HISTÓRIAS
“Um Passado Presente” – para imaginar um futuro mais consciente e anti-racista
Há uma parede estrutural – feita de efabulações, omissões, manipulações e distorções históricas –, que mantém o edifício colonial português de pé. Mas hoje sabemos o suficiente do caderno de encargos da obra imperial para reconhecermos que assenta sobre fracturas invididuais, familiares e colectivas, que tornam visível a necessidade de um projecto de reparação. Apesar disso, Portugal-o construtor prefere cobrir-se de tapumes de silêncio, manter a fachada de ‘bom colonizador’, e ignorar o lastro de destruição que, 50 anos após a queda do estado novo, continua a infiltrar vidas. Com que resultados? “Um Passado Presente” abre caminho para encontramos respostas.
Há uma parede estrutural – feita de efabulações, omissões, manipulações e distorções históricas –, que mantém o edifício colonial português de pé. Mas hoje sabemos o suficiente do caderno de encargos da obra imperial para reconhecermos que assenta sobre fracturas invididuais, familiares e colectivas, que tornam visível a necessidade de um projecto de reparação. Apesar disso, “Portugal-o construtor” prefere cobrir-se de tapumes de silêncio, manter a fachada de ‘bom colonizador’, e ignorar o lastro de destruição que, 50 anos após a queda do estado novo, continua a infiltrar vidas. Com que resultados? “Um Passado Presente” abre caminho para encontramos respostas. Carlota Matos, artista e autora da proposta, explica de que forma: procurando “criar um espaço de diálogo”, em que se reflecte “sobre o impacto do colonialismo e do processo de descolonização, tanto no passado como nos dias de hoje”. Acompanhada da mãe, Fátima Matos, que chegou a Portugal como “retornada”, em 1976; e do artista MoYah, que deixou Moçambique durante a guerra civil, terminada em 1992; Carlota sublinha o carácter agregador deste projecto. “Num contexto em que ainda há muito branqueamento da história, este trabalho oferece uma oportunidade para confrontar essas realidades, trazer novas perspectivas e imaginar um futuro mais consciente e activamente anti-racista”. O Afrolink conta-lhe tudo.
Texto escrito a partir da recolha de depoimentos de Janeth Tavares, que assina as fotografias
Registo da apresentação informal ao público, no âmbito do Programa de Residências d’O Rumo do Fumo
Fechado na gaveta, encurralado entre “o transtorno e o desconforto” que sempre lhe causou, o passado fez-se finalmente presente na história de Carlota Matos.
Herdeira da ‘marca’ dos “retornados”, a artista portuense cresceu a ouvir a mãe falar sobre a infância em Moçambique, e sobre “o choque cultural que sentiu na vinda para Portugal, aos 12 anos”.
Mais do que a “nostalgia”, Carlota sempre identificou os silêncios que se colavam a essas memórias. “Eu sabia que ainda existia muito por contar”. Mas, como ultrapassar “o transtorno e o desconforto” que o tema sempre lhe causou, e procurar saber mais?
“Sabia também que, ao criar um projecto sobre isto, queria fazê-lo com um artista moçambicano e incluir a sua perspetiva”.
O momento surgiu há cerca de um ano, no Reino Unido, destino de migração e expansão profissional. “Conheci o MoYah em Bristol. Depois de uma conversa inicial, apercebemo-nos de que temos muitos pontos em comum no nosso trabalho e na relação com a arte: ambos trabalhamos bastante em projectos sociais, e temos interesse em abordar questões de família, identidade e descolonização”.
Dessa aproximação de experiências, olhares e leituras históricas, nasceu a vontade de construir uma colaboração, para já concretizada no projecto “Um Passado Presente”.
“Termos sido seleccionados para o Programa de Residências d’O Rumo do Fumo deu-nos a oportunidade de iniciarmos este processo juntos”, nota Carlota, que abriu a criação a um terceiro elemento: a própria mãe.
“Projecto de performance… o que é isso, como se faz, filhota?”, era esta a minha dúvida inicial”, introduz Fátima Matos, destacando o repertório de aprendizagens.
“A história, com entrevistas de outros retornados, e ainda as pesquisas, os livros com interesse nestes temas, incluindo romances de autores moçambicanos; bibliografia em documentários, filmes, reportagens, textos, arquivos históricos; as videochamadas com a minha filha, foi tudo muito importante para o desenrolar do processo e continuidade desejados”.
Nascida em Moçambique, Fátima recorda como a mudança para Portugal, aos 13 anos, foi marcada por “dificuldades na integração”, revisitadas agora n’ “Um Passado Presente”.
Além das próprias lembranças, que passam pela “bondade, generosidade e educação” transmitidas pela mãe, a hoje reformada de uma carreira na banca, destaca a importância de ter conhecido a história do artista moçambicano MoYah, que apresenta como “protagonista e cúmplice” de uma “grande aventura”.
