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“Vulva Negra” - a militância discursiva de Yasmin que exorciza o espírito obsessor da branquitude

Com apenas 18 anos, Yasmin Morais criou, em Salvador, na Bahia, o projecto “Vulva Negra” para difundir “o trabalho intelectual que mulheres negras têm construído no Brasil e na América do Sul”.  Aos 24 anos, e de passagem por Portugal – um dos destinos de internacionalização da iniciativa – activista falou com o Afrolink sobre esta proposta, que descreve como “feminista material e radical”.

Com apenas 18 anos, Yasmin Morais criou, em Salvador, na Bahia, o projecto “Vulva Negra” para difundir “o trabalho intelectual que mulheres negras têm construído no Brasil e na América do Sul”.  Aos 24 anos, e de passagem por Portugal – um dos destinos de internacionalização da iniciativa – a activista falou com o Afrolink sobre esta proposta, que descreve como “feminista material e radical”. A conversa passou também pelo “ranço colonial” que ainda reveste de “grande animosidade” as relações entre portugueses e brasileiros, sem esquecer as ameaças à nossa humanidade, decorrentes da ascensão de forças políticas anti-democráticas. “A extrema-direita está muito bem organizada, não apenas no continente europeu, como também ali na América do Norte e infelizmente também na América do Sul. Eles já perceberam que a grande luta desse século é a luta por significado”, nota a baiana, reflectindo sobre a demonização das identidades. “Algumas pessoas dizem que as pautas negras são identitárias, ou que as pautas das mulheres são identitárias, quando são extremamente materiais”, assinala, sublinhando: “Nós estamos falando das nossas vidas e das nossas possibilidades de existência”.  Quem se recusa a escutar?

Yasmin Morais, fundadora do “Vulva Negra”, aqui fotografada por Catherine Sant’ Ana e, na foto de capa,  por Ivny Coura

Os olhares atravessaram-lhe o caminho para não ser quem é. “Eu me sentia vista como algo diferente de humana”. Ainda criança, Yasmin Morais confrontou-se com a impossibilidade até mesmo de estar. “No recreio, momento de confraternização entre as crianças, eu brincava sozinha, porque elas fingiam que que eu não estava ali”.

Única negra da sala, a baiana começou, logo aí, a destituir-se de si própria.

“Essas violências contribuem para um auto-ódio muito grande em mulheres negras. Lembro que a primeira vez que os meus cabelos foram alisados eu tinha 7 ou 8 anos”, conta a hoje escritora, palestrante e comunicóloga, sublinhando a importância dos questionamentos.

“Fui percebendo desde cedo como a desigualdade ia moldando minhas possibilidades, minhas oportunidades, e a maneira como as pessoas me viam. Então, me perguntava: por que as pessoas me olham de uma maneira que elas não olham para as minhas outras colegas, garotas brancas e loiras? Por que isso acontece? O que significa isso? Por que as coisas são como são? Buscar respostas, acabou sendo um caminho natural para mim”.

Natural do estado da Bahia, onde nasceu há 24 anos, Yasmin explica como a vida lhe demonstrou que “a cidade mais negra fora do continente africano também é um tanto hostil com a comunidade negra”.

Além das desigualdades no acesso à educação, a activista aponta para as diferenças no acesso à habitação. “Estudei em uma escola particular, porque a minha mãe era professora lá, mas a maior parte das pessoas negras se concentram nas instituições de ensino público”, nota, sublinhando o quanto a estratificação social se evidencia no quotidiano – “As pessoas brancas vivem nos melhores bairros”.

Mais do que observar e questionar, Yasmin decidiu actuar.

“Comecei a procurar leituras que me trouxessem respostas. Então, acabei esbarrando com autoras maravilhosas, tanto nos Estados Unidos como no Brasil”.

Os encontros literários, com figuras como Angela Davis e Lélia González, trouxeram-lhe compreensão e construção da sua identidade, negra e feminina.

“As pessoas olham a aquisição de conhecimento como algo bom – e é realmente muito bom –, mas quando nós falamos do conhecimento sobre a questão étnico-racial e feminina, sempre vem de um lugar muito doloroso. Você se interessa por saber porque as coisas são como são, porque elas te atingiram primeiro e isso também tem de ser levado em consideração”.

Para começar, Yasmin pergunta: “Quantas de nós não gostariam de ser mais claras, por exemplo? Ou de se enquadrar na noção de feminilidade eurocêntrica?”.

Quebrar correntes de subalternização

Assumidamente fora dos padrões ocidentais, a baiana defende que “como mulher negra, com um nariz largo e cabelos crespos”, não cabe na construção feminina dita ‘universal’. “Os meus traços estão muito mais associados àquilo que dentro da concepção eurocêntrica seria masculino ou animalizado”.

Hoje consciente dos mecanismos de apagamento e silenciamento, e das tentativas de aniquilação da existência negra, a activista alerta para a importância da resistência e ruptura com dinâmicas de subalternização.

