Um coro de vozes para afinar
o feminismo…longe do Twitter

Sabemos que é possível ser mulher e não ser feminista. Mas poderá haver feminismo se não for para todas? Ou, escrito de outro modo, deve um movimento ser classificado de feminista se não for interseccional? Vêm estas reflexões a propósito da polémica ateada no Twitter, nos últimos dias, sobre feministas negras e feministas brancas. O tema vai estar em análise mais logo n’ O Lado Negro da Força, o talk-show online das noites de quinta-feira, que conta com a participação do Afrolink. Para ver a partir das 21h30, em directo no Facebook e no YouTube, hoje com o jornalista José Mussuaili como convidado.

Tradução: Não é feminismo se não for interseccional

Tradução: Isso da luta monotemática não existe, porque as nossas vidas não se  vivem num único tema.

por Paula Cardoso*

A discussão é tão antiga quanto as primeiras reivindicações em defesa dos direitos das mulheres, conforme demonstra o histórico discurso de Sojourner Truth, “Ain’t I a Woman?”, “E não sou eu uma mulher?”.

Nessa intervenção, Sojourner questionava a abordagem universalista da condição feminina, apresentada instantes antes por um responsável político.

Estávamos em 1851, no estado americano do Ohio, e decorria o segundo dia da Convenção dos Direitos das Mulheres, marcado por um assalto masculino ao palco para pregar a “superioridade” física e intelectual dos homens.

Embora a identidade do encontro fosse feminista, sugerindo que o acesso à palavra seria um direito de todas, há relatos de tentativas de silenciar Sojourner, sob a alegação de que a luta que ali estava a ser travada – pelo direito ao voto – não poderia ser ‘contaminada’ por reivindicações do movimento abolicionista.

Mas, para quem como Sojourner tinha nascido em cativeiro e vivido quase 30 anos na condição de escravizada, aquele era apenas mais um episódio de opressão. E como tantos outros, não a impediu de avançar.

“Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir para uma carruagem, que é preciso carregá-las quando atravessam um lamaçal, e que elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Mas nunca ninguém me ajuda a subir para a carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou eu uma mulher? Olhem para mim! Olhem para os meus braços! Eu lavrei, plantei, colhi e nenhum homem me passava à frente. E não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto (sempre que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o chicote! E não sou eu uma mulher?”.

Quase 170 anos depois do histórico discurso, o “grito” de Sojourner continua a ecoar nas fileiras do movimento feminista, como expressão da diversidade – e não universalidade – da condição feminina.

Não reconhecer essa diversidade e deixá-la de fora da luta pela igualdade de género enfraquece a causa, avisam cada vez mais mulheres, unidas na defesa da interseccionalidade.

Opressões para além do género

O conceito entrou no léxico feminista em 1989, através da ativista americana Kimberlé Crenshaw, e assenta no princípio de que as reivindicações do movimento devem considerar a existência de múltiplas opressões e em diferentes graus de intensidade.

Porque a experiência de uma mulher negra, por exemplo, não só pesa pela discriminação de género, como também pode pesar pelo racismo e pela classe social. Da mesma forma, uma mulher branca lésbica terá, à partida, de lidar com preconceitos sobre a sua orientação sexual, que não se atravessam no caminho de uma mulher branca heterossexual.

Pode, então, o feminismo ser outra coisa que não ser interseccional?

Para as 27 mulheres que, em 2018, fundaram o INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal, a resposta está no próprio texto constitutivo.

Apresentada como uma “entidade feminista interseccional e antirracista”, a instituição advoga, desde o primeiro momento, que não é possível promover a igualdade de género sem combater todas as desigualdades que se intersectam na construção de uma identidade.

Como se, em vez de tentarmos falar a uma só voz, devêssemos acolher a ideia do feminismo como um coro de vozes. Em constante afinação.

*texto publicado na edição 12 do jornal Rosa Maria, da associação Renovar a Mouraria

A discussão sobre feminismos foi espicaçada esta semana a partir de publicações da deputada Joacine Katar Moreira, no Twitter. Numa das mensagens partilhadas, a parlamentar escreveu: “As feministas brancas nunca me representaram. Não por serem brancas, mas porque o feminismo branco é intrinsecamente elitista e racista. As mulheres (e homens) brancas também oprimem e apenas questionam partes do sistema do qual são parte importante. A parte que lhes toca”.

Ainda no Twitter, Joacine recomendou a leitura de “autoras feministas negras e interseccionais para aprofundar a questão, aprender a escutar e a ver o mundo e as lutas de outro prisma”.

Retomamos mais logo o debate n’ O Lado Negro da Força, o talk-show online das noites de quinta-feira, que conta com a participação do Afrolink. Para ver a partir das 21h30, em directo no Facebook e no YouTube, hoje com o jornalista José Mussuaili como convidado.