Bruno Candé foi assassinado há três anos - importa recordá-lo
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Bruno Candé foi assassinado há três anos - importa recordá-lo
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A 25 de Julho de 2020, Bruno Candé era assassinado a tiro na Avenida de Moscavide, numa espiral de ódio racial. Um ano depois, o local do crime tornou-se um destino de homenagem, com o descerrar simbólico da “Avenida Bruno Candé”. Hoje, quando se cumprem três anos desde o crime, pelo qual o assassino Evaristo Marinho foi condenado a 22 anos e nove meses de prisão, relembramos a vida do actor, a partir da republicação das lembranças de quem o amou, ama e amará, recolhidas um dia após o homicídio.
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por Paula Cardoso
O aviso de que o pior estava prestes a acontecer soou pela voz previdente de um sacerdote: “Tem de baptizar o menino porque ele está muito doente”. Bruno Candé Marques ainda era um recém-nascido, e já a vida o desafiava a resistir.
“A minha mãe foi a correr buscar uma amiga, mas não tinha padrinho. Então o padre disse: ‘Ponha o Santo António’”.
O episódio, que tornou Candé um devoto do popular ‘Padroeiro dos pobres e dos que sofrem’, marcou o primeiro “milagre” da sua história, recorda Olga, a irmã mais velha.
“Mana, é assim que ele me trata”, conta ao Afrolink a primogénita da família, enquanto percorre algumas das memórias que mantêm o “seu” Bruno vivo.
Estamos no Bairro das Salgadas, em Chelas, território de infância, adolescência e também de amadurecimento de Candé, onde, desde o seu homicídio, parentes e amigos se foram multiplicando em homenagens.
A presença marcante do filho-irmão de Olga – “como a minha mãe trabalhava muito, sempre dei apoio em casa com a educação de todos” –, é perceptível no tempo verbal que utiliza a cada partilha.
“Todo o mundo o conhece por Candé, mas prefiro chamá-lo pelo nome próprio: Bruno”.
Sempre no presente, as recordações afectivas do pai de Ivo (sete anos), Ruben (cinco anos) e Beatriz (três anos) conjugam-se pouco mais de 24 horas depois da morte, barbaramente executada.
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“Foi puro racismo”
“Seis tiros! Quatro acertaram e dois falharam. Seis tiros! Que tipo de pessoa faz uma coisa destas? Quem é que antes de disparar grita: ‘Preto, vai para a tua terra!?’”, indigna-se Olga, peremptória na condenação: “Para mim, foi um assassinato por puro racismo”.
Pejado de indícios de ódio, o crime exibe igualmente demasiados sinais de premeditação, relatados à família entre notas de condolências.
“Contaram-nos que houve uma discussão na quarta-feira. Foi quando o senhor começou a andar com a pistola”, diz Olga, reproduzindo um dos diálogos que, segundo testemunhas, evidencia a motivação racista do crime, igualmente denunciada pelo SOS Racismo.
“O senhor desatou a insultar o meu irmão: ‘A tua mãe veio da senzala, eu fiz isto, isto, isto e aquilo à tua mãe. Aí ele respondeu: ‘Tu conheces a minha mãe de algum lado para estares a dizer isso?’”.
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Apesar do reiterado discurso de ódio, o homicida – que ficou em prisão preventiva – rejeitou, segundo noticia hoje o Jornal de Notícias, que os disparos tenham sido causados por uma fúria racista.
A narrativa parece encaminhar o processo para um desfecho habitual, conforme alerta o SOS Racismo. “Exigimos que justiça seja feita, para que o assassinato do Bruno Candé Marques não seja mais um sem consequências”, apela a associação, sublinhando: “O racismo já matou e continua a matar”.
Neste caso, a tese de “uma desavença por motivos fúteis” ganha terreno junto da investigação, refere o Expresso, citando fonte policial.
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Peppa de todas as horas
A sustentar a teoria da futilidade está a origem do desaguisado, que azedou a partir de um encontro corriqueiro, conforme descreve a irmã Beti. “Tudo começou com um tropeção na coleira da cadela – a Peppa”.
Peppa, que escrevemos com duplo P para sermos fiéis à personagem que lhe deu nome – uma porquinha animada e adorada pela filha única do Candé –, era, há mais de um ano a companheira de todos os dias, e fiel parceira de caminhadas.
