Vamos votar! Pela nossa democracia, por um país onde todos temos lugar


Ameaçada pelo vírus do populismo de extrema-direita, a nossa democracia enfrenta, no próximo domingo, um teste de vida ou de morte: a eleição para as presidenciais. Com a nossa escolha temos o poder de salvá-la, combatendo um quadro de degeneração democrática fatal para as nossas liberdades. Por isso, no dia 24 de Janeiro é imperativo votar. O Afrolink junta-se aos apelos ao voto lançados pela Djass – Associação de Afrodescendentes, pela Solve Agency, e pelo artista Bruno Huca, que deixa um recado cantado às gerações vindouras: Não embarquemos “nessa aventura de acordar em ditadura!”.

por Paula Cardoso

A interrogação revolve-lhe os pensamentos: “Tiveste mesmo a coragem de ficar calado?”. De frente para o futuro, Bruno Huca confronta os próprios medos. “Assusta-me pensar que daqui a alguns anos as minhas sobrinhas, sobrinho e afilhado possam chegar à idade de jovens adultos, olhar para mim, e carregar no olhar de desespero, perante um mundo do avesso, essa pergunta”. 

A resposta traz-nos para um presente de intervenção. “É DE EXTREMA IMPORTÂNCIA EXERCER O DIREITO E DEVER DE VOTAR. Podemos sentir-nos a-partidários mas jamais a-políticos”, sublinha o artista, uma das vozes que, nos últimos dias, soltou o verbo em defesa da democracia.

Lembrando que “é de pequenino que se aprende a reconhecer o mau pepino”, Bruno lançou, nas redes sociais, “um recado cantado às gerações vindouras”.

A mensagem, com o nome de “A neo-loja do mestre André”, recorre às notas musicais de um clássico infantil para alertar contra a crescente ameaça da extrema-direita em Portugal.

Contra a extrema-direita, jamais calar

“Não vou votar no André”, canta o músico e actor, assumindo a urgência de um combate colectivo ao líder do Chega. “Acho perigoso que não falemos de qualquer avanço de políticos como André Ventura. Porque eles não deixam de “ganhar palco.” A máquina da propaganda é eficaz. É estudada. E isso é um valor que não lhe podemos negar”.

O fenómeno, lembra Bruno, expande-se a partir de múltiplos silêncios. “Uma das grandes lacunas das lutas pelo que é óbvio é precisamente cairmos na falácia de que é tão óbvio que não precisamos de advogar em favor delas: que não precisamos de advogar em defesa de direitos fundamentais, de liberdades fundamentais”, assinala, apreensivo. “Os discursos demagógicos e populistas dos políticos de extrema-direita ganham eco na fragilidade dos medos individuais e colectivos. E se apenas deixarmos que esse eco exista quando dermos por ele solidificou, e criou novas paredes, novos muros”. 

O apelo da Djass – Associação de Afrodescendentes no voto à esquerda

O risco de degeneração democrática, avisa a Djass – Associação de Afrodescendentes, já está escancarado em vários países, conforme demonstram os casos dos EUA, Brasil, França, Alemanha, Itália ou Reino Unido, onde a ascensão da extrema-direita se traduz em ódio, desunião e violência.

Por isso, pela primeira vez desde a criação, em 2016, a organização produziu um vídeo de cariz político, apelando, sem reservas, ao voto à esquerda nesta corrida a Belém.

O objectivo, assinala a presidente da Djass, Evalina Dias, é “chamar a atenção de todos e todas que se consideram anti-racistas e anti-fascistas para o perigo de se pensar que não vale a pena ir votar, e que o André Ventura e a sua retórica de extrema-direita não têm importância, e não constituem uma ameaça real à democracia e liberdade. Pedimos que votem à esquerda como uma manifestação clara contra os ideais populistas da direita que representa”.

A dirigente associativa nota que “as mensagens e as táticas que André Ventura usa não são originais”, mas sim extraídas de “uma cartilha amplamente conhecida e replicada”, conforme demonstram as imagens apresentadas no vídeo de apelo à votação.

“As próximas eleições são decisivas para a nossa liberdade”, alerta-se nesse manifesto audiovisual, que representa vozes de associações anti-racistas, anti-fascistas, de imigrantes e das comunidades ciganas.

A par da concertação de esforços em defesa da democracia, da liberdade e da igualdade, por via do voto à esquerda, Evalina Dias destaca a necessidade de se desmontar a armadilha do discurso anti-sistema.

“A única forma de os combater é através da desconstrução das mentiras e dos ódios que veiculam, e da denúncia dos seus verdadeiros motivos, que nada têm a ver com o combate ao sistema político instalado”, aponta a dirigente da Djass.

A missão, nota Bruno Huca, desafia-nos diariamente, individual e colectivamente.

Mobilização contra a abstenção

“A democracia é um exercício constante. A manutenção dos direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs é um exercício constante”, salienta o actor, partilhando uma medida concreta dessa prática. “Faço questão de escrever “cidadãos e cidadãs” coisa que não faria há uns anos, usando apenas um género. São avanços que se conquistam, mas que necessitam de uma manutenção constante, de um exercício diário. E assim acredito que seja com a democracia”.

Apesar de reconhecer – “com nenhum orgulho, mas com a consciência no lugar” – que em muitas legislativas, autárquicas e presidenciais engrossou as estatísticas da abstenção, Bruno considera que “a maturidade política também é isso”, um processo de aprendizagem.

“A política percebe-se diariamente, e foi esse encontro com o outro que me fez ganhar consciência dessa minha falha grave, que é a falha grave de muitos cidadãos e cidadãs”, diz o artista, reiterando o apelo à ida às urnas.

