Três mulheres negras no Parlamento iniciaram um trabalho muito importante

A partir das vivências pessoais, enraizadas num contexto familiar marcado pela imigração e a precaridade laboral, Miriam Sabjaly, iniciou o seu processo de politização. “Desde muito cedo, comecei a compreender onde é que eu e os meus pais nos posicionávamos no mundo”, conta em entrevista ao Afrolink, explicando que a leitura de autores negros – a começar por James Baldwin – foi determinante para essa consciencialização. Hoje mestranda em Direitos Humanos, Miriam encontrou na formação jurídica uma ferramenta útil ao serviço da justiça social, valor que transportou para a Assembleia da República, onde interveio como assessora da ex-deputada Joacine Katar Moreira. “A minha prática política é fazer com que aquele lugar seja para qualquer pessoa”, diz esta jovem marxista, cuja força motriz para o trabalho que desenvolve tem sido a resolução dos problemas concretos das pessoas. “Tenho muito mais interesse em falar de como é que as contradições do capitalismo (…) se vivenciam em questões reais”, aponta, recordando a violência que enfrentou no Parlamento. “Ainda vamos ter de refletir sobre a perseguição pública que a Joacine sofreu”, antevê, entre a partilha de inquietações sobre a importância da representatividade, a ascensão da extrema-direita e a consequente normalização do ódio racista e islamofóbico. Ameaças à Democracia que combate no dia-a-dia, sem perder de vista os ensinamentos de Amílcar Cabral.

Entrevista de Margarida Valença

Numa crónica publicada no Gerador, falas sobre o sentimento de não pertença na esfera política, evocando também aquela que foi a tua experiência enquanto assessora na Assembleia, dizendo o seguinte: “Aquela interação veio confirmar o que eu já sabia sobre mim própria, e que tentava em vão contrariar: porque era uma mulher jovem, racializada, muçulmana, acostumada a trabalhar precariamente, politizada, mas apartidária, o meu lugar não era ali.” Para quem é aquele lugar?

A minha prática política é fazer com que aquele lugar seja para qualquer pessoa. Aquilo era o que eu sentia internamente durante o ano todo.  Não digo isto especificamente por ser uma jovem racializada, muçulmana, porque se tivesse outro enquadramento partidário, talvez o meu tratamento e experiência tivessem sido diferentes. Mas eu, a Joacine e o nosso gabinete parlamentar estávamos numa posição bastante particular e inovadora.

A legislatura de 2019 foi talvez a legislatura com maiores diferenças. Acho que nunca houve duas deputadas não inscritas na mesma legislatura, três mulheres negras na mesma legislatura, ou extrema-direita. Foi uma legislatura de imensas mudanças, e aquilo que eu senti – como jovem que nunca esteve numa organização partidária, e sempre falou de política, mas nunca tinha feito política num palco político – foi que a perceção que as pessoas tinham do nosso gabinete parlamentar era de que estávamos lá sem legitimidade. Isto apesar de a Joacine ter legitimidade democrática para lá estar, de eu ter sido contratada e escolhida por ela, e de ela ser uma deputada exatamente igual, em termos democráticos, a qualquer outra.

Havia uma resistência social muito grande das pessoas que lá estavam e das instituições, e senti isso em pequenas interações. Também carregava as minhas inseguranças, e acho que é difícil, quando se cresce numa sociedade transversalmente racista, misógina e islamofóbica, não ter essa consciencialização, que se vai adquirindo sem querer, de que não tens qualquer tipo de reivindicação legítima para lá estar. E, portanto, foi uma recombinação de eu ter esse enquadramento mental, e um conjunto de microagressões, silêncios institucionais e de pequenos eventos, que me fizeram ressuscitar um bocadinho aquilo que eu já trazia comigo.

Fotografia de Midan Campal

Projecto desenvolvido na Assembleia da República

Artigo publicado no Público, na sequência do ataque ao centro Ismaili, de Lisboa

E como começou o teu processo de consciencialização política?

