Um novo “apartheid” para África decretado pelo “racismo sanitário”

Chamam-lhe “variante sul-africana” do coronavírus, mas dias antes de o Ómicron ser detectado na Holanda, em duas pessoas que chegaram a Amesterdão em voos provenientes da África do Sul, já as autoridades locais tinham evidências da sua presença no país. A dúvida mais do que razoável sobre a origem desta variante do SARS-CoV-2, e a recomendação da Organização Mundial da Saúde para que as fronteiras se mantenham abertas não impediu, contudo, que se condenassem os países africanos a um novo bloqueio fronteiriço. “Racismo sanitário”, aponta o escritor João Melo, novo “apartheid”, considera o colega Mia Couto, que em conjunto com José Eduardo Agualusa contestou a decisão dos países europeus encerrarem as fronteiras a voos oriundos de África. “Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso”. Um tema para analisarmos mais logo, n’ O Lado Negro da Força.

por Afrolink

A Organização Mundial da Saúde (OMS) é peremptória: “As proibições de viagens não vão impedir a propagação internacional” da variante Ómicron. Por isso, a agência das Nações Unidas não hesitou em lançar, através de um comunicado, um apelo para que as fronteiras permaneçam abertas.

“Se as restrições forem implementadas, elas não devem ser desnecessariamente invasivas ou intrusivas, e devem ter base científica, de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional, que é um instrumento juridicamente vinculativo de direito internacional reconhecido por mais de 190 nações”, lembrou a OMS, acrescentando que, nesta caso, o excesso de zelo acarreta “um fardo pesado para vidas e meios de subsistência”, podendo “ter um impacto adverso nos esforços globais” de luta contra a pandemia”.

Apesar dos alertas, EUA, União Europeia e vários outros estados apressaram-se a bloquear o acesso ao seu território de voos vindos de países africanos.

Mais: mesmo sem evidência científica de que a nova variante do SARS-CoV-2 seja oriunda da África do Sul, os “donos da razão” não demoraram em apelidá-la de “variante sul-africana”.

De pouco ou nada adianta que, entretanto, as autoridades de Saúde da Holanda tenham vindo dizer que antes de terem detectado a presença da nova variante em duas pessoas provenientes da África do Sul, já a tinham identificado noutros pacientes.

Observamos igualmente que de nada serve os cientistas africanos terem feito o que lhes competia fazer, conforme reconhecido – novamente – pela OMS.

“A rapidez e transparência dos governos da África do Sul e do Botswana em informar o mundo sobre a nova variante é de elogiar. A OMS está com países africanos que tiveram a coragem de compartilhar corajosamente informações de saúde pública que salvam vidas, ajudando a proteger o mundo contra a propagação da covid-19”.

“Duas pandemias”?

Perante este posicionamento da Organização Mundial da Saúde, como entender a decisão já implementada por mais de 40 estados de fechar as fronteiras a países africanos?

O continente europeu que se proclama o berço da ciência esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas. Os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de proteção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias”.

A leitura acima reproduzida foi partilhada pelos escritores Mia Couto e José Eduardo Agualusa nas redes sociais, sob o título “Duas pandemias?”.

No texto, que se tornou viral, e que pode ser lido aqui, os autores defendem que “os países africanos foram uma vez mais discriminados”, e que “as implicações económicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar”.

Mia Couto e Agualusa acrescentam que mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão. Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceite com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto, a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas”.

Os escritores sublinham que os recém-comunicados encerramentos de fronteiras vão além da falta de solidariedade. “Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade”, assinalam, reforçando: “Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso”.

Já depois desta tomada de posição, Mia Couto reiterou, em declarações à agência Lusa:  “Estes países que foram bloqueados, uma espécie de novo ‘apartheid’, viam a possibilidade de neste fim de ano, principalmente naquilo que é a indústria turística, terem algum outro alento, mas não vai suceder”.

Sobre o mesmo tema, o escritor e jornalista João Melo, diretor da revista África 21, não hesita no diagnóstico: racismo sanitário, título do último texto de opinião que publicou no Diário de Notícias.

“Se dúvidas houvera, a decisão do alegado “mundo desenvolvido” perante a descoberta, na África do Sul, de uma nova variante do vírus da covid-19 – a Ómicron – confirma de uma vez por todas que a Europa e os EUA mantêm a sua atitude colonial em relação aos povos africanos e às nações pobres em geral”, considerou João Melo. Para o escritor, os últimos desenvolvimentos da pandemia revelam que o “o racismo anti-negro continua, mais de cinco séculos depois, a ser o principal obstáculo à edificação de uma autêntica “humanidade compartilhada” entre todos os homens e mulheres do planeta. Tal política, recorde-se, é uma das estruturas do sistema capitalista de desenvolvimento, desde o surgimento deste último”.

Retomamos a análise mais logo n’ O Lado Negro da Força.

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