Fronteiras que condenam: “Fui segregado dentro do meu país”

O passeio “Noz Stória”, conduzido por José Baessa de Pina, ou simplesmente Sinho, guia-nos por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”. Neles cabem festas que celebram rituais e identidades que o colonialismo criminalizou e a polícia continua a reprimir, e também o acolhimento de todas as pessoas, a determinada altura da história, povoado de hordas de filhos de famílias brancas e privilegiadas, expulsos de casa entre percursos de toxicodependência. Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência. Contra tudo e contra todos, “aqui houve felicidade”.

Sinho, o anfitrião do “Noz Stória”

Duas crianças morreram num incêndio, que escancarou a precariedade habitacional em que viviam. Nada mudou. Famílias inteiras perderam tudo com o avanço de cheias, especialmente impiedosas diante da fragilidade infra-estrutural. Nada mudou.

Só quando o negócio das construções rodoviárias se começou a movimentar em redor das Portas de Benfica, é que a realidade nos bairros de auto-construção ali à volta mudou.

O mapa da transformação – em que transacções de asfalto e betão pesaram e continuam a pesar mais do que as pessoas –, traça-se a partir dos passos de José Baessa de Pina, que seguimos durante o passeio “Noz Stória”.

Nesse percurso, construído a partir de memórias individuais e colectivas, Sinho, como o conhecemos, reconstitui caminhos de comunidades desfeitas. Vividas na sua pluralidade – de nacionalidades africanas e de etnias –, e recordadas pela sua força colectiva, bem visível no álbum de fotografias expandido à medida que a rota avança.

“Aqui houve felicidade”, aponta o outrora morador do bairro das Fontainhas, enquanto nos guia por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”.

Neles cabem festas que celebram rituais e identidades que o colonialismo criminalizou e a polícia continua a reprimir, e também o acolhimento de todas as pessoas, a determinada altura da história, povoado de filhos de famílias brancas e privilegiadas, expulsos de casa entre percursos de toxicodependência.

Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência. 

Exclusão

“Eu fui segregado dentro do meu país. Não é nada inocente”, sublinha Sinho, que encontra nas políticas públicas várias fontes de exclusão.

Por exemplo, nota o anfitrião do “Noz Stória”, o desempenho dos alunos é fortemente influenciado pela escola em que andam, numa demarcação territorial que continua a condenar crianças ao insucesso e abandono precoce dos estudos.

O impacto dessas fronteiras está amplamente reconhecido, por isso, para garantir aos filhos uma educação melhor, há trabalhadoras domésticas que dão a morada dos patrões, explica Sinho, lembrando que a prática – longe de revelar o eventual altruísmo das chefias – acentua relações de dependência. Uma espécie de inversão da dívida histórica, instalada na Escravatura, reforçada no colonialismo, com a violência dos trabalhos forçados dos contratados de São Tomé e Príncipe, e ainda hoje evidente na exploração extractivista do capitalismo, especialmente dura sobre os corpos negros.

“Se essa facilidade [da morada] existe para essas mães trabalhadoras é porque precisam delas com estabilidade”, atira o guia da nossa história, enquanto aproveita para destacar o papel provedor das mulheres nas nossas comunidades.

Foi, por exemplo, graças à sua mãe, e em particular ao amor que sempre recebeu dela, que Sinho não se deixou correr pela raiva e revolta que acompanharam múltiplos episódios de violência racista – tantas vezes indutores de trauma.

“Às vezes, o que safava os nossos pais da intervenção bruta da polícia militar, quando eram parados para entrar no bairro, era o cartão da obra”, assinala, sem esquecer um velho temor. “E se batem na minha mãe?”.

Essas e outras memórias marcam o ritmo do passeio, iniciado nas Portas de Benfica e encerrado diante das marcas do que outrora foi o bairro Estrela D’ África.

Para trás ficaram vestígios das Fontainhas e do Bairro 6 de Maio, atravessados por recordações de rupturas tão abruptas quanto terminais.

Pertença

“Ali, a Dona Rosa e o Tio João tinham porcos, leitões, galinhas, figueiras, e estavam habituados a ir e vir do poço. Depois do realojamento, bastou 1 ano e 30 dias para os dois desaparecerem”.