Por causa da minha realidade material como jovem mulher racializada – a minha experiência no dia-a-dia, a dos meus pais e dos meus avós que tiveram um grande percurso de imigração. Não consigo dizer um momento em que me tenha apercebido que tinha interesse na política. Comecei a perceber que vivia de forma inerentemente politizada e que a minha experiência real fazia-me ter uma consciência de como é que as relações de poder funcionam em sociedade. Desde muito cedo, comecei a compreender onde é que eu e os meus pais nos posicionávamos no mundo. Por exemplo, o meu pai é imigrante, tinha uma vida bastante precária, de uma família empobrecida em Portugal e, portanto, teve de emigrar para trabalhar e ter oportunidades de trabalho. A minha mãe é enfermeira no Serviço Nacional de Saúde há quase 40 anos, viveu com muita intensidade os efeitos da austeridade depois da crise financeira.

Queria perceber quais eram os fenómenos por trás de todas estas dinâmicas. Depois, efetivamente, consegui enquadrar-me politicamente como uma mulher de esquerda, e comecei a ler. Na adolescência comecei por autores negros, sobretudo americanos. James Baldwin, por exemplo, foi uma figura muito importante na minha consciencialização política, um bocado por acidente, porque li um romance dele e depois passei para a não ficção e fiquei obcecada. Depois comecei a ler Angela Davis, bell hooks, Assata Shakur, Amílcar Cabral, escritoras brasileiras negras e, foi muito por ir lendo, ir buscando coisas. Depois comecei a ler Marx, e muitas coisas.

Consideras-te marxista ou identificas-te com alguma ideologia ou corrente política mais específica?

Acho que publicamente nunca me identifiquei com nada, mas diria que me considero marxista. Acho que nunca ninguém me perguntou, porque normalmente as pessoas querem falar comigo sobre racismo, participação política como jovem racializada, a vivência como técnica de apoio à vítima, e, portanto, há aquela ideia de que o racismo é uma coisa paralela e que não se pode falar de racismo e simultaneamente de capitalismo, o que não acho que seja verdade. Não sou, de todo, especialista teórica, não sou académica, nem ambiciono ser e tenho muito mais interesse em falar de como é que as coisas são no dia-a-dia, de como é que as contradições do capitalismo, por exemplo, se vivenciam em questões reais.

Teres escolhido o Direito para estudo foi também uma ferramenta para de alguma forma mudar as coisas que vias à tua volta que sentias que precisavam de ser mudadas?

Sim, acho que tinha aquela ideia que muitos estudantes de Direito têm, que não têm a ambição de exercer a profissão numa sociedade de advogados, por exemplo, que é a de poder ser uma ferramenta útil para trabalho em direitos humanos, justiça social, e melhorar concretamente a vida das pessoas mais vulneráveis. Foi por isso que fui para Direito.

Para mim foi útil porque deu-me essa capacidade de entender aquilo que eu acho que está muito errado na lei no geral, em particular na lei criminal, apoiar a vítima que é algo que eu adorei e gostaria de voltar a fazer, perceber como é que a lei pode ser utilizada para resolver problemas concretos das pessoas, e como é que pode ser um instrumento para responder a questões concretas:  como é que podemos usar o apoio judiciário, ou os mecanismos de queixa-crime.

Trabalhaste na APAV, primeiro como voluntária e estagiária e depois como jurista, na Unidade de Apoio à Vítima Migrante e de Discriminação. O que é que aprendeste com essa experiência e como é que ela te marcou?

