Uma viagem ao encontro da História
e do legado de Nelson Mandela

Ontem assinalaram-se sete anos desde a morte de Nelson Mandela, chorada a 5 de Dezembro de 2013. Hoje regressamos a essa data, a partir de uma reportagem publicada no jornal Agora, de Angola. Apresentada assim: “Em Pretória, palco de um massivo cortejo fúnebre, atravessámos horas debaixo de um sol inclemente, por menos de um minuto ao lado do corpo do eterno Presidente da nação arco-íris. De passagem pelo Soweto, bairro da sua primeira morada em Joanesburgo, ouvimos memórias de clandestinidade, entrelaçadas com relatos dos primeiros dias de liberdade. Já nas ruas de Houghton, morada do leito de morte, acompanhámos peregrinações iluminadas à luz de velas e carregadas de flores e mensagens de adoração. Numa rota cumprida durante cinco dias de reportagem, encerrados no passado domingo na remota aldeia de Qunu, o Agora seguiu a última caminhada de Nelson Mandela, ponto de viragem para um novo capítulo da história da África do Sul”.

por Paula Cardoso*

Os olhos de Shoki Mokgabu pesam-lhe sobre o rosto, espelho dos primeiros sete dias de homenagens ao pai da reconciliação nacional. “Ele esteve sempre presente por nós, agora estamos nós aqui presentes por ele”, observa a funcionária pública, de plantão dia após noite, até ao limite da resistência física. “Não há como evitar. Sinto que se dormir mais estarei a perder os meus últimos minutos com Nelson Mandela”.

Revezada entre vigílias, transmissões televisivas, emissões radiofónicas, e iniciativas governamentais inteiramente dedicadas ao eterno Presidente da África do Sul, Shoki Mokgabu, de 37 anos, não deixou sequer de cumprir a maratona de acesso ao Union Buildings – centro do poder de Pretória.

“Da mesma forma que a vida de Madiba imortalizou-se como um hino à reconciliação, acredito que a sua morte oferece uma nova oportunidade para unir o país e os políticos”.

O “legado inestimável” do antigo Chefe de Estado, conforme classifica esta ‘filha’ de Mandela, mede-se não só pelos recordes de audiências televisivas – que nas primeiras horas de luto nacional prenderam cerca de 2 milhões de espectadores ao pequeno ecrã –, mas sobretudo pelas romarias populares.

Exemplo de perfeição

Em família e com amigos, acompanhados de ofertas, como flores e velas, agarrados a retratos e dedicatórias, brancos e negros, homens e mulheres, miúdos e graúdos, todos juntam abraços nas despedidas ao herói nacional. “Basta olhar em volta. Este é um exemplo da perfeição”, assinala a francesa Sabine Pillet, com o foco apontado para a gigantesca fila que, às portas do Union Buildings, consome horas em busca de um minuto ao lado do caixão do herói da libertação nacional.

“Como podem afirmar que o país vai sofrer uma guinada de radicalização racial?”, questiona esta gaulesa de 43 anos, residente na África do Sul há cerca de ano e meio.

A discussão sobre o período ‘depois de Nelson Mandela’, abordada com previsões de catástrofe entre páginas da imprensa internacional, não chega sequer a ecoar nas linhas que – durante os cinco dias de reportagem do Agora – quase transformaram as publicações nacionais em edições monotemáticas.

“Essa é a apenas a confirmação da grandeza da alma mais gentil, generosa e humilde que o mundo alguma vez conheceu”, entusiasma-se Deepika Ghela, no momento destas palavras em plena digestão das emoções que, à porta da casa de Madiba, em Joanesburgo, carregam a noite de intensidade dramática.

Aos 27 anos, esta sul-africana de raízes indianas recorda as semelhanças entre Mandela e Mahatma Ghandi, destacando o “poder universal” da mensagem do ícone da luta anti-apartheid.

O alcance global da herança do ex-Presidente evidencia-se na diversidade de assinaturas – africanas, orientais, europeias e americanas – que, em Pretória e em Joanesburgo, enfileiram tributos de escrita. “O teu corpo foi-se, mas o teu espírito e o teu legado permanecerão sempre entre nós”, lê-se num cartaz assinado por um grupo de estudantes da Guiné-Equatorial, e depositado em frente do Union Buildings.

Viver uma lição de História

Aqui, cenário de incontáveis convulsões emocionais – onde a comoção do desfile pelo caixão do herói nacional debela-se com a oferta de lenços de papel –, o silêncio ressoa mais alto. “É demais para ela. Já são 92 anos”, inquieta-se a acompanhante de uma mais-velha, que mobiliza à sua volta quatro braços de amparo militar.

Os gestos de apoio repetem-se ao longo do cortejo fúnebre de Pretória, cumprido durante três dias debaixo de um sol inclemente, mais para o final da tarde, também ao longo de três dias, substituído por poderosas descargas de chuva.

“O céu tem de estar em festa”, nota Millicent Ramododiba, do alto dos 65 anos de uma vida castigada pela opressão do apartheid. “Antes nem sequer podíamos pisar este chão [do Union Buildings]”, adianta a reformada, sem perder de vista a neta de 7 anos. “Veio despedir-se do avô Madiba”.

A presença infantil é uma constante ao longo dos 10 dias de homenagens a Nelson Mandela, vividos como uma raridade histórica. “Nenhum livro consegue transmitir esta mensagem”, lembra Millicent, destacando a importância da passagem do legado do pai da nação arco-íris às gerações mais novas.