Filho de um Moçambique já liberto do jugo colonial português, demarcador de fronteiras na vida de Fátima Matos, MoYah reside actualmente em Inglaterra, depois de na juventude se ter fixado em Lisboa. A mudança chegou com o estatuto de refugiado político, vivência que o criativo procura visibilizar a partir da arte, que desenvolve como “uma óptima ferramenta para aproximar as pessoas e nutrir a empatia”, a seu ver “uma das bases para uma sociedade frutífera.”
Histórias por contar, aprendizagens por fazer
Inteiramente dedicado à carreira artística, o moçambicano encontrou na música, e em particular no Rap, uma via “poderosa de autoconhecimento e expressão social”, através da qual alerta para várias injustiças sociais.
“Os temas da migração, da identidade, do lar e da diáspora africana são realmente interessantes para mim, pois fui forçado a fugir do meu país natal, Moçambique, ainda criança, durante a guerra civil”, conta MoYah, defendendo que precisamos saber mais sobre esse capítulo da nossa História.
“Não creio que exista arte contemporânea suficiente que explore e reflita a experiência dos moçambicanos que migraram para Portugal naquela época e as complexidades que rodearam a sua migração”.
Disposto a contribuir para um maior conhecimento, MoYah partilha que, “como artista full-timer” – agora também voltado para a prática teatral – encontra constantemente novas maneiras de se conectar com as pessoas “e fornecer diferentes perspectivas para experiências humanas que nem sempre são representadas, especialmente a experiência vivida por refugiados”.
Assumido apologista da “representatividade artística de pessoas do Sul Global”, o moçambicano considera que “Um Passado Presente” oferece “uma boa oportunidade para retratar e transmitir histórias que não são frequentemente ouvidas nos espaços convencionais”.
Aliás, muitas dessas vivências nem sequer foram contadas, porque ainda precisam de ser reconhecidas. E também aí, a arte pode facilitar despertares de consciência, como aconteceu com Fátima, durante os ensaios no estúdio.
“Fez-me enfrentar as dificuldades, praticar a auto-reflexão, aceitar as emoções difíceis, descobrir e partilhar curiosidades sobre mim mesma, fortalecer momentos sensíveis com sinais de humanidade”.
Já a filha Carlota sublinha o efeito desbloqueador do que estava por contar. “Comecei também a ter com a minha mãe as conversas que nunca tivemos, usando o livro ‘Caderno de Memórias Coloniais’ de Isabela Figueiredo como ponto de partida”.
Além do impacto particular do projecto, a autora de “Um Presente Passado” reflecte sobre o seu efeito estrutural.
“Dialoguei com o MoYah e outras pessoas moçambicanas, e passei muito tempo a refletir sobre o meu lugar de fala e de privilégio, o porquê deste projeto e o meu papel nele. Percebi também que ao procurar entender a história da minha mãe, da minha família e do meu país, estou a procurar entender-me a mim mesma”.
Sustentar o futuro com honestidade
O processo de criação artística teve como foco de partida a pesquisa, na primeira de quatro semanas de residência centrada no contexto político que se vivia em Moçambique nos anos 70 e 80, atravessando a luta e a conquista da Independência, as movimentações dos “Retornados” e a Guerra Civil, encerrada em 1992, após 16 anos de confrontos.
“Pretendemos com Um Passado Presente investigar como tornar possível o diálogo entre diferentes gerações, aumentar a compreensão e escuta entre pessoas que cresceram em mundos tão diferentes”.
A proposta conta já com uma apresentação informal, realizada no final do Verão passado, em Lisboa, no âmbito da residência artística d´O Rumo do Fumo, que beneficiou de um workshop de escrita criativa de Sukina Noor, e dos registos fotográficos de Janeth Tavares.
“Foi basicamente um ensaio aberto com público. Foi muito bom, abordámos vários temas – alguns difíceis –, recebemos a opinião e a partilha de todos os presentes, e tudo foi evoluindo com naturalidade”, recorda Fátima, surpresa com a “recepção tão entusiasta do público”.
O bom acolhimento da plateia, onde outros herdeiros de “retornados” também quebraram silêncios pesados, é igualmente destacado por Carlota.
“A oportunidade de abrir as portas do nosso estúdio foi fundamental. As intervenções positivas dos presentes reforçaram para nós a importância deste projecto, e o feedback que recebemos vai enriquecer o nosso trabalho e ajudar-nos a pensar e planear o futuro”.
O caminho deverá incluir novos voos, antecipa a autora d’ “Um Passado Presente”. “Estamos no início desta viagem, à procura de mais residências artísticas que nos permitam continuar a criar e a explorar o cariz multidisciplinar do projecto”.