Aprendi e consegui ver que as pessoas migrantes, e as pessoas racializadas em particular, ainda são um grupo muito vulnerável e predisposto a sofrer violência. Por exemplo, a violência doméstica era um grande problema porque muitas das mulheres migrantes vêm para Portugal e não têm uma rede de apoio primária que passe para além do seu companheiro, estão muito mais sujeitas a violência policial racista e xenófoba, têm uma barreira linguística, e a incapacidade de poder comunicar em português é uma barreira gritante em Portugal, há muita dificuldade em agilizar a utilização de intérpretes em processos rápidos. Era uma grande dificuldade ir à esquadra com uma pessoa que não falasse português e garantir que estivesse lá alguém com quem a vítima conseguisse comunicar. Também têm muita falta de apoio estatal, por exemplo, há serviços que existem para pessoas vítimas que não existem se elas forem imigrantes, sobretudo indocumentadas.

Aprendi também que a violência policial, racista e xenófoba em Portugal é um problema muito maior do que talvez a generalidade das pessoas tem noção. A certa altura, tínhamos um número gigante de processos que fazíamos à Inspeção Geral da Administração Interna – o IGAI, de maus-tratos por agentes das forças de segurança com pessoas racializadas, pessoas migrantes racializadas e quase todos eram arquivados, e isto era uma constante. Apesar de termos várias recomendações do Conselho da Europa, acho que é uma questão que ainda não está a ser tratada com a devida seriedade. Tivemos ocasiões como o caso da Cláudia Simões, o mais notável, que agora está a ser criminalizada por ter resistido, e acho que é um reflexo muito evidente daquilo que é a violência policial em Portugal, que ou é ignorada ou é vista como algo completamente natural, criminalizando-se as vítimas.

Posteriormente foste trabalhar como assessora jurídica da deputada Joacine Katar Moreira.  O que significou para ti esta oportunidade, sobretudo também no contexto de ter sido retirada a confiança política pelo Partido Livre, pelo qual foi eleita, passando a ser deputada não inscrita?

Quando fui trabalhar com a Joacine, em 2021, ela já não era deputada única do Partido Livre, era deputada não inscrita. Eu não vivi muito o processo de transição entre ser deputada única para ser deputada não inscrita. Tive conhecimento daquilo que aconteceu no sentido institucional, ou seja, quando se passa para deputada não inscrita há uma alteração regimental muito grande, perdem-se recursos materiais e financeiros, porque há um orçamento mais limitado para empregar o mesmo número de pessoas que se quiser. Portanto, eu quando trabalhei com a Joacine durante esse ano, era a única pessoa do gabinete parlamentar. Nós colaborávamos com consultores externos de vez em quando, com quem remunerávamos pontualmente por um determinado serviço de aconselhamento, por exemplo para o Orçamento de Estado, para a Comissão do Ambiente, talvez matérias em que eu não tinha tanta especialização, nem a Joacine.

Qual o impacto positivo que sentes que o fenómeno da Joacine Katar Moreira teve para a sociedade portuguesa?

Eu acho que, enquanto país, ainda vamos ter de refletir seriamente sobre o escrutínio público negativo, ou perseguição pública quase, que a Joacine sofreu durante o seu período pré-eleitoral e o período na Assembleia da República. Acho que só ela ter existido como deputada negra única em primeiro lugar e depois não inscrita, abriu caminho para, pelo menos no futuro, que a resistência institucional para com deputadas negras, de esquerda, seja menos intensa. Eu quero acreditar, mas teremos de ver como será o futuro. Também houve bastantes ataques pessoais e violência mediática, institucional e quotidiana que a Joacine sofreu. Pessoas a virem injuriar-nos, fazerem símbolos num cartaz.

Nas bancadas da Assembleia?

Sim, na Assembleia da República, dentro do nosso gabinete, lá dentro e provavelmente lá fora.  Coisas completamente inarráveis, que ninguém devia ter de ler.  Só que nós já estávamos a essa altura, tão imunes a tudo, porque era tão constante, que normalizávamos um bocadinho a violência a que estávamos sujeitas. Também o fazíamos por um mecanismo de sobrevivência, porque tínhamos coisas para fazer, e a Joacine também tinha um escrutínio muito reforçado, no sentido em que havia aquela coisa – a deputada não inscrita que trabalhava muito, e a deputada não inscrita que não trabalhava nada. Então nós tínhamos também de colmatar isso, a cada hora havia uma comparação entre a deputada não inscrita, a estrela, e a deputada não inscrita.

