Racismo e fragilidade branca: duas faces do mesmo Observatório

A contestação à pós-graduação em racismo e xenofobia que o Afrolink apresentou na semana passada, depressa evidenciou como a máquina que silencia e invisibiliza pessoas negras segue bem oleada, produzindo as mais engenhosas narrativas de combate ao anti-racismo. Ainda assim – e porque sigo militante do diálogo – dirigi, na última quinta-feira, algumas questões ao Observatório. Todas permanecem sem resposta, o que demonstra, uma vez mais, como é tão difícil para as pessoas brancas falar sobre racismo. Pelo contrário, é muito mais fácil remover uma página de um site – no caso, a que anunciava a malfadada pós-graduação –, e fingir que a história não aconteceu. Nada que uma longa experiência em apagamentos não facilite! Se hoje sabemos que a pós-gradução foi suspensa, isso deve-se – não me iludo – ao facto de a agência Lusa ter feito notícia da nossa contestação. De outro modo, continuaríamos a especular.

Corpo docente da recém-suspensa Pós-graduação em Racismo e Xenofobia

“Precisas que te faça um boneco?”. Para quem nunca se cruzou com esta frase, ela acompanha estados de desespero argumentativo, em que todas as palavras do nosso vocabulário parecem insuficientes para transmitir uma ideia. Instala-se, então, um profundo sentimento de frustração, demasiadas vezes encerrado na impossibilidade de se avançar no diálogo. Surge, assim, o assalto final, talvez enformado pela convicção de que uma imagem vale mais do que mil palavras: “Precisas que te faça um boneco?”.

Após várias interpelações dirigidas ao Observatório do Racismo e da Xenofobia, em artigos de opinião, cartas abertas, e presencialmente (conferir a partir de 1h17m), a que se juntaram tantas outras referências contestando a ausência de pessoas não-brancas na sua estrutura, entendi que talvez fosse necessário fazer um boneco para obstar o lançamento de uma pós-graduação em racismo e xenofobia integralmente pensada e implementada por pessoas brancas.

Desse pensamento nasceu o mosaico de imagens que expõe – para quem consegue ver cores – o padrão nacional de favorecimentos raciais. Afinal, estamos cansados de saber que não é por falta de académicos negros, com ampla investigação e reflexão sobre racismo, que esse mosaico se cobre de branco.

Pareceu-me igualmente fundamental expressar a minha opinião, independentemente das justificações que pudessem vir a ser apresentadas para defender o indefensável. O motivo é simples: a máquina que silencia e invisibiliza pessoas negras segue bem oleada, produzindo as mais engenhosas narrativas de combate ao anti-racismo. Ainda assim – e porque sigo militante do diálogo – dirigi, na última quinta-feira, algumas questões ao Observatório. Todas permanecem sem resposta, o que demonstra, uma vez mais, como é tão difícil para as pessoas brancas falar sobre racismo.

Pelo contrário, é muito mais fácil remover uma página de um site – no caso, a que anunciava a malfadada pós-graduação –, e fingir que nunca aconteceu. Nada que uma longa experiência em apagamentos não facilite!

Se hoje sabemos que a pós-gradução foi suspensa, isso deve-se – não me iludo – ao facto de a agência Lusa ter feito notícia da nossa contestação. De outro modo, continuaríamos a especular.

Foi a partir de declarações à agência Lusa da directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – onde está sediado o Observatório –, que ficámos a saber que essa formação nasceu sem “qualquer intenção de minimizar temas que são importantes e relevantes para qualquer sociedade, nem discriminar pessoas".

O problema, assumiu a responsável, resultou de “diversas alterações” que acontecerem “entre o momento da aprovação [do programa formativo] e o da sua operacionalização”, resultando nessa “falha interna”.

Em concreto, apontou Margarida Lima Rego, a “indisponibilidade de alguns formadores para leccionarem a pós-graduação” obrigou a “ajustamentos no programa, que acabou por não reflectir os princípios da diversidade e inclusão" que tinham sido aprovados, “designadamente quanto à origem étnico-racial dos formadores".

A responsável garantiu ainda que “a Faculdade de Direito já está a tomar medidas para que tal não volte a suceder".

A partir de tudo isto, regresso a um texto que publiquei em 2022, sob o título “De boas intenções está a luta anti-racista cheia. Venham as reparações!”.

Começava assim: “Somos todos humanos e, como tal, todos erramos. Se tivermos a humildade de o reconhecer, pedimos desculpa. Se estivermos comprometidos em melhorar, fazemos mais do que isso:  disponibilizamo-nos a aprender, para que não voltemos a repetir o mesmo erro. A reparação começa aí: nessa combinação de reconhecimento com responsabilização. Pelo contrário, pedir desculpas e continuar a fazer o mesmo – prática que se repete perante agressões racistas – não é mais do que adaptar às convenções do presente, mecanismos históricos de silenciamento”.  

No mesmo artigo, partilhei uma sugestão de leitura, especialmente útil para quem tem dificuldade em escutar: o livro “White Fragility: Why It’s So Hard for White People to Talk About Racism,”, da socióloga, docente e autora Robin DiAngelo.

Com edição portuguesa da Edita_X, traduzida por Rita Canas Mendes e revista por Pedro Schacht Pereira, a obra, antecipa-se na sinopse, “lança luz sobre o fenómeno da fragilidade branca, e permite-nos compreender o racismo como uma prática que não se restringe a pessoas de má índole [lá se vai o argumento das intenções], mas a todos os que inconsciente e inadvertidamente o propagam”.

A perspectiva, que aqui traduz a reflexão de uma autora branca, coloca em evidência “um padrão de defesa face às sugestões de racismo através de reacções pretensamente inócuas como negações absurdas do tipo «Não vejo cores»”. Ao mesmo tempo, explica Robin DiAngelo, “a fragilidade branca caracteriza-se por emoções como a raiva, o medo, e a culpa, e por comportamentos que incluem a argumentação e o silêncio, comportamentos estes que impedem qualquer diálogo inter-racial de relevo”.

Percebe-se, assim que, “mais do que um ensaio, esta obra é um manifesto para a tomada de consciência racial individual e colectiva da comunidade branca, que analisa a fundo de que modo a fragilidade branca se desenvolve, como protege a desigualdade racial e o que podemos fazer para nos envolvermos de forma mais construtiva. Nomear, definir e analisar a fragilidade branca aumenta a compreensão do racismo sistémico, e perturba a forma como este é defendido, colocando em evidência o racismo que não vemos”.

Ou não queremos ver.

Paula Cardoso

Jornalista, Fundadora da rede Afrolink e Autora da série de livros infantis Força Africana.

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