Soltar a língua: o manifesto que é antídoto para o preconceito e a ignorância

Mais de 100 escritores assinam o “Manifesto pela Sinergia das Línguas em Português”, lançado no último fim-de-semana, no Brasil, no encerramento do Fliaraxá – Festival Literário de Araxá. O documento junta personalidades como Chico Buarque, Mia Couto e José Eduardo Agualusa, e defende a criação de “um fluxo de circulação de ideias”, apontado como “o único verdadeiro antídoto contra o preconceito e a ignorância”.

por Afrolink

Aplicar ou não aplicar o novo acordo ortográfico? Enquanto ainda se esgrimem argumentos sobre a artificialidade vs utilidade do pacto que, em 1990, chegou com a pretensa missão de uniformizar o idioma da lusofonia, mais de 100 autores lembram que “a língua somos nós”. Nós que a falamos, nós que a escrevemos, estejamos em Portugal, no Brasil, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe ou Timor-Leste.

“A língua não é um conceito geopolítico, a língua é a forma de nos fazermos entender, de pensar e de viver. A língua será tão mais viva quanto mais formos capazes de dialogar e fazer circular os nossos pensamentos, livros, canções, espectáculos e demais formas de expressão artística”.

Em defesa de uma língua despojada de manobras diplomáticas, que se constrói “de afectos, ideias e comunicação constante”, escritores como Chico Buarque, Mia Couto e José Eduardo Agualusa assinam o “Manifesto pela Sinergia das Línguas em Português”.

Vamos praticar a sinergia

O documento foi lançado no último fim-de-semana, no Brasil, no encerramento do Fliaraxá – Festival Literário de Araxá, com uma grafia que mescla novo e velho acordo ortográficos.

“Tivemos essa ideia baseada numa coisa muito simples. Criar sinergia entre os autores de língua portuguesa, e não entre Estados e instituições, como a lusofonia se movimentou nesse tempo inteiro e fracassou”, explicou Afonso Borges, idealizador da Fliaraxá, ao Folha de São Paulo.

O jornal brasileiro assinala que “o texto não tem o objectivo de pressionar pela unificação da língua portuguesa, como propõe o acordo ortográfico”, até porque, segundo assinalou Afonso Borges, a grande maioria dos autores fora do Brasil são contrários às regras de padronização.

“A verdadeira força da língua está na forma como os portugueses tomaram como sua a música popular brasileira, os romances de José Saramago ou o semba de Paulo Flores. Como os brasileiros têm como seu Fernando Pessoa e Eça de Queiroz. Como os moçambicanos se sentem ligados a Guimarães Rosa ou Manoel de Barros”, lê-se no manifesto, em que se destaca o papel formador da Arte e da Cultura na identidade das pessoas e povos.

“Se o que nos une é o código com que falamos, então vamos falar, vamos falar mais, vamos falar muito. Vamos praticar a sinergia”.

Antídoto contra o preconceito e a ignorância, à medida de Portugal

A proposta de “intensificar o conhecimento que temos sobre a forma de nos expressarmos artística e intelectualmente”, advoga a criação de “um fluxo de circulação de ideias”, apresentado como “o único verdadeiro antídoto contra o preconceito e a ignorância”.

A avaliar pelo artigo “O acolhimento de estudantes internacionais: brasileiros e timorenses em Portugal”, de Juliana Chantti, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) e Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa, Portugal precisa urgentemente desse anti-veneno.

O país “ainda age como se fosse a ‘metrópole’ a ditar as regras do uso da língua portuguesa às suas ‘colónias’, quando inferioriza a maneira como a língua portuguesa é utilizada pelos outros países lusófonos”, observa a investigadora no texto, publicado no final do ano passado na  Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM), em co-autoria com Silvia Garcia Nogueira (Universidade Estadual da Paraíba, Brasil).

Brasileira residente em Portugal há mais de duas décadas, Juliana nota que “muitas vezes, os próprios professores não aceitam a língua portuguesa falada e escrita no Brasil, discriminando mesmo o seu uso em sala de aula”.

A rejeição das especificidades linguísticas evidencia-se, entre outras situações, “quando um professor se vira para um aluno brasileiro e diz, por exemplo, ‘fala português!’, ou quando um professor diz que as traduções feitas por editoras brasileiras não têm qualidade”.

Os casos de discriminação enunciados pela investigadora deixam claro que “ainda muito trabalho deverá ser feito para desconstruir a representação de que o português é imune ao racismo e possui uma predisposição para o convívio com outros povos e culturas”.

Corrente de escritores pela mudança

Nessa empreitada que se adivinha longa e árdua, o “Manifesto pela Sinergia das Línguas em Português” apresenta-se como uma ferramenta de transformação.

“Pretendemos reunir um conjunto de escritores, músicos, actores, filósofos, cientistas, historiadores, produtores e pensadores que estejam dispostos a participar desta vontade de descoberta do outro, o outro que fala a mesma língua”.

O caminho, apontam os mais de 100 autores, passa pela criação de eventos e programações culturais capazes de marcar presença em todos os países da comunidade lusófona, movimento que, numa fase inicial, se concretizará no mundo digital.

Ao encontro das palavras de José Saramago: “Não há uma língua portuguesa, há línguas em português”.