Estás a falar da comparação com a então deputada Cristina Rodrigues, agora militante do Chega?

Sim, já não é deputada não inscrita, provavelmente será deputada outra vez, mas agora com um enquadramento um bocadinho diferente, mas cada um sabe de si, não é?

Que conquistas em termos de projetos de leis aprovados é que ficaram mais marcadas?

Participámos muito ativamente na elaboração da Lei de Bases do Clima. A Joacine participou com outros partidos na COP 26, em Glasgow, foi um processo muito transversal e interessante, com colaboração de partidos à direita e à esquerda. Participámos também no projeto de lei sobre o alargamento do período de faltas justificadas para pessoas quando falece um cônjuge ou parente, ou em situações de perda gestacional.

Fizemos muitos projetos de resolução que foram votados favoravelmente:  um projeto de resolução bastante importante sobre o combate eficaz aos crimes de ódio, que trata de como é que, institucionalmente, as vítimas destes crimes são tratadas quando recorrem às forças e serviços de segurança, ou que tipo de formação estes têm para lidar com estes crimes. A proteção de vítimas de violência doméstica no âmbito da pandemia do Covid-19, um projeto para potenciar a regularização imediata ou mais rápida dos trabalhadores imigrantes em situação irregular em Odemira, que trabalhavam em condições mais do que precárias, análogas ao tráfico  de seres humanos, projetos para melhorar as condições materiais de vida de jovens LGBTQI+, que estão muito mais expostos a situações de precariedade habitacional, emocional também. Aprovámos também o primeiro voto de saudação no Dia Internacional do Povo cigano, no dia 8 de abril, que foi lido na Assembleia da República, e recebemos vários testemunhos de pessoas ciganas em Portugal que se sentiram bastante vistas. Fizemos também outro voto que, para mim, foi particularmente importante, de saudação à comunidade muçulmana pelo Eid-al Fitr [Fim do mês do Ramadão], que também nunca tinha sido feito. E é curioso que o processo do voto que é enviado para a Comissão para depois ser aprovado em plenário, foi enviado para a Comissão de Negócios Estrangeiros. Este tipo de coisas são microfenómenos num panorama do legislativo e institucional muito grande, mas que revelam que o Parlamento tem muito a aprender com deputadas e gabinetes parlamentares compostos por pessoas que de facto são parte de minorias religiosas, e étnico-raciais, porque têm uma sensibilidade vivida diferente.

Houve muita coisa que nós trabalhámos com muito ímpeto, vontade, e que ficou por ser votada, como por exemplo o fim do período de reflexão, e alargamento do prazo de acesso à interrupção voluntária de gravidez (IVG), que em Portugal é de 10 semanas. O que nós fizemos foi propor [a extensão] para as 14 semanas como em Espanha. [Segundo] uma reportagem no DN, por ano cerca de 500 portuguesas vão a Espanha fazer a IVG porque não conseguem cumprir o prazo prescrito na lei portuguesa.  A nossa ideia era pelo menos calcular essa situação porque, nem todas as mulheres podem ir a Espanha fazer um aborto. Uma outra bandeira importante foi o artigo 250 do Código de Processo Penal que permite que a polícia peça identificação a pessoas na rua. Há vários critérios e um deles é que, se o agente de autoridade acha que a pessoa entrou ou permanece irregularmente em território nacional. É uma válvula de escape para que vários abusos policiais sejam cometidos, em particular contra pessoas negras e pessoas ciganas porque elas não correspondem fisicamente àquilo que é o corpo nacional.