Afinal, conforme reza o jargão de um vendedor ambulante, estacionado entre etapas do cortejo fúnebre de Pretória, “podemos sentir a ausência de Mandela mas não podemos esquecê-lo”.

A impossibilidade percebe-se pela profusão de murais que, em Pretória, Joanesburgo e Qunu, povoam as ruas com o rosto sorridente do ex-Presidente. “Indiscutivelmente uma inspiração”, contempla Kylie Janssens, de 38 anos.

Os desafios da orfandade

Encontramo-la em vigília diante da casa que testemunhou o último sopro de vida de Madiba, esgotada aos 95 anos. Aí, no exclusivo bairro de Houghton, em Joanesburgo – antes de Mandela reservado à minoria branca –, as memórias do antigo líder do ANC percorrem-se com a ajuda de um ecrã gigante, que exibe fotografias emblemáticas do aclamado herói nacional.

Agachada sobre um passeio transformado numa espécie de Jardim do Éden terreno – pela infinidade de flores que não deixam de ‘desabrochar’ das mãos de quem passa –, Kylie roga pela paz do eterno Presidente, apresentada como a paz da própria África do Sul.

“Madiba nunca descansará se não prosseguirmos o seu legado”, continua a empresária, integrada num grupo multirracial, fiel à imagem da nação arco-íris, agora órfã de pai.

“Por ser uma grande perda, acredito que vamos precisar de encontrar um novo laço unificador. Neste momento falta-nos alguém ou algo em que acreditar”, reconhece Kylie, porém confiante num destino de superação.

“O respeito, a tolerância, a unidade…todos estes valores fazem parte da nossa herança, são conquistas de que ninguém quer abdicar”.

A constatação é contudo insuficiente para serenar as previsões de instabilidade eleitoral, potenciadas a partir dos avanços da Aliança Democrática (DA na sigla inglesa).

Com uma mensagem cada vez mais popular junto dos novos eleitores – pouco sensíveis à argumentação dos ganhos do passado –, a DA surge, aos olhos das estudantes Zodwa e Abigale, como uma lufada de ar fresco. “Acusam-nos de ser pouco patrióticas, mas temos o direito de querer mais do que viver à sombra das conquistas do passado”, revelam as universitárias, num coro reivindicativo.

A alternativa ao ANC

“Precisamos de mais empregos, temos de combater a criminalidade, é urgente travar a corrupção”.

A “missão de contornos revolucionários”, segundo perspectiva Zodwa, é incompatível com a linha do ANC, “incapaz de se distanciar” das marcas do apartheid.

“Devido à sua formação multirracial, a DA é a única força que representa o sonho de Mandela em todo o seu esplendor”.

A alternativa ao partido do poder não convence contudo os mais velhos, unidos num voto de gratidão à força que libertou a África do Sul do apartheid. “Vivemos tempos muito difíceis. Não nos esqueçamos que antes de 1994 nem sequer tínhamos permissão para votar porque não éramos vistos como sul-africanos”, recua Samson Dibakwane, reformado de 65 anos.

Sem esconder a inquietação em relação à era sem Mandela – que recorda como “o homem que devolveu a vida a um país condenado à morte” –, Samson reconhece que as eleições gerais de Abril de 2014, serão decisivas para o futuro nacional.

Além de permitir tomar o pulso ao fulgor político da DA, que surge bem posicionada para ganhar terreno ao ANC numa das suas províncias mais emblemáticas (a Eastern Cape de nascimento de Madiba), o escrutínio vai estrear uma nova coligação.

Lançada na passada terça-feira, a futura aliança junta cinco partidos, com destaque para o Congresso do Povo (Cope), formação forjada a partir de uma facção dissidente do ANC.

“Para quê voltar atrás? Devemos a Tata Madiba a obrigação de seguir em frente e continuar a luta que ele começou”.

A voz da continuidade pertence a Francinah Ramoicolo, desconfiada de outras opções para além da imortalizada por Nelson Mandela.

Aconteça o que acontecer, o médico Leon Seymor, de 50 anos, acredita na solidez das quase duas décadas sem apartheid. “O futuro tem tudo para ser risonho porque Madiba deixou-nos uma sociedade sólida, constitucionalmente estruturada”, defende, lembrando que a incógnita maior se viveu após a libertação de Nelson Mandela.

Nove metros de Madiba

“Nessa altura, sim, havia muita incerteza. Confesso que cheguei mesmo a pensar abandonar a África do Sul”, conta Leon, antes receoso de se transformar em alvo de uma ‘caça ao branco’.

“Hoje esse é um cenário que não faz sentido. Claro que não podemos pensar que o trabalho está concluído – porque não está –, mas também não podemos cair no erro de desvalorizar os méritos da nossa reconciliação”.

Na linha das palavras do médico, a África do Sul viu ‘despontar’, na passada segunda-feira, em Pretória, uma estátua de bronze de Nelson Mandela.

O monumento, inaugurado em pleno feriado da reconciliação, e um dia depois do enterro de Madiba, promete reforçar as peregrinações ao Union Buildings, a partir de agora transformado no novo ‘templo de adoração’ ao ex-Presidente.

Recriado com nove metros de altura, mas recordado como um colosso da humanidade.

*texto publicado a 20 de Dezembro de 2013, no jornal Agora