Desaparecida durante umas horas, depois de ter fugido, com a violência dos disparos, a cadela, da raça Labrador, regressou ao apartamento onde vivia com Candé, tendo sido recolhida, ainda no sábado, por um amigo.
A família ainda não decidiu, contudo, com quem é que o animal vai ficar. “Quero muito que fique com uma família que seja especial, que garanta que a Peppa vai ser tratada como o Bruno a tratava”, aponta Olga, rápida em ilustrar os cuidados extremosos do irmão.
“Quando vim de férias a Portugal, no ano passado, o Bruno já tinha a cadela. Disse-lhe que não a queria dentro de casa, porque ia sujar tudo. Mas ele respondeu logo que se ela não podia entrar ele também não entrava”.
À medida que a conversa avança, as lembranças de Olga, recém-chegada de Inglaterra para o adeus final ao irmão, entrelaçam-se com as de Beti.
“Muitas vezes, o Bruno desabafava comigo e dizia: ‘Acreditas que as pessoas passam por mim na rua, não são capazes de me dizer boa tarde e vão directas à Peppa? Ele não gostava dessa atitude”. Também “nunca admitiu que dessem comida à cadela”, sublinha Beti, a primeira da família a receber a má notícia da morte de Candé, pouco depois transmitida à mãe pela primogénita.
“Estava ali a escolher as palavras, a tentar explicar que o Bruno nunca mais ia ligar, mas não havia uma boa maneira de dizer que ele morreu”.
Beti reforça: “Também estávamos com medo que soubesse através da televisão. Por isso, mandei a Fátima [a caçula da casa] desligar tudo, e, se fosse preciso, até mandar o quadro [de electricidade] abaixo”.
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O “milagre” de Santo António
Evitado o choque televisivo, os cinco irmãos de Candé revezam-se nos cuidados a Dona Cadi, a matriarca que aceitou o conselho do padre para fazer do filho Bruno afilhado de Santo António.
A devoção religiosa, abençoada com o milagre de uma vida que parecia fadada a uma partida precoce, voltou a marcar o destino da família há dois anos.
“Quando o Bruno esteve muito mal no hospital, por causa de um acidente de bicicleta, a primeira coisa que me ocorreu foi pedir a Santo António para o salvar”, realça Olga, recuperando fragmentos do segundo prenúncio de morte do irmão.
“Até hoje não sabemos o que aconteceu. Desconfiamos de atropelamento, mas nada ficou provado. A única certeza que temos é que caiu e bateu com a cabeça”.
A gravidade da queda, ocorrida durante a noite, ressalta também das memórias de Beti: “Foram três meses em coma e seis meses em recuperação, tempo em que esteve internado numa clínica”.
Aí, Santo António voltou a mostrar a veia de milagreiro, acreditam as irmãs de Bruno, que fizeram questão de reconhecer a sacra intervenção.
“Pensávamos que ele não iria conseguir, mas conseguiu levantar-se. Por isso, no ano passado estivemos todos aqui reunidos [em Chelas] para pagar a promessa. Fizemos uma massada, fomos ali ao altar de Santo António, levámos flores, acendemos velas, e o Bruno ainda chorou um bocadinho”, recordam Olga e Beti, num relato intercalado.
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Paixão de palco
A história do segundo milagre na vida de Candé conta-se ainda pelos efeitos sobre a sua mobilidade: “Ficou paralisado numa parte do corpo, e foi reformado por invalidez”.
O desfecho clínico acabou por travar – embora sem nunca parar – o sonho do Teatro, cumprido com a Casa Conveniente e Zona Não Vigiada.
“Começou a colaborar connosco, Casa Conveniente, em 2011 com o espectáculo ‘A Missão - Recordações de uma Revolução” encenado por Mónica Calle e com o qual ganha o prémio de melhor espectáculo do ano em 2012”, lê-se no comunicado divulgado pelo colectivo. A mensagem, disponível online, reconstitui a trajectória artística de Candé, que também inclui a participação na novela “Única Mulher”.
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“Foi actor dos espectáculos “Macbeth”, “O Livro de Job”, “Rifar o Meu Coração”, “A Sagração da Primavera”, “Noites Brancas” de Mónica Calle; “Drive In” de Mónica Garnel, “Atlas” de João Borralho e Ana Galante”, assinala ainda a nota, que alude, por fim, à experiência em cinema, com direcção de Margarida Cardoso.