“O ódio que nos dirigem acaba se impregnando na nossa personalidade. Então, o trabalho de conscientização com mulheres negras também é uma espécie de exorcismo do espírito obsessor da branquitude, que tenta incutir nas nossas cabeças que não somos boas o suficiente, quando na verdade somos”.

O auto-conhecimento e reconhecimento, iniciado na infância, amplifica-se, há seis anos, através da plataforma “Vulva Negra”.

“Tinha apenas 18 anos, um celular velho e um sonho. Hoje, já representamos o Brasil em mais de seis países e, no ano retrasado [2022] me tornei a primeira brasileira a palestrar no palco principal da maior conferência feminista actual da Europa – a FiLiA Conference”.

O testemunho está afixado na página do projecto no Instagram, lugar de afirmação e celebração.

“Eu demorei muito para me apropriar de uma percepção positiva sobre mim. Hoje eu considero que eu tenho uma óptima autoestima, mas é uma construção, porque na minha infância, na minha adolescência, eu passei por muitos conflitos internos”.

Desde logo, Yasmin conta como não se identificava com as construções de feminino.

“Eu sei que sou uma mulher, mas levei anos e anos para conseguir dizer que eu sou uma mulher, porque não me sentia dessa forma”, diz, explicando que cresceu com “uma definição completamente limitante” do que representa estar nessa pele.

“Pensando especificamente no contexto brasileiro, e religioso, as pessoas apresentaram para mim que ser mulher é ser submissa, é ser compassiva, é ser compreensiva…É andar dois passos atrás de um homem. Não lado a lado, nem à frente. Dois passos atrás. E eu, como aquela criança, como aquela adolescente, pensava: isso é ser uma mulher? Então, eu anulo essa possibilidade”.

A importância de ler

Já longe dessa invalidação, a escritora conta que o estudo, associado às experiências que foi tendo ao longo da vida, lhe permitiram desmontar essa construção social.

“Percebi que, na verdade, aquilo ali é uma noção completamente arcaica e patriarcal de quais são as possibilidades para uma mulher”.

Aos 24 anos, Yasmin afasta-se de impossibilidades, e propõe, com o seu projecto, “uma perspectiva crítica às noções clássicas”, posicionando-se pelo abolicionismo de género, por acreditar que o mesmo nos é imposto, de forma limitante.

Apesar de reconhecer as condicionantes, a palestrante faz questão de se afirmar mulher, ao mesmo tempo que desafia padrões. “Ser uma mulher que viaja, que é activista, que está no mundo”, e “não ser submissa, não ser feminilizada, não ter o nariz fino…não retira a minha mulheridade”.

Segura na sua pele, a escritora reafirma a importância da literatura no seu processo de humanização, afirmação e exaltação negra.

“Sei que tenho uma história incomum, um pouco fora da curva”, admite, de volta aos tempos de criança.

“A minha mãe é professora, e sempre foi professora. O meu pai, durante a adolescência, início da juventude, era um escritor. Então, a minha família sempre foi circundada pela questão educacional da parte da minha mãe, e pela questão literária da parte do meu pai”.

A conjugação facilitou o acesso a livros, congratula-se a palestrante, reiterando que “apesar de ser uma pessoa negra que veio da classe socioeconómica baixa no Brasil”, desfrutou do “privilégio de ter pais que encorajam a ler”.

A influência permitiu-lhe treinar, precocemente, o músculo da escrita. “Eu me descobri escritora muito cedo. Com 10 anos, eu já escrevia poemas porque eu me sentia mesmo incentivada pela minha família”.

Lembrando que, no Brasil, “a maioria das pessoas lê, no máximo, um livro por ano”, Yasmin questiona o impacto dessa circunstância.

“Não estou aqui dizendo que é impossível construir conhecimento de outras formas. Você pode assistir a documentários, aulas, palestras, mas ler é uma forma de se apropriar do seu próprio senso crítico, da sua própria perspectiva”.

Enraizada no seu lugar de pensamento, a fundadora do “Vulva Negra” reflecte sobre as ameaças da extrema-direitas a múltiplas identidades; sobre “ranço colonial” que tensiona as relações entre brasileiros e portugueses; e sobre a proposta do seu projecto.

Militância discursiva

“O nome “Vulva Negra” surge por dois motivos interessantes: primeiro, porque é um trocadilho com a aranha viúva-negra, que devora o macho depois do acasalamento; segundo, porque essa palavra ainda é um grande tabu, e, por isso, as pessoas utilizam 1001 nomes inventados para não falar vulva”.

Em contracorrente, a escritora avançou para o que chama de “militância discursiva”: “Toda pessoa que tiver que falar do meu trabalho, vai ter que falar a palavra”.

A ‘profecia’ cumpre-se em jornais, revistas e nas televisões, que acompanham as actividades, nacionais e internacionais, em que o projecto criado por Yasmin Morais está envolvido.

É também na arena mediática que se percebe, cada vez mais, a ascendência da extrema-direita, que cresce sob impulso de polarizações identitárias.

“Penso que é interessante que todos nós, a nível individual, defendamos nossas identidades e nossas questões. Mas é importante, sobretudo, que isso também não nos impeça de ter um olhar colectivo”, defende a baiana, alertando para a distorção de termos por forças anti-democráticas: “Apropriam-se e colocam tudo de forma pejorativa”.

