Vânia escurece pensamentos em colectivo, ao encontro da Mulher Negra

 

O espírito de comunidade vivido na Pedreira dos Húngaros, “um dos maiores bairros de lata dos anos 90”, conforme descreve a antiga moradora Vânia Andrade, guiou o seu percurso para a criação do colectivo “Mulheres Negras Escurecidas” (MNE), construído como um espaço de “cura exterior através da cura interior”. Protegido de múltiplas agressões racistas.

por Filipa Bossuet

O “clique” surgiu a partir de um turbante proibido. “Chamam-me ao gabinete, e dizem-me que não podia usá-lo porque trabalhava no atendimento ao público. Não tive reacção”.

Mesmo sem plena consciência do que estava a acontecer, Vânia Andrade sentiu o peso de uma opressão continuada. “No momento em que começo a trabalhar com menos pessoas negras, passo a receber mais agressões”, conta, recordando uma série de “questionamentos sobre a forma como tratava o cabelo”.

Nem sempre Vânia soube o que responder, mas, do episódio do turbante, vivido na multinacional Ikea – onde trabalhou de 2014 a 2016 – até à criação do colectivo “Mulheres Negras Escurecidas” (MNE), no ano passado, Vânia encontrou respostas.

“Quando comecei a conhecer outras mulheres negras, a falar com elas e a ler o que escrevem, a perceber onde é que estamos, qual o nosso lugar, e como as mulheres negras LGBT são tratadas, comecei a perceber tudo o que tinha passado. Percebi que ter receio de ir a entrevistas de emprego com afro, ou querer ter um português ‘mais aportuguesado’ para ocupar certos espaços eram agressões”.

A ‘descoberta’ da Mulher Negra

Nesse processo, em que ia “bebendo” dos discursos no TEDx – nomeadamente da filósofa e activista brasileira Djamila Ribeiro, e de Carla Fernandes, fundadora do AfroLis, o audioblogue de expressão cultural feito por afrodescendentes a viver em Lisboa –, Vânia ouviu pela primeira vez o conceito “Mulher Negra”.

“Daí comecei a observar onde é que as mulheres negras estão. Comecei a ver que as donas dos cabeleireiros que frequentava, e quem tratava do meu cabelo eram mulheres negras; e que quando ia a manifestações contra a violência sobre a mulher, não encontrava mulheres negras”, nota a fundadora do MNE, acrescentando que ainda tentou mobilizar as amigas para os protestos.

“Convidava-as para irem comigo, mas elas recusavam porque não se sentiam pertencentes”.

Reconhecimento do espírito da identidade

Vânia refere que a sua “salvação” foram iniciativas como as “Conversas às Escuras” do Instituto da Mulher Negra em Portugal (INMUNE) – em que a co-fundadora, Joacine Katar Moreira, conversava à luz de uma vela com convidados de diferentes áreas –, e colectivos como o Consciência Negra e a FemAfro – associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal.

“Comecei a perceber o que era o feminismo, assisti a conversas na Casa do Brasil onde estavam especialistas, como a psicóloga Shenia Karlsson, e mesmo sem perceber metade do que ouvia, porque era muita coisa nova, passei a ter vontade de me reunir com mais mulheres.”

O primeiro encontro aconteceu em 2019 e juntou 20 mulheres.  Na intenção de que tivesse um propósito, Vânia decidiu sanar as dúvidas das amigas sobre o copo menstrual, uma alternativa aos tampões e pensos higiénicos descartáveis que, para algumas, era, até aí, completamente desconhecida.

“Cada vez que uma mulher conhece o copo menstrual e o usa, diminui a sua pegada ecológica. Falar do copo menstrual é para mim a maior oportunidade de partilhar algo maravilhoso, que é fazer com que as mulheres se conheçam, conheçam o seu ciclo e reconheçam que todas ficamos mais sábias quando menstruamos.”

Dessa conversa inaugural até hoje realizaram-se 16 encontros, exclusivos para mulheres negras e com diferentes temáticas. As chamadas “Tertúlias” acontecem em ambientes “intimistas”, seja em casa da sua dinamizadora, seja em jardins ou num estabelecimento comercial de uma pessoa negra, para manter o espírito de comunidade que Vânia diz ter-lhe sido negado conforme foi crescendo.

Filha de cabo-verdianos nascida em 1985, a fundadora do MNE faz parte da geração de afrodescendentes que nasceu em Portugal sem direito à nacionalidade. Os seus primeiros anos de vida foram passados em Oeiras, na casa onde a mãe, Lúcia Andrade, trabalhava como empregada interna.

“Lembro-me, muitas vezes, de estar com ela nesse trabalho. Entretanto, a minha mãe e o meu pai conseguiram construir uma casa num dos maiores bairros de lata dos anos 90, no concelho de Miraflores – o Bairro Pedreira dos Húngaros. A minha casa tinha dois quartos, um corredor enorme, uma sala principal e outra mais pequenina, a cozinha e a casa de banho.”

 

Apesar de reconhecer que as condições “não eram as melhores”, porque “aquilo era um terreno privado e as casas eram destruídas com ou sem pessoas dentro”, as vivências no bairro de construção clandestina deixaram saudades.

Além das boas memórias de ficar à janela com o irmão, dois anos mais novo, Vânia tem presente o gosto que tinha em fazer o caminho da escola para casa, e de chegar ao bairro e cumprimentar todas as caras que lhe eram familiares.

