Um herói à portuguesa: “Matou crianças com requintes de crueldade”

“Marcelino da Mata é um criminoso de guerra que não merece respeito nem tributo nenhum”. As palavras do activista anti-racista Mamadou Ba tornaram-se, uma vez mais, o “álibi” de milhares de portugueses para cometerem “o crime perfeito”: o racismo em todos os graus. Sob investigação mais logo, em mais uma emissão d’ O Lado Negro da Força.

por Paula Cardoso

“Negro bom” é negro calado. “Negro mau” tem de ser silenciado. Na cartilha dos “portugueses de bem”, saudosos do passado esclavagista e colonial, o poder da palavra continua a ser um exclusivo do homem branco. Por isso, se vozes brancas se erguem para imputar “crimes de guerra” ao ex-combatente do regime fascista Marcelino Mata, elas estão no seu direito. Mas, basta a voz negra de Mamadou Ba assinalar o mesmo para se renovarem os apelos à sua deportação.

Pouco ou nada importa, aos ouvidos que não reconhecem o negro como sujeito – e que se beneficiam do sistema que criou o “negro-objecto” – os arrepiantes relatos históricos das atrocidades protagonizadas por Marcelino da Mata.

Mas é sobre esses testemunhos que deveríamos reflectir.

Afinal, quem foi Marcelino da Mata?

“Um grande combatente, corajoso, extraordinariamente destemido”, admite Vasco Lourenço, em declarações ao Diário de Notícias, sem contudo hesitar no veredicto: “Cometeu crimes de guerra”.

Num texto assinado pela jornalista Valentina Marcelino, o militar da revolução dos cravos, que preside à Associação 25 de Abril, descreve o guineense como um “Rambo”, defendendo que “torná-lo um herói é ofender todos os antigos combatentes que combateram dentro das regras”.

Vasco Lourenço partilha as memórias do tempo em que cumpriu serviço militar na Guiné (de Julho de 1969 a Junho de 1971), e ouviu um relato de horror feito por Marcelino a um major, sobre uma operação. “Entrámos na tabanca, deitámos granadas incendiárias para as palhotas, as pessoas fugiam para o centro da tabanca, matámos todos, homens, mulheres, crianças”.

Eram outros tempos, repetem, com saudade, os “portugueses de bem”, insistentes no mantra do ‘não se pode observar o passado pelas lentes do presente’.

De nada vale explicar que a guerra não justifica tudo – por algum motivo existem crimes de guerra –, e de nada serve acrescentar que, 30 anos depois dessas atrocidades, Marcelino continuava a gabar-se das façanhas.

Quem o relata é o realizador José Barahona, numa publicação no Facebook que reproduzimos na íntegra.

“Tenho lido e ouvido falar da falta de honras do estado português pela morte de MARCELINO DA MATA. Conheci este senhor nos anos 2000 quando fiz um filme sobre a guerra na Guiné produzido pelo meu amigo Pedro Éfe. Passei uma tarde com ele e fiz-lhe uma entrevista. Marcelino da Mata foi um homem negro que nasceu na Guiné e que lutou pelo exército português na Guerra colonial. Foi um militar corajoso e sanguinário. Não foi alguém que passou pela guerra e safou-se como pode, tendo eventualmente que matar e ver morrer. Não. Marcelino da Mata foi um homem sanguinário que matou muitos militares, civis, mulheres e crianças, inocentes com requintes de malvadez e crueldade. Marcelino da Mata, passados mais de 30 anos continuava-se a gabar dos muitos que matou e de ter morto os seus conterrâneos. Era um homem que ainda nessa altura mostrava o prazer que tinha tido na guerra, em matar e ver morrer. Assumindo-se como um Salazarista que lutou pela sua pátria, que era Portugal. Marcelino da Mata, se houvesse um julgamento, teria sido preso e condenado por crimes de guerra. Foi condecorado pelo estado novo. Querer que o governo ou o estado português de hoje lhe dê honras de estado é mais ou menos a mesma coisa que querer que o governo alemão dê honras de estado a um qualquer militar das SS que ao serviço dos Nazis, e condecorado por Hitler ou por Himmler, tendo morto muitos aliados sendo assim um soldado Nazi valoroso. Para que conste, tenho de dizer isto.”

Nós ouvimos, e seguimos com a fala de Mamadou Ba: “Nas latitudes da direita reacionária e da extrema-direita engravatada, queixam-se cinicamente do uso displicente do qualificativo “fascista” e refutam a filiação ideológica ao fascismo. Mas, investem sempre na homenagem a figuras sinistras como, por exemplo, Cónego Melo ou Kaúlza de Arriaga e, agora ao Marcelino da Mata. Mesmo com o recorrente paleio sobre democracia, a hipocrisia e dissimulação política são o forte do reacionarismo. A proposta de luto nacional proposto pelo CDS é uma afronta a todas e todos nós que herdamos dos horrores do colonialismo. Qualquer tributo que se faz ao torcionário do regime colonial é um insulto à memoria daquelas e daqueles que lutaram pela liberdade, até a última gota do seu sangue. Marcelino da Mata é um criminoso de guerra que não merece respeito nem tributo nenhum”.

A discussão prossegue mais logo, a partir das 21h30,  n’ O Lado Negro da Força, o talk-show online das noites de quinta-feira, que pode seguir no Facebook e no YouTube. Com José Rui Rosário, Pedro Filipe, Paula Cardoso, Mariama Injai e Danilo Moreira.