Atenta a essa perversão, a comunicóloga nota que “a extrema-direita está muito bem organizada, não apenas no continente europeu, como também ali na América do Norte e, infelizmente na América do Sul”, e já percebeu que “a grande luta desse século é a luta por significado”.

Por isso, diz, “eles estão a todo o momento se apropriando e se reapropriando de conceitos”.

A manobra exige maior e melhor concertação de esforços, aponta Yasmin. “É muito importante nós termos consciência que estamos vivendo um momento social em que aqueles que se posicionam contra nós, contra as minorias, a comunidade negra e as mulheres, sentem muito medo dos nossos movimentos auto-organizados, não apenas por emancipação, mas também pela justiça que todos nós merecemos como cidadãos”.

A palestrante destaca ainda que “quando esses indivíduos nos vêem nos auto-organizando, criando nossos eventos, nossos movimentos, nossas petições, quando nos vêem pensando a nível político, eles gostam de nos taxar como pessoas perigosas, como pessoas radicais, em um sentido ruim”.

Dando como exemplo o Brasil, a escritora nota que “não há uma polémica dentro dos movimentos de esquerda em falar que nós precisamos de um combate radical às estruturas: do próprio capitalismo, da opressão social e económica”.

No entanto, prossegue a fundadora do “Vulga Negra”: “Quando se fala na questão étnico-racial ou na questão de género, as pessoas vêm com um discurso, que é muito mais próximo do ‘não se pode ser radical demais’”. Então, continua Yasmin, “enquanto você acredita que pessoas negras ou que mulheres precisam também vivenciar uma emancipação completa, outras pessoas olham esse discurso como se fosse algo pernicioso para a sociedade, começam a demonizar, quando, na verdade, o feminismo material nada mais é do que a busca pela emancipação das mulheres e das pessoas negras, compreendendo que nós somos oprimidos historicamente, por razões que nos foram impostas a partir da nossa materialidade: ser negro e mulher”.

Sem nunca perder o fio aos questionamentos, a activista baiana dispara: “Se nós não observamos quais são os factores que constituem a nossa realidade, como vamos pensar políticas públicas para mulheres negras? Como vamos pensar políticas públicas para as pessoas em situação de subalternidade?”.

Sublinhando que “essas questões são históricas”, a escritora adianta que “o empobrecimento das mulheres negras no Brasil, por exemplo, vem desde a época da colonização”.

A explicação é simples: “Quando nós pensamos que, após a Abolição da Escravatura no Brasil, pessoas negras não receberam políticas de reparação; quando pensamos que mulheres demoraram muitíssimo para poder ter acesso a condições financeiras e económicas, temos de reconhecer como isso influencia de certa forma a maneira como nós vivemos hoje”.

Limpar o ranço colonial, para Portugal aprender com o Brasil

O impacto do passado no presente não é teórico, avisa a baiana, insistindo na dimensão concreta das opressões.

“Porque quando nós estamos vivendo em países que não são a favor de pessoas negras, de mulheres e de minorias, nós não estamos em uma guerra conceitual, nós estamos em uma guerra por sobrevivência, por existência com dignidade. Então, algumas pessoas dizem que as pautas negras são identitárias, ou que as pautas das mulheres são identitárias, sem compreenderem que essas pautas são extremamente materiais”.

Por entender está igualmente o caminho que brasileiros e portugueses podem construir juntos.

 “Eu sinto que há uma grande animosidade, de certa forma, entre portugueses e brasileiros, porque ainda há no Brasil o que nós chamamos de ranço colonial. Ainda há ali uma sensação de superioridade dos portugueses face aos brasileiros por termos sido colonizados”.

Poderá a forte presença da comunidade brasileira em Portugal contribuir para eliminar esse “ranço”?

“Sinto que nós temos muito a ensinar no quesito étnico-racial, porque estamos há muito tempo fazendo isso, lutando por isso no Brasil, e já houve vitórias. Apesar de tudo, temos aí a lei de cotas. Temos aí o Ministério da Igualdade Racial. Temos avançado da maneira que nos é possível”.

Nessa trajectória, Yasmin destaca o protagonismo feminino.

“Lá atrás, houve uma questão muito interessante, das ganhadeiras, mulheres negras que às vezes não eram sequer libertas, e ainda trabalhavam para os seus senhores. Utilizavam a venda de alimentos, e de pequenas coisas como método para financiar a compra da alforria de outros indivíduos negros, de suas famílias e de suas comunidades”.

Séculos depois, a história renova-se com o movimento feminista e anti-racista, nota a escritora. “É muito mais fácil a gente ficar quieta do que falar sobre as coisas como elas são. Mas nós, mulheres negras, saímos desse lugar, e estamos, de certa forma, contribuindo para a compra dessa alforria – que agora é psicológica – das pessoas que fazem parte da nossa comunidade.” Até à libertação final!

Fotografia de Catherine Sant’ Ana, num dos encontros promovidas pelo projecto “Vulva Negra”

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