Uma das críticas feitas a Joacine Katar Moreira é de que tem uma agenda que está ao serviço da esquerda identitária. Ou seja, uma agenda política que às vezes é muito centrada na pessoa, com uma sobreposição de questões relativas ao género, etnia, orientação sexual, deixando outras questões com relevância social de lado. Que comentário fazes a estas críticas?

A Joacine foi alvo desta crítica muito intensamente. Aquilo que me lembro de ler é que a representatividade significa que pessoas dessas comunidades querem só uma luta pelos espaços de poder para ocupar um lugar, sem qualquer vontade de questionar e de desmontar aquilo que são efetivamente os mecanismos de opressão.

Até posso entender aquilo que está por trás deste pensamento, porque, por exemplo, o Reino Unido tem um primeiro-ministro, o Rishi Sunak, e uma Ministra do Interior, a Suella Braverman, com origens indianas, e está a acontecer agora um debate sobre a imigração ilegal que tem os contornos mais populistas e xenófobos que já vi. Ninguém é ilegal, e as pessoas que vêm em situação irregular não têm nada a ver com uma característica indireta da pessoa, não é possível ser ilegal. É suposto eu ficar contente porque a Suella Braverman é Ministra do Interior do Reino Unido, ou por o Gabriel Mithá Ribeiro ter assento parlamentar? Claro que não.

Aquilo que se ouve da esquerda é uma versão diferente, porque já não é sobre essas pessoas, é sobre pessoas como a Joacine. Acho que a luta de classes é essencial, e tem de haver consciência de classe para qualquer avanço legislativo que sirva às pessoas que de facto sofrem com o estado do capitalismo atual. Mas quando eu falo sobre rever-me numa mulher negra de esquerda no parlamento, não estou a dizer que as questões raciais se sobrepõem às questões de classe, estou a dizer que não é uma luta uniforme, que há nuances na luta, e que há capacidade de perceber que as pessoas  sofrem o impacto do capitalismo de forma especificamente diferente no seu dia-a-dia.

Se calhar as pessoas racializadas em Portugal – a maior parte delas empobrecidas, grande parte delas trabalhadoras precárias, sem documentos, contrato de trabalho, trabalhadoras em plataformas de entrega de Uber e Glovo –, se são pessoas trabalhadoras que sofrem com os impactos do capitalismo, sofrem também com o impacto específico no seu dia-a-dia. Para mim é importante haver oportunidade de poder falar sobre essas questões, poder endereçá-las publicamente, e criar propostas concretas que as resolvam.

Qual é a análise que fazes sobre a forma como os partidos, sobretudo à esquerda, onde te posicionas, têm abordado estas questões?

Em 2019 houve alguma abertura dos partidos de esquerda que já tinham assento parlamentar, nomeadamente o Bloco de Esquerda (BE), que já tinha bastantes propostas a nível de melhorar a vida de pessoas racializadas, de reconhecer que havia necessidade de dar um passinho extra. Fico contente, e acho que a Beatriz Gomes Dias fez um trabalho excelente como deputada, e certamente estará a fazer um trabalho excelente como vereadora. Contudo, em 2022, claro que o BE que perdeu uma representação parlamentar gigantesca, mas não me pareceu ter sido prioritário colocar pessoas racializadas em lugares elegíveis. Portanto, acabou por ser um avanço e depois um recuo.

Mas por exemplo, na Comissão de Assuntos Constitucionais, havia assuntos que eram tratados lá, e que se calhar não eram tratados com tanta facilidade anteriormente quando a Beatriz, a Joacine e a Romualda não lá estavam, que requeriam um determinado tipo de posicionamento e sensibilidade para reivindicações de um grupo muito grande da população que não tinham assim tanto acesso ao palco político, porque lá estavam pessoas que sabiam exatamente aquilo que se passava e porque provavelmente o tinham vivido.

E o PCP?

