Abrir caminho para cumprir Abril, com Marlete e José Carlos na nossa História
Amplamente reproduzida em outdoors gigantes, cartazes de várias dimensões, sites e redes sociais, a imagem aqui em destaque tornou-se, no ano passado, uma bandeira de exaltação do 25 de Abril. “Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”, legenda Victor Correia que, numa habitual viagem pelo IC19, reconheceu nessa fotografia a sua própria história. O Afrolink foi ouvi-la, e encontrou Marlete Henriques e José Carlos Correia a abrir caminho para a nossa Democracia e Liberdade. Vamos com, e como eles. Colectivamente.
Marlete Henriques com o irmão Victor Correia, junto da imagem que se tornou bandeira da Revolução
Seguia de carro pelo IC19 quando o impacto se deu. “Eh, pá! Aquelas pessoas parecem os meus irmãos”, lembra-se de pensar, ao avistar um enorme outdoor do lado direito da estrada.
As dúvidas acompanharam a viagem de Victor Correia em direcção a Lisboa, até se desfazerem por completo no regresso.
“Passei pelo mesmo sítio, voltei a olhar e disse: só pode ser. Mas foi mais à frente, a caminho do supermercado, que tirei a prova dos nove, ao encontrar a mesma imagem, embora mais pequena, presa a um poste”.
Já estacionado, e diante do cartaz, Victor confirmou a identidade de um dos dois casais da fotografia: Marlete Duarte Lopes Correia Henriques e José Carlos Duarte Lopes Correia. Nada mais nada menos do que os seus irmãos.
“Foi uma grande surpresa”, conta ao Afrolink, enquanto remexe memórias de resistência. “Eu tenho a foto original, e sei que quem a tirou fez várias”, acrescenta, assumindo-se como o guardião natural do espólio da família.
“Acabei por ficar com os álbuns porque fui o único a permanecer em Portugal”, explica, de volta às movimentações que marcaram o pré e pós 25 de Abril de 1974.
“Digamos que todos nós, na nossa família, éramos activos na política, em defesa das Independências. Mas a Marlete e o José Carlos eram ainda mais, e especialmente ela. Os dois estavam sempre nas manifestações”.
Desde afixar cartazes por todo o lado, para divulgar protestos, e apelar à mobilização, até ‘acampar’ noite e dia à porta da prisão de Caxias para exigir a libertação de presos políticos, o envolvimento dos irmãos Correia construía-se também a partir de sólidas raízes familiares.
“O meu pai tinha um rádio, e ouvíamos a BBC para ficarmos a par do que estava a acontecer. Lembro-me que quando assassinaram Amílcar Cabral [20 de Janeiro de 1973], disseram que o chefe dos terroristas tinha sido morto. Foi assim que anunciaram”.
Já depois da Revolução, e reconhecidas as Independências dos países ocupados por Portugal, a família Correia – que era originária de Cabo Verde, e tinha chegado ao país em 1969 –, começou a fazer o caminho de regresso.
Símbolo da Revolução de Abril, conquista de africanos e portugueses
José Carlos acabou por se fixar em Cabo Verde, depois de uma temporada por Angola, e Marlete seguiu para a Guiné-Bissau, embora tenha, mais tarde, voltado para Portugal, onde vive actualmente.
Mas é pelas memórias do irmão Victor que prefere que a sua fotografia seja legendada.
“Essa imagem passou a ser um símbolo da Revolução de 25 de Abril de 1974, em que a Marlete e o José Carlos aparecem como representantes das ex-colónias, do fim da guerra colonial”, aponta o empresário, que, entre avanços e recuos cronológicos, recupera outra circunstância do passado.
“Morávamos em plena cidade de Lisboa, ali na Estefânia, mais propriamente na Rua General Farinha Beirão, em que as traseiras dão para a Polícia Judiciária”, recorda, adiantando que, pela proximidade com os calabouços, antes de 1974 era comum os prisioneiros tentarem fugir a partir das suas casas. “Depois os polícias cercavam aquilo tudo e resolvia-se”.
Victor sublinha ainda que, mesmo após o derrube do fascismo e conquista da Democracia, foi fundamental continuar a mobilizar pessoas em defesa do pleno reconhecimento dos países africanos que foram ocupados por Portugal.
“Havia manifestações em Lisboa, organizadas por nós, com milhares de pessoas. E nesses milhares de pessoas estamos a falar de muitos africanos, porque nessa altura tínhamos os movimentos de libertação de Angola, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde, Guiné….havia o PAIGC, MLSTP, MPLA, Frelimo, e todos se batiam pela Independência. Estávamos unidos, a bater o pé nesse sentido”.
Fica assim evidente que o contributo africano para o 25 de Abril – do qual se tem falado por causa da resistência que Portugal encontrou nos territórios colonizados –, se fez também de forma expressiva a partir de Lisboa, onde as Casas representantes dos diferentes países concertaram esforços de luta.
“Uma dessas Casas ainda existe no mesmo sítio, ali na Rua Duque de Palmela, mas hoje tem o nome de Associação Cabo-Verdiana”, nota Victor, revelando que, para além de fóruns de estrategização, esses espaços eram igualmente importantes vias de confraternização.
Insistindo na ideia de que importa mostrar que o 25 de Abril foi uma conquista de todos, portugueses e africanos, o irmão de Marlete e José Carlos destaca o quanto a fotografia na génese desta conversa é mais uma prova disso mesmo.
“Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”.
Reparemos em todas elas.
A luta por direitos continua a mobilizar Marlete