma narrativa fantasiosa sobre a “lusitana paixão”.

O fim de um mito, a abertura de novas fronteiras

Em “Historiografia do fado: velhos mitos e novas fronteiras”, a professora luso-americana discorre sobre uma “nova vaga” do conhecimento, que afasta de forma inequívoca a ligação deste género musical ao período da expansão portuguesa.

Afinal, questiona a investigadora, se o fado nasce no século XV, porque é que a primeira referência documental sobre a sua existência, enquanto canção, remonta a 1820?

O hiato já tinha sido evidenciado por Rui Vieira Nery, na obra, “Para uma História do fado”, mencionada por Kimberly no seu olhar para as novas fronteiras do fado.

No livro, o musicólogo português assinala: “O primeiro aspecto a constatar na procura das raízes históricas do Fado é a de que até o final do século XVIII não conhecemos uma única fonte escrita portuguesa em que esta palavra seja utilizada com qualquer conotação musical”.

 

O especialista acrescenta que é “historicamente incontornável” a constatação “de que as primeiras manifestações registadas do Fado tiveram lugar no Brasil colonial”.

O mesmo advoga o folclorista Renato Almeida, que inclui o fado no capítulo “As Cantigas do Brasil”, do seu livro “História da Música Brasileira”.

“Que o fado nasceu no Brasil, parece já haver acordo definitivo por quantos estudaram o assunto, e também não resta dúvida de que o lundu foi seu avô”, escreveu o brasileiro, reportando-se às ramificações africanas do fado brasileiro, igualmente bem presentes na obra de José Ramos Tinhorão.

 O fado dançado com influência africana

“No seu livro Voyage autour du monde…, publicado em 1825, após o seu regresso a Paris, ao recordar o que vira na corte brasileira de D. João VI em matéria de diversões, registava Freycinet: ‘As classes menos cultas preferem quase sempre as lascivas danças nacionais, muito parecidas com as dos negros da África. Cinco ou seis delas são bem caracterizadas: o lundum é a mais indecente; e em seguida o caranguejo e los fados [sic] em número de cinco: estas dançam-se com a participação de quatro, seis, oito e até dezasseis pessoas: às vezes são entremeadas de cantos improvisados; apresentam variadas figurações, mas todas muito lascivas.”

Para Tinhorão, citado por José Fernando Monteiro em “O fado e o Brasil: Uma (re)descoberta das origens brasileiras do fado”, essa é a “primeira descrição documentada do fado”, e foi produzida por Louis Claude Desaulces de Freycinet, enquanto visitante do Rio de Janeiro, cidade que conheceu entre Dezembro de 1817 a Janeiro de 1818, e de Junho a Setembro de 1820.

As raízes afro-brasileiras do fado não retiram contudo à sua portuguesidade, salienta  Rui Vieira Nery, lembrando que o “fado dança” registado no Brasil “está longe ainda de ser o Fado português”.

Ao mesmo tempo, o musicólogo assinala que as influências além-mar do fado “não tornam ‘menos português’ o seu desenvolvimento ulterior em Portugal, até porque este se foi concretizando sob formas constantemente renovadas que em cada fase histórica sucessiva da evolução do género souberam traduzir realidades socioculturais cada vez mais identitárias do” país.

Ou, conforme escreveu Daniel Gouveia, em “Ao Fado Tudo se Canta”, “o fado não nasceu, foi nascendo”.