Há muitas coisas que me distanciam do PCP, uma delas é algum entendimento sobre o que implica a existência de racismo institucional em Portugal, e como é que se pode resolver esse problema. Também a questão da reestruturação do SEF, ou da violência policial racista e xenófoba. A visão que está presente na narrativa que tem sido difundida nos últimos tempos, é que o problema de violência policial é muitas vezes um problema de agentes individuais num grupo não problemático. Tenho muitos problemas com esta visão da força policial como trabalhadores, sem mais. Acho que tem de haver aqui uma análise um bocadinho diferente do que é que são polícias, qual é a função da polícia na nossa sociedade.

Ainda que perceba e que concorde com a importância de falar de classe, que não é um assunto ultrapassado. Mas, concretamente, o que me interessa é que, três mulheres negras no Parlamento fizeram o início de um trabalho muito importante para a comunidade negra em Portugal. Independentemente do substrato teórico que possamos atribuir à representatividade como conceito, interessa-me aquilo que aconteceu e o que aconteceu é que falávamos de coisas no Parlamento que antes não tínhamos falado. Foi possível o grupo de peritos das Nações Unidas sobre pessoas afrodescendentes terem uma reunião em Portugal com três mulheres negras, por exemplo. Isto é diferente, e por muito que se possa pensar num conceito de representatividade de forma crítica, que eu faço, o trabalho parlamentar foi diferente.

Falando de representatividade na política, mas da juventude, observamos que a participação dos jovens nos partidos tem vindo a diminuir, e que os mesmos optam por formas não convencionais de intervenção, como a assinatura de petições, os boicotes a certos produtos, etc. O que é que pensas que os partidos podem fazer para atrair mais jovens?

Acho que os partidos têm sobretudo de fazer esforços que não sejam meramente cosméticos para integrar e incluir as camadas jovens nas suas ações e estruturas. Não basta de vez em quando contratar uma pessoa jovem, mas efetivamente querer saber daquilo que os jovens precisam para poderem viver em Portugal, fora da casa dos pais, para poderem trabalhar com dignidade e com contrato, sem precariedade, para ter acesso a cuidados de saúde mental, etc. Eu acho que aquilo que os jovens querem, mais do que verem uma pessoa da sua idade no Parlamento, é sentirem que os problemas sobre os quais falam publicamente, que os levam a ocupar escolas, a boicotar produtos e a assinar petições, estão efetivamente a ser tratados no Parlamento. Eu acho que não há nenhum jovem que veja outra pessoa jovem, que foi eleita com 25 anos, como a conquista de um marco.

No passado mês de fevereiro, decorreu um ataque ao centro Ismaili, de Lisboa, onde passaste muito tempo da tua vida. Assinaste conjuntamente com outros dois Ismailis, Karim Quintino e Sadiq Habib, uma carta no Público, denunciando os dividendos políticos que a extrema-direita procurou retirar do caso, bem como a plataforma que foi dada pela comunicação social aos representantes da mesma. O que pode ser feito de maneira diferente nestas situações, e na forma como a comunicação social as noticia, e lida com a extrema-direita?

A primeira coisa que aconteceu foi a divulgação em massa da nacionalidade da pessoa agressora, como sendo um homem afegão, sendo automaticamente associado com a prática de crimes de terrorismo. Ainda não se sabia na altura quem é que tinha sido vítima neste ataque. Eu estava a tentar perceber o que se estava a passar, a tentar falar com a minha família, os meus amigos da comunidade e já estava a comunicação social a fazer uma data de ilações desnecessárias, e que revelam como é que a sociedade portuguesa encara a comunidade muçulmana, e a comunidade Ismaili em particular. E é uma comunidade que está em Portugal há imensos anos, com um grande potencial de integração, participação política, solidariedade, pluralismo, ação social significativa na comunidade portuguesa, e foi muito facilmente reduzida a uma narrativa motivada por conclusões que não tinham razão de ser sem ser, essencialmente, extremos preconceitos islamofóbicos.

