Titi e Bless – duas crianças agredidas por serem negras, mas o que importa é….

A desconversa nacional sobre racismo soma e segue, nos últimos dias inflamada pela denúncia dos pais de Titi e Bless, crianças de 9 e 7 anos, insultadas por serem negras. Repito: duas crianças, de 9 e 7 anos, foram insultadas por serem negras. Aconteceu no último fim-de-semana, num restaurante, onde, segundo os relatos, uma família angolana também foi visada pelos ataques racistas. Mas, o que importa para a larga maioria que comenta nas redes sociais – e para os media que fazem a cobertura noticiosa – é tudo e mais um par de botas, menos o impacto do racismo sobre as duas crianças negras que foram agredidas.

por Paula Cardoso

A desconversa nacional sobre racismo soma e segue, nos últimos dias inflamada pela denúncia dos pais de Titi e Bless, crianças de 9 e 7 anos, insultadas por serem negras. Repito: duas crianças, de 9 e 7 anos, foram insultadas por serem negras.

Aconteceu no último fim-de-semana, num restaurante, onde, segundo os relatos, uma família angolana também foi visada pelos ataques racistas.

Mas, o que importa para a larga maioria que comenta nas redes sociais – e para os media que fazem a cobertura noticiosa – é tudo e mais um par de botas, menos o impacto do racismo sobre as duas crianças negras que foram agredidas.

Titi e Bless não são actores “brasileiros sedentos de protagonismo, ou à procura de um papel numa novela portuguesa”, “crime” do qual os seus pais têm sido acusados. Titi e Bless não são “brasileiros sem educação, que vêm para Portugal só para fazer peixeirada”, “crime” do qual os seus pais têm sido acusados.

Titi e Bless são duas crianças de 9 e 7 anos, insultadas por serem negras. Era sobre isto que deveríamos estar a debater: sobre como o racismo é quotidianamente normalizado e está tão internalizado, que nem agressões racistas a duas crianças merecem amplo e contundente repúdio.

Pelo contrário, a legião do “Portugal não é um país racista” permanece firme e hirta na negação do problema. “Não se pode nem deve generalizar”, lembra o Presidente da República, que prefere desvalorizar. “O comportamento da sociedade portuguesa é, em regra, respeitador dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana”. Então, talvez o problema esteja na definição de pessoa humana. Quem cabe nesta categoria?

Num país estruturalmente racista, pessoas não brancas recebem tratamento humano?

Pessoas negras serem equiparadas a mercadoria em manuais escolares é humano? Pessoas negras serem despedidas por se recusarem a “arranjar” (desfrisar) o cabelo é humano? Pessoas negras ignoradas nos serviços de saúde por “aguentarem melhor a dor” é humano? Pessoas negras excluídas de contratos de arrendamento “porque dão cabo das casas” é humano?”.

Não é humano. É estrutural.

Por isso, no exacto momento em que surgiram as primeiras notícias sobre as agressões a Titi e Bless vimos ganhar espaço a habitual desconversa sobre racismo.

O foco, que deveria estar nas duas crianças agredidas e no impacto da violência racista que sofreram, passou a estar nos pais das crianças (classificados de arruaceiros e oportunistas); na nacionalidade da agressora (portuguesa que muitos passaram a identificar como brasileira, como se isso atenuasse a experiência de Titi e Bless); no estado alcoolizado da agressora (como se a embriaguez fosse um livre-trânsito para agredir); nos media (que estão sempre à procura de polémica).

Sobre Titi e Bless, apelidados de “pretos imundos” e ‘convidados’ a sair de Portugal entre gritos de “Voltem para África” e “Voltem para o Brasil”, são quase nulas as palavras de preocupação e, quando se ouvem, misturam-se com recriminação.

“Que exemplo e que educação estão a receber estas crianças?”, pergunta-se, porque a mãe das crianças gritou com a agressora e esbofeteou-a.

Que exemplo e que educação estão a receber as vossas crianças, pergunto eu, quando perante uma agressão racista a vossa reacção é negar a violência e apontar noutra direcção?

Sim, a mãe poderia ter reagido de outra forma, da mesma forma que a agressora racista poderia ter ficado calada.

O facto é que a racista agrediu e a mãe agiu em defesa dos filhos, consciente de que possui esse privilégio.

“Sei que eu, como mulher branca, indo lá confrontá-la, a minha fala vai ser validada. Não vou sair como a louca, a raivosa, como acontece com tantas mães pretas, que são leoas todos os dias, assim como fui nesse episódio, mas que são invalidadas”.

Já o pai, homem branco, questiona: “O que teria acontecido se fôssemos pretos? Iríamos ter essa atenção toda?”.

Sabemos que não. Da mesma forma que nos revemos na dor que partilharam: “É muito cruel pensar que Titi e Bless, que têm 9 e 7 anos, já têm de ser fortes, que precisam ser preparados e já estão sendo preparados para combater o racismo”.

É cruel, desumano e estrutural. Para Titi, Bless, e todas as crianças que, diariamente, o racismo violenta. Eu já fui uma delas, por isso sei bem quão traumáticos são episódios como aquele que ambos viveram no último fim-de-semana. Importa falar. E criminalizar o racismo.