Um “tsunami na cidadania moçambicana” chamado Venâncio Mondlane

Se, como aponta a socióloga Sheila Khan, há um “tsunami na cidadania moçambicana” chamado Venâncio Mondlane, que marcas deixará a sua passagem? “Acho importante perceber que Venâncio Mondlane vai escrevendo uma nova página na política, e na maneira de fazer política em Moçambique”, considera a também investigadora e professora, lembrando o efeito dos resultados eleitorais na Assembleia Nacional. “É preciso pensar como é que a FRELIMO vai dialogar com o PODEMOS [partido que apoia Venâncio], e como é que o PODEMOS pode conquistar um lugar perdido pela RENAMO há muito tempo”, em concreto, “desde a morte de Afonso Dhlakama”.

Foto de Yassmin Forte

O xadrez político em Moçambique joga-se num novo tabuleiro – que se estende das redes sociais às ruas –, e com uma mudança de regras que a liderança da Frelimo, instalada no poder desde a Independência, foi incapaz de antecipar.

“Só agora é que o Governo abriu os olhos, e se apercebeu que o povo, a democracia, a cidadania moçambicana vive nas redes sociais, e foi aí que o Venâncio Mondlane conseguiu efectivamente granjear e conquistar [apoio]”, nota a socióloga Sheila Khan.

Atenta à actualidade no país do Índico, onde nasceu, a também professora e investigadora é uma das pessoas que, em Portugal, se tem dedicado à análise do que acontece do Rovuma ao Maputo.

Ainda assim, refere que ficou “tristemente surpreendida” com as convulsões pós-eleitorais.

“Tudo apontava para uma fraude eleitoral, mas não estávamos preparados para isto. Como estamos muito próximos dos 50 anos da Independência, pensei, na minha ingenuidade, que haveria um certo respeito, algum pudor e alguma aprendizagem relativamente às últimas eleições autárquicas”, adianta Sheila, recuperando as evidências de fraude que, no ano passado, também levaram o povo a sair à rua, e conduziram mesmo à repetição da votação em alguns distritos.

Já aí, aponta a socióloga, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) revelou a sua deriva, expressa numa impopular negociação com a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), que, em troca de algumas autarquias, parece ter abdicado de ser oposição.

“Lembro-me perfeitamente de ver uma notícia, em que o título era mesmo ‘A RENAMO quer perder’”, diz a analista, defendendo que a escolha de Ossufo Momade para a corrida eleitoral foi um erro, ao que tudo indica, intencional.

“Indo ao encontro das reflexões de alguns analistas, observo que esta RENAMO é uma oposição fácil, fraca e maleável. É uma oposição que efectivamente a FRELIMO consegue manipular e dominar para alcançar os seus objectivos”.

A “imaturidade” e “irresponsabilidade” da FRELIMO

Os jogos de poder entre aquelas que têm sido as duas principais forças políticas de Moçambique pós-Independência subestimaram, contudo, os elevados níveis de insatisfação popular, capitalizados por Venâncio Mondlane.

Excluído da disputa à liderança da RENAMO, Venâncio abandonou o partido – onde militava desde 2018 e assumia crescente protagonismo –, e renunciou ao mandato parlamentar que exercia, para avançar para uma candidatura independente à Presidência da República. O PODEMOS - Partido Optimista para o Desenvolvimento de Moçambique foi a plataforma que encontrou para abrir caminho até às urnas, depois de a sua primeira opção – a CAD – Coligação Aliança Democrática – ter sido afastada, sob alegações de irregularidades no processo de inscrição.

“A ingenuidade disto tudo foi pensar que Venâncio Mondlane, não obstante todos os obstáculos que lhe foram pondo pelo caminho, não ia ter a capacidade de contorná-los e de os suplantar. Esqueceram-se de olhar não só para as características da sua personalidade, como para as novas ferramentas de comunicação”, assinala a especialista, lembrando o papel mobilizador que as redes sociais têm desempenhado nesta conjuntura.

Além da forma que escolheu para chegar ao eleitorado e amplificar a sua mensagem, Venâncio popularizou-se pelo conteúdo das intervenções, dirigido aos mais jovens e aos mais pobres.

A crescente projecção pública, assente na sedução do eleitorado moçambicano, no país e na diáspora, tem suscitado desconfianças sobre as suas ligações externas, nomeadamente à extrema-direita portuguesa, e à igreja evangélica sueca.  

Para Sheila Khan, contudo, as colagens de Venâncio ao populismo não colhe. “Acho que temos que estudar bem o que é o populismo, em primeiro lugar. Em segundo lugar, temos que estudar bem o populismo e os seus contextos.  Nos vários discursos de Venâncio Mondlane, uma das coisas que eu acho que ele não usa – ou que vai usando só de vez em quando – é a questão da elite. E a verdade é que os populistas são anti-elite, é uma coisa que massacram até ao cansaço: essa luta anti-elites”.

Centrando a análise na FRELIMO, a socióloga acusa o partido no poder de não parar de dar mostras de “imaturidade e irresponsabilidade”, traindo a sua própria história.

“A FRELIMO de hoje não é aquela pela qual se pugnou, pela qual tantas pessoas se entregaram. É uma FRELIMO manipuladora, é uma FRELIMO assassina”, sublinha a especialista, de crítica apontada para o controlo exercido sobre as comunicações, e para a repressão policial que ‘varre’ manifestações pacíficas à lei da bala.

Assembleia Nacional renovada

A evidente incapacidade de aceitar os desejos de mudança da população, não pode contudo, avisa Sheila, ignorar a nova configuração de forças parlamentar.

“A Assembleia Nacional de Moçambique tem uma nova oposição que é o PODEMOS, que roubou lugar à RENAMO e ao MDM [Movimento Democrático de Moçambique]. Agora é preciso pensar como é que a FRELIMO vai dialogar com o PODEMOS, e como é que o PODEMOS pode conquistar um lugar que foi perdido há muito tempo pela RENAMO”, em concreto, “desde a morte de Afonso Dhlakama”.

O que se segue? Sheila Khan antecipa novas tentativas de coaptação, à semelhança do que aconteceu após as autárquicas, mas duvida da sua eficácia.

“Há rumores de negociação nos bastidores, mas Venâncio Mondlane é um homem inteligente, arguto, e tem uma coisa que nenhum dos líderes dos outros partidos tem, que é a capacidade de, neste momento, ser um tsunami na cidadania moçambicana. Nem o Ossufo Momade, nem o Lutero Simango…ninguém conseguiu fazer isto”.

Que marcas deixará tudo “isto”?

“Estamos no momento do desespero. A população continua a dar o peito às balas, porque as pessoas percebem que já não têm nada a perder”.  

Ou, como dizia um dos cartazes exibidos nos protestos em Maputo: “Roubaram-nos até os sonhos”.

Sheila Khan

Paula Cardoso

Jornalista, Fundadora da rede Afrolink e Autora da série de livros infantis Força Africana.

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