A segunda questão, e talvez a mais importante, é a plataforma dada à extrema-direita na televisão. No próprio dia, o André Ventura foi à CNN, com o secretário-geral do PSD, falar sobre aquilo que ele achava ser uma ‘política da bandalheira’, das ‘portas abertas’. Isto com pouco contraditório, e com espaço aberto para fazer o que queria. A extrema-direita não opera num vácuo, e não teria os números que tem se não tivesse plataforma, e são os órgãos de comunicação social que potencializam as suas vozes. No 25 de Abril, por exemplo, ouviu-se falar muito mais sobre a manifestação feita em Plenário e a reação do Presidente da Assembleia da República, do que sobre o próprio 25 de Abril, o discurso do Presidente da República, ou as pessoas que se manifestaram na Avenida da Liberdade.

E falando da questão da islamofobia, achas que a Europa, e Portugal mais especificamente, estão a fazer o suficiente para proteger as comunidades muçulmanas?

Acho que não. A islamofobia em Portugal é um fenómeno que existe, sobre o qual a maior parte de nós não tem consciência. O Chega tem narrativas islamofóbicas que difunde com as suas propostas parlamentares e o seu discurso público. Isso não começou com este incidente no Centro Ismaili. Houve várias propostas antes, para limitar fluxos migratórios de determinados países muçulmanos, e impor hipervigilância às comunidades muçulmanas, porque representam uma potencial ameaça àquilo que é uma Europa Cristã, incompatível com os valores islâmicos.

Em linha com o que dizes, mais recentemente, deputados do Chega, aquando da celebração do fim do Ramadão, que encheu a praça de Martim Moniz, em Lisboa, acusaram a Europa de estar a ser invadida por pessoas muçulmanas, e defenderam a necessidade de afirmação dos valores cristãos. Este é um discurso que tem sido bastante usado por líderes europeus na extrema-direita, que falam em “teoria da substituição”. Sendo muçulmana, como é que olhas para estes discursos?

Mais do que os discursos em si, que são absolutamente execráveis e sem fundamento racional, o que me deixa bastante preocupada é que estes discursos têm veículos para serem difundidos, são lesivos em pessoas reais e podem ter consequências negativas concretas, que se manifestam em violência verbal ou física, na exclusão de oportunidades ou acesso a bens e serviços. Incomoda-me, porque são discursos reproduzidos acriticamente e sem qualquer tipo de contraditório, em espaços públicos. Fiquei absolutamente perplexa, ao ler sobre a teoria da substituição, com a facilidade que estes órgãos de comunicação social têm de excluir a perspetiva de pessoas muçulmanas e pessoas racializadas, da comunidade LGBTQI+, por exemplo, de contarem a sua história e de falarem sobre aquilo que afeta os seus próprios grupos sociais. Há um grande desequilíbrio entre aquilo que ouvimos de um lado e do outro. Vai sempre haver discursos islamofóbicos, porque ainda há muito capital político a ganhar através da subjugação de comunidades, e da criação do mito do outro violento e problemático e que nos ataca, que é o que o Chega faz: encontrar um espaço vazio na sociedade portuguesa, que é a possibilidade de criar um outro com o qual temos de lutar. E o outro podem ser pessoas ciganas, pessoas negras, muçulmanas, jovens trans, jovens gays, jovens lésbicas, pode ser uma variedade de coisas.

Quais as utopias que imaginas, e quais os teus sonhos e desejos para as nossas sociedades?

O Amílcar Cabral fala sobre como nos movimentos de libertação das ex-colónias aquilo que as pessoas querem não é a liberdade como uma ideia, mas é terem condições materiais para poder viver plenamente, serem donas do seu tempo, para cada pessoa ter o pão, ter a casa, ter a saúde, ter a educação, ter a habitação. Acho que essa é a minha maior utopia, é a liberdade real e efetiva, e acho que por isso o 25 de Abril é ainda um projeto muito incompleto. Queria que o 25 de Abril se cumprisse e que todas as pessoas conseguissem viver exatamente como querem.