“Não se chega ao dia 25 de Abril de 1974 e se conquista a democracia sem termos de pensar mais sobre ela. A história ensina-nos a sua própria máquina cíclica. Portanto a ameaça é real desde sempre. E será sempre. Por vezes podemos celebrar e descansar com a conquista de determinados estágios civilizacionais mas não podemos jamais dormir sobre essas vitórias”.

Os números revelam, contudo, que o temos feito. “De lembrar que numa abstenção que se ficou pelos 51,3% nas últimas eleições presidenciais, apenas 19% dos portugueses com idades entre os 18 e os 24 anos votaram”, assinala a Solve Agency, empenhada em despertar o voto jovem.

Para isso, a agência de talentos lançou uma campanha digital, na qual vários artistas amplificam o mesmo pedido: “Vota”.

Muito sangue foi derramado para adquirirmos este direito

Dino d’ Santiago acrescenta ao repto a memória histórica. “Na cultura afro a nível global foi-nos durante muito tempo limitado o direito ao voto e foi muito sangue derramado para adquirirmos este direito. Sinto que não votar significa desonrar aqueles que perderam a vida para conseguirmos esse direito. É um direito e um dever que todo o cidadão tem”, destaca o músico, na campanha da Solve Agency.

Presente na mesma acção de sensibilização para o voto, a também cantora Blaya salienta a força transformadora das nossas escolhas.  “Se queres mudar alguma coisa à tua volta, começa pelo teu voto. O voto é sinónimo de liberdade, é onde podes ter voz, e fazeres parte da mudança de forma activa. Sendo mulher e mãe, desejo e luto por um futuro melhor tanto para mim, como para a minha filha. Um futuro onde a igualdade e o respeito, mais que importantes, são fundamentais. O voto é essencial para a mudança, mas um voto consciente é um passo enorme para a prosperidade.”

Mas até que ponto estamos despertos para a nossa responsabilidade?

Atento aos sinais de retrocesso – “vemos uma espécie de conservadorismo, que não cabe em 2021, a ressuscitar” –, o actor Paulo Pascoal une-se ao repto lançado pela Solve Agency, ainda que não possa votar nas presidenciais.

“É preciso haver pessoas esclarecidas e pessoas envolvidas – somos todos corpos políticos – para trazer a consciencialização de que é um dever cívico de todos”, começa por salientar o artista angolano.

“Sendo homem negro, queer, artista, há toda uma questão social, que se não me posicionar e impor-me como ser humano posso fazer com que seja precarizado”, diz, firme na acção social e política. “Quero que fique claro qual é a minha forma e o que uso para preservar os meus próprios direitos humanos”.

Cultivar o bem dá mais trabalho do que disseminar o mal, alerta Bruno Huca

A par da consciência e envolvimento individual, Bruno Huca recorda o desafio da intervenção colectiva. “Cultivar o mal sempre foi mais fácil do que cultivar o bem. Porque o bem é um lugar mais colectivo. Dá mais trabalho. E é mais fácil apontar o dedo para fora do que para dentro. E infelizmente existe sim esse lugar quase ingénuo de acreditarmos que o bem – e falo do bem genericamente – é óbvio, e que não precisamos de trabalhá-lo, exercitá-lo, orquestrá-lo em conjunto, em comunidade”.

Crente de que “o medo e o ego são talvez os principais inimigos da humanidade”, o actor insiste no repto à participação política – “Precisamos não ficar em cima do muro” – alertando para as manobras de dissuasão.

“Estes polvos de extrema-direita de múltiplos tentáculos sabem de facto mexer-se e manipular. Usam o medo. Usam as fragilidades colectivas. Incitam ao ódio. Incitam à preguiça de pensamento. Incitam à falta de empatia onde o outro passa a ser a razão do meu mal-estar”.

Como se não bastasse a ‘sedução’ do discurso populista, a crónica falta de identificação dos eleitores com a classe política deixa-nos ainda mais perto do abismo.

“Sempre me faltou ouvir nos discursos políticos alguém cuja agenda fosse de facto a “coisa pública” a “res publica”, o povo, os cidadãos e cidadãs. Sinto continuamente que as agendas políticas de cada partido se sobrepõem às preocupações reais de quem vive o dia a dia do país. Sinto que os nossos políticos estão mais ocupados em fazer campanha uns contra os outros do que a trabalhar no terreno a favor de um desenvolvimento económico e social e humano”.

Apesar de não se rever em nenhum dos candidatos e candidatas que estão na corrida à Belém, Bruno Huca não hesita no sentido de voto.  “Tenho a certeza do único que não podemos permitir que ganhe terreno”.

A convicção assume força musical com “A neo-loja do mestre André”, criada num rasgo criativo, entre desafios de ligação familiar.

“Cerca de dois dias antes de a gravar e publicar, tinha pensado em como tenho estado distante das minhas crianças – sobrinhas, sobrinho, e o meu afilhado que vivem em Moçambique –, e de como talvez fosse interessante criar uma espécie de vídeos com conteúdo social divertido para elas e eles, com uma mensagem, e que nos aproximasse, podendo eu brincar criativamente”.

A música de intervenção, contra o voto no líder da extrema-direita em Portugal, acabou por nascer desse pensamento, “misturado com as barbaridades que nos chegam pelas notícias, e mais algum tempo livre em casa”.

O resultado canta-se na primeira pessoa do singular –“Não embarco nessa aventura de acordar em ditadura” –, mas é no plural que, no próximo domingo, 24, nós vamos votar. Pela nossa democracia, por um país onde todos temos lugar.