Fortuna são-tomense nos cofres da Misericórdia
Apresentada, entre referências históricas, como “Dona negra, de alma branca”, “Dama Negra da Ilha dos Escravos”, “Proprietária, negociante de açúcar e mecenas da Misericórdia”, ou simplesmente “Dona Simoa”, a são-tomense Simoa Godinha é uma das figuras que ajudam a contar a longa história da presença negra em Portugal. Detentora de um património invejável, Dona Simoa deixou uma fortuna à Misericórdia de Lisboa, cidade central na sua trajectória, que revisitamos com a reedição deste artigo, originalmente publicado sob o título: “A são-tomense que deixou uma fortuna em terras e jóias à Misericórdia de Lisboa”.
“Dona negra, de alma branca”, “Dama Negra da Ilha dos Escravos”, “Proprietária, negociante de açúcar e mecenas da Misericórdia”, ou simplesmente “Dona Simoa”, todos os epítetos se cruzam na história de Simoa Godinha.
Nascida em São Tomé e Príncipe, onde se casou com o fidalgo português Luís de Almeida, Simoa mudou-se para Lisboa acompanhada do marido, algures em 1578. Aparentemente, procuraram fugir a alguns focos de tensão que começavam a perturbar o país africano.
Na capital portuguesa, o estilo de vida faustoso do casal depressa “denunciou” o seu elevado estatuto socioeconómico.
Contudo, desenganem-se os que pensam que a fortuna que ostentavam – e que serviu, entre outros luxos, para a compra de uma casa apalaçada junto ao Tejo – era fruto da linhagem nobre do português.
Embora subsistam dúvidas sobre a proveniência da fortuna de Dona Simoa, é inegável que ela era a abastada da casa. Especula-se até que essa fortuna estivesse na sua família há várias gerações, e que pudesse ser fruto do casamento de uma das suas ancestrais com um português.
A hipótese encontra sustentação nas estratégias de casamento e propriedade feminina que marcaram a História de São Tomé e Príncipe nos séculos XVI, XVII e XVIII, analisadas pelo investigador Arlindo Manuel Caldeira, em artigo publicado na Revista Arquipélago - História.
Seja como for, o facto é que, quando chegou a Lisboa, Dona Simoa manteve a condição privilegiada que tinha em São Tomé e Príncipe.
Além de fixar morada na zona nobre da cidade, lado a lado com uma vizinhança igualmente distinta – que incluía os Condes de Linhares e de Portalegre –, Simoa veio para a capital lusa acompanhada não apenas do marido, mas de várias pessoas escravizadas.
“(…) um número apreciável em Portugal, raro mesmo entre membros da primeira nobreza do reino”, escreveu Jorge Fonseca, em artigo académico publicado pelo CHAM – Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade de Lisboa. A este texto devemos a referência de Simoa Godinha como “proprietária, negociante de açúcar e mecenas da Misericórdia”.
No mesmo trabalho, Jorge Fonseca indica que “dos 18 escravos mencionados no testamento, 15 foram deixados livres”, enquanto os restantes três foram legados a obras religiosas, de saúde e de caridade.
O autor refere ainda que Dona Simoa destinou um número desconhecido de músicos à Misericórdia de Lisboa, para garantir que as cerimónias na sua capela do Espírito Santo tivessem animação.
É nesse espaço, erguido na antiga Igreja da Misericórdia, hoje Igreja da Conceição Velha, que a são-tomense está sepultada, desde Março de 1594, tal como o marido, falecido anos antes.
Refira-se que essa ala da Igreja sobreviveu ao terramoto que, em 1755, destruiu Lisboa. Protecção da patrona?
O que se sabe é que a devoção religiosa levou Simoa Godinha a destinar à capela o rendimento das suas três fazendas de São Tomé, que não poderiam ser nunca alienadas, “para que não viesse a faltar nada, antes se achasse sempre ‘muito provida, ornada, favorecida e reverenciada’”, indica o testamento, citado por Jorge Fonseca.
Dona Simoa, que a autora Ana Cristina Silva apelidou de “A Dama Negra da Ilha dos Escravos”, numa obra em que apresenta as memórias da são-tomense, deixou a gestão das suas últimas vontades à Misericórdia, à falta de descendentes, nomeada sua herdeira universal.
O património deixado por Simoa Godinha incluía, além de lucrativas terras em São Tomé e Príncipe, edifícios em Lisboa, quintas, ouro, prata, jóias, e uma grande fortuna em rendimentos e juros.
Segundo o testamento, publicado na íntegra na Revista Municipal de Lisboa, de 1987, a Misericórdia de São Tomé e Príncipe também foi beneficiária.
Na menção a esse documento, séculos após a morte de Simoa Godinha, em 1964, V.M. Braga Paixão apelidou a são-tomense de “Dona negra, de alma branca”, reflectindo o pensamento comum português – de inferiorização e desalmanização do negro – durante uma comunicação na Academia de Ciências de Lisboa.
A mesma mentalidade lusa é notada no registo do óbito de Simoa Godinha, quando o religioso que o lançou se limitou a chamá-la de “Dona Simoa de São Tomé”. Sem direito a apelido, com despacho para a sua terra.