“Ia ao campo apanhar girinos e descia a rua com pneus, na brincadeira. Andava nos becos a correr, a fugir dos cães e a brincar.”

A realidade do Bairro dos Húngaros desapareceu quando a família foi realojada pela Câmara Municipal de Oeiras. Vânia tinha 12 anos e passou a morar num prédio, na Ribeira da Laje, com pessoas realojadas de outro bairro do município – o Alto de Santa Catarina. 

“No início não queria ir. Achava que sair de Miraflores era impensável, porque era ali a minha casa, era ali que estavam as pessoas que conhecia, a minha família, e de repente comecei a achar que esse sítio para onde ia morar era inseguro.”

A resistência ao novo espaço, extensiva a outros moradores, é hoje recordada como consequência de um medo, ainda que inconsciente, de que se estaria a quebrar uma “base de apoio” necessária.

“Mudar para um prédio levou muitas pessoas à depressão, porque, de repente, estavam fechadas num bairro que só tem uma entrada e uma saída, não sabem quem é o vizinho de baixo. Tudo se tornou desconhecido.”

O realojamento do espaço identitário

A “base de apoio” de que sentiu falta foi moldando as suas escolhas: no secundário, fez o curso profissional de Acção Social e estagiou num lar de idosos. Ao mesmo tempo, ia dedicando os tempos livres ao voluntariado, compromisso iniciado na Associação Novo Futuro, em Algés.

“Proporcionava um dia de actividades a miúdos que vivem em casas de acolhimento. Para além disso, continuei a ir ao lar de idosos onde tirei o curso, para medir a tensão aos ‘velhotes’, todas as quartas-feiras. Também fazia recolha de livros, roupa e comida, sempre direccionada ao apoio de pessoas negras.”

Nesse percurso, Vânia sonhava ser terapeuta ocupacional, mas, por desconhecimento, não prosseguiu nos estudos. “Naquela altura, ir para a faculdade era uma ideia distante. Pensava que a universidade era para pessoas ricas, não tinha noção que podia ter apoios, por exemplo”.

A falta de informação sobre o acesso ao ensino superior, bem como a ausência de referências profissionais diversas e diferenciadas, levaram-na para a restauração. 

“Quando pensas em trabalhar no McDonalds, vais porque alguém que conheces está lá – acho que isso é uma coisa que trouxe do Bairro dos Húngaros. No McDonalds sentia-me segura, mas não pensava que me sentia assim porque as pessoas que trabalhavam comigo eram negras. Nem sequer pensava que eram negras, simplesmente eram minhas amigas.”

À medida que se foi distanciando da vivência no bairro, e se movimentando por ambientes com maioria de profissionais brancos, Vânia começou a ganhar consciência das exclusões e discriminações. Mas, o despertar consciente de que algo estava errado surgiu com a experiência do turbante no Ikea.

Escurecendo pensamentos com as Mulheres Negras Escurecidas

A par dessa agressão, outras se repetem no quotidiano das mulheres negras, que encontram no MNE um espaço de partilha, nascido, de forma “orgânica”, daquela série de conversas iniciada em 2019.

“Hoje percebo que as tertúlias são rituais, porque quando te reúnes com as pessoas que te amam, que são iguais a ti, que são a tua comunidade, tu consegues chegar a lugares inimagináveis”. 

Dos encontros para o colectivo, mantém-se a inspiração identitária e vivencial.  “Os temas que escolho têm muito que ver com a minha existência. Falo de temas como a sexualidade da mulher negra, o seu lugar na sociedade, e o feminismo, por exemplo”.

Formado durante a quarentena de 2020, o MNE trabalha a “cura exterior como consequência da cura interior”, ou seja, “criando um espaço seguro para mulheres negras partilharem as suas experiências, empoderarem-se e desenvolverem actividades que aumentam o conhecimento acerca da história da população negra e, essencialmente, de mulheres negras em Portugal”.

Segundo a sua fundadora, “as Mulheres Negras Escurecidas acabam por ser o reflexo da mistura do institucional e não-institucional, do formal e do informal, ou uma coisa fora daquilo que são as normas exigidas em determinados espaços. É uma mistura de mulheres que são múltiplas, e que tentam que os espaços que ocupam tenham a sua pluralidade de experiências e perspectivas.”

Nesse sentido, o colectivo criou o “Espaço Obirin”, um clube virtual de leitura, que pretende proporcionar um ambiente de troca entre leitores e interessados na produção escrita de autoria feminina negra. Esta iniciativa resulta de uma parceria com o grupo Together2Change, a Liz Almeida, que faz parte do Núcleo Feminista de Évora, e o projeto Literaturas Afrikanas.

Ao clube de leitura juntam-se “As Tertúlias Muito no Feminino”, uma versão dos encontros intimistas iniciados por Vânia Andrade, para chegar a mulheres com outras pertenças étnico-raciais.  A expansão das conversas implementa-se, neste momento, no Bairro dos Navegadores, em Oeiras, com a consciência de que “não faz sentido” segmentar, “porque os bairros sociais já sofrem de exclusão”.

Disposta a levar o “Mulheres Negras Escurecidas” a mais espaços, Vânia destaca os benefícios da união: aprendeu a ouvir, a amar mais as mulheres negras e a julgar menos. A força do colectivo trouxe-lhe ainda a vontade de entrar no ensino superior e, no futuro, trabalhar com mulheres através da Sociologia. Tudo para que “mais mulheres negras possam ter a concretização de serem elas mesmas”.

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