A lembrança de morte é partilhada por Delson Alexandre, que, tal como Sinho, cresceu entre bairros de auto-construção, entretanto engolidos pelo asfalto.

“Costumo dizer que São Tomé e Príncipe é o meu berço, e esta é a minha casa. O lugar onde quero estar, e onde me sinto bem”, diz Delson ao Afrolink, apressando-se nas distinções. “Quando falo de casa, não estou a falar de Portugal ou de Lisboa, mas sim da Linha de Sintra, da Damaia, do Bairro do Zambujal, da Cova da Moura, da minha Reboleira, da Amadora…a minha Porcalhota”.

O sentimento de pertença e o sentido de comunidade enraizados no passado perduram até hoje, garante Delson, que conserva as antigas relações de vizinhança como quem preserva as mais valiosas ligações familiares.

Muitos, porém, como a Dona Rosa e o Tio João, acabaram por sucumbir à tristeza de uma mudança indesejada.

“Os laços de solidariedade foram quebrados”, comenta Sinho, que responsabiliza o Estado por uma política de abandono.

“Tinha de haver outra solução, outro tipo de realojamento”, defende, recordando as dificuldades de ajuste que sentiu quando, aos 22 anos, se viu obrigado a trocar a morada de toda a vida pelo Casal da Boba.

“Mesmo depois de termos a chave, preferia dormir entre os vários barulhos estranhos das Fontainhas”.

Denúncia

Desperto para cada barreira que foi encontrando, e continua a encontrar, o criador do “Noz Stória”, nascido em 1976 na Maternidade Dona Estefânia, em Lisboa, traça as suas próprias fronteiras: “Não somos pobres, somos empobrecidos”.

Filho de descendentes de cabo-verdianos emigrantes, Sinho defende igualmente que é importante “saber de onde viemos, com os pés no chão”, mas ao mesmo, “sempre almejar mais”. O líder associativo acrescenta ainda que não nos podemos “esquecer da denúncia para a elaboração de políticas de reparação”, dispositivos “de que precisamos urgentemente, para colmatar 50 anos de segregação”.

Desde logo, assinala o nosso guia, importa questionar: “Como dizem que a entrada dos imigrantes é descontrolada, se sempre foi bem controlada?”. Afinal, vemo-la abrir e fechar, à medida dos caprichos do sistema, que põe e dispõe de pessoas como quem manuseia utensílios de produção.

Aliás, as memórias recuam até episódios recorrentes de abuso da polícia municipal que, aproveitando-se de quem, nas ruas, encontrava o seu ganha-pão com a venda de pescado, resolvia ali as necessidades domésticas de peixe.

Violências somadas e multiplicadas, meio século vivido desde a Revolução dos Cravos, Sinho questiona que liberdade existe nas periferias negras, asfixiadas por programas de realojamento que são também de policiamento?

“O sistema sabota a nossa cultura”, considera, dando como exemplo os horários de celebração dos Santos Populares até às 2h, em contraponto com as restrições das festividades dentro da comunidade, silenciadas muito antes da meia-noite.

“A música é uma via de pertença que tem sido travada”, assinala o guia do “Noz Stória”, partilhando outro aspecto da sua identidade precocemente reprimido.

“Eu sinto em crioulo, respiro, penso…e até isso é bloqueado”, adianta, de volta aos bancos de escola, carregados de práticas coloniais.

É também para a Educação aí que se dirige o olhar crítico de Aleksandra Augustynowicz, uma das pessoas no encalço das direcções de Sinho. Há oito anos em Portugal, esta polaca de 29 anos, defende a “importância de consciencializar as pessoas para os factos históricos” que o ensino continua a mascarar.  “O que podemos esperar se apenas aprendemos a partir de livros escritos pelos colonizadores?”.

A nossa História não é essa, perdida num labirinto de ficções romantizadas. “Noz Stória” retira-nos daí, e dá-nos caminho para andar. Aproveitemos!

Paula Cardoso

Jornalista, Fundadora da rede Afrolink e Autora da série de livros infantis Força Africana.

https://paulacardoso.pt/
Próximo
Próximo

Racismo e fragilidade branca: duas faces do mesmo Observatório