O caminho artístico, conta a mana Olga, começou a projectar-se na infância. “Desde pequenino que gostava de Teatro, e na Casa Pia, onde estudava, deram conta disso. Por isso estava no grupo de Teatro deles. Depois foi fazer o curso do Chapitô”.
Pelo caminho, Bruno chegou a trabalhar numa oficina de mecânica como bate-chapas, até a paixão pelos palcos falar mais alto.
“Nós sabemos que é difícil, que não é de um dia para o outro que as coisas acontecem, mas dentro do que ele queria, foi conquistando algumas coisas”, orgulha-se Olga, sem esconder o arrependimento por não ter aceitado todos os convites para assistir a peças do irmão.
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39 anos em espectáculo
O próximo espectáculo, esse, promete juntar toda a família: a Casa Conveniente e Zona Não Vigiada estão a trabalhar num projecto inspirado na vida de Candé, brutalmente interrompida aos 39 anos.
“Está a ser preparado para 2021. No dia de hoje, torna-se certo que vai acontecer, com uma nova força”, refere a Casa Conveniente, no comunicado divulgado a propósito da morte do actor.
A anunciada peça biográfica promete encontrar nos testemunhos de Olga uma peça-chave. “Um dia, o Bruno disse: ‘Mana, há coisas da minha vida que não me lembro. Tu cuidaste de mim desde pequeno, por isso quero que contes a minha história do início. Depois eu continuo do ponto em que me percebi como gente”.
O desafio, lançado à primogénita da família há pouco mais de um ano, surgiu em contexto de produção teatral, sobretudo como um exercício de resgate das memórias perdidas com o acidente de bicicleta.
“O Bruno andava a tirar alguns apontamentos, que registava num caderno à medida que ia fazendo perguntas”, complementa Beti, enquanto conferencia com a sobrinha Andreia, que está na divisão ao lado, sobre a evolução desse processo.
Não restam dúvidas de que Candé estava mesmo a escrever a história da sua vida, que, a espaços, ia passando para o computador. Um dos capítulos fundamentais adivinha-se que seja o da paternidade.
“Era um óptimo pai”, elogia Guida, mãe do pequeno Ivo, que Olga e Beti apresentam como “a cara chapada” de Bruno.
Às parecenças de retrato, Guida soma semelhanças de personalidade: “É alegre e bem-disposto como o pai, que sempre lhe transmitiu um estado de espírito livre, mas responsável”.
Outra das características que ressalta na identidade de Ivo é a sociabilidade, mais uma herança paterna. “O meu filho diz-me sempre: ‘Mãe não me proíbas de estar com as pessoas, porque eu gosto muito de estar com elas”.
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Tal e qual a descrição de Beti, partilhada num misto de passado e presente: “O meu irmão adorava conviver. Chegava ao bairro e toda a gente sabia logo, porque ele tem um vozeirão. Diziam: “Olha vem aí o Candé”.
Na infância, enquanto estava na Casa Pia, Candé vinha sempre passar os fins-de-semana e as férias com a família, no mesmo perímetro de Chelas onde parentes e amigos se juntam para uma última homenagem.
À espera de um terceiro milagre
“Não é verdade que tenha sido abandonado como já ouvimos dizer. O meu irmão estava num Lar da Casa Pia porque a minha mãe queria que tivesse uma formação”, assinala Olga, desfazendo outro equívoco.
“O Bruno não foi educado na violência. Ele não faz mal a ninguém, nunca fez. Se der uma voltinha por aí pela zona e começar a perguntar a qualquer pessoa sobre ele, só vai ouvir maravilhas”, confia a mais velha, lamentando que a vida do irmão esteja a ser alvo de tantas distorções.
“Por favor, parem de especular. O Bruno nunca foi um menino de rua, sempre teve família. Vivia sozinho, mas isso não quer dizer que estava sozinho no mundo. Só quem o conheceu, quem conviveu com ele pode dizer como ele é”.
Ivo, o primogénito, que corre de um lado para o outro, é desafiado pelas tias a dar um testemunho. Mas, em vez de palavras, sai-lhe um sorriso rasgado.
Apesar de a mãe já ter conversado com ele sobre a morte do pai, a fé na ressurreição, descoberta na catequese, mantém viva a esperança de um novo encontro.
“O meu filho acredita que Deus faz milagres, e que esse poder poderá trazer o pai de volta.” Nem que seja pelo tempo de um sorriso.
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