Já com algumas das próximas paragens identificadas, Carlota Matos mantém o propósito de tirar da gaveta o tema dos “retornados”.
“A presença de famílias portuguesas brancas em países colonizados e todo o contexto político que a engloba foram, para e por muitos, enterrados”.
Mas a caminho do 50.º aniversário das Independências de quatro dos cinco países ocupados por Portugal (excepção feita para a Guiné-Bissau), a artista quer desenterrar o que precisamos de ver e reconhecer.
“Um Passado Presente procura criar um espaço de diálogo, reflectindo sobre o impacto do colonialismo e do processo de descolonização, tanto no passado como nos dias de hoje. É um projecto sobre encontros e desencontros entre diferentes perspectivas e gerações, que abre um espaço onde estas complexidades possam ser discutidas de forma honesta”.
A proposta torna-se ainda mais relevante, “num contexto em que ainda há muito branqueamento da História”, conforme reconhece a sua autora.
“Este trabalho oferece uma oportunidade para confrontar essas realidades, trazer novas perspectivas e imaginar um futuro mais consciente e activamente anti-racista”. Livre da podridão do edifício colonial.
Carlota Matos, com o livro que ajudou a “desbloquear” conversas com a mãe, Fátima Matos
Residência CPLP mais perto de avançar, com africanos a ficar para trás
A Assembleia da República (AR) aprovou, no passado dia 20, alterações à Lei de Estrangeiros, abrindo caminho para que o título de residência da CPLP possa finalmente entrar em vigor, respeitando as normas europeias. As mudanças ainda terão de passar pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da AR, e obter a ratificação presidencial, processo que deverá ficar concluído até ao final do primeiro trimestre de 2025. Até lá, a antropóloga, artista, pesquisadora e activista de Direitos Humanos, Rita Cássia de Silva, alerta para o carácter discriminatório do novo instrumento, numa carta que dirige “às pessoas conterrâneas brasileiras em Portugal”, e que o Afrolink publica na íntegra. Nela, a investigadora defende que “não deve haver pessoas migrantes de 1.ª, 2.ª e 3.ª categorias no âmbito da CPLP”, lamentando que os países africanos tenham ficado para trás.
A Assembleia da República (AR) aprovou, no passado dia 20, alterações à Lei de Estrangeiros, abrindo caminho para que o título de residência da CPLP possa finalmente entrar em vigor, respeitando as normas europeias. As mudanças ainda terão de passar pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da AR, e obter a ratificação presidencial, processo que deverá ficar concluído até ao final do primeiro trimestre de 2025. Até lá, a antropóloga, artista, pesquisadora e activista de Direitos Humanos, Rita Cássia Silva, alerta para o carácter discriminatório do novo instrumento, numa carta que dirige “às pessoas conterrâneas brasileiras em Portugal”, e que o Afrolink publica na íntegra. Nela, a investigadora defende que “não deve haver pessoas migrantes de 1.ª, 2.ª e 3.ª categorias no âmbito da CPLP”, lamentando que os países africanos tenham ficado para trás.
por Rita Cássia Silva
Carta às pessoas conterrâneas brasileiras em Portugal: não deve haver pessoas migrantes de 1.ª, 2.ª e 3.ª categorias no âmbito da CPLP
Na Revista Portugal Colonial, de propaganda da expansão colonial em África, publicada em Março de 1931 e que era distribuída para “Agentes em todas as cidades Ultramarinas, Madeira, Açôres, Brasil, etc.”, lê-se na página 5, as vis considerações de um certo Sr. colonialista Dr. Agostinho de Campos:
“Porque é que se coloniza? Para que se teem colónias? Que sentido se contém hoje em dia na expressão “Império Colonial”? Nos séculos XV e XVI Portugueses e Espanhóis navegaram, descobriram, conquistaram mundos novos, e começaram os trabalhos da moderna colonização. A crença e o entusiasmo religioso, a ambição de glória, o espírito cavalheiresco, a ânsia de lucro, o orgulho da nação ou de raça, a energia física e moral exuberante, o génio aventureiro, o instinto das necessidades políticas, as fatalidades geográficas, a lei do menor esforço (verdadeiro ou ilusório), a velocidade adquirida em séculos de guerras contra vizinhos, pobreza e imaginação que via luzir ao longe o oiro apetecido – de todos estes impulsos sociais e naturais, alguns contraditórios, se formou uma corrente de forças, superior à vontade e ao raciocínio humano, que nos fêz – a nós e a outros depois de nós – dilatar a Fé e o Império. Na sua essência a iniciativa e persistência colonizadora resume-se em três palavras: exuberar, possuir, dominar. Dar emprego a energias transbordantes. Ter o que julgamos faltar-nos. E ser senhores –; quanta vez para não sermos escravos!”
Tendo sido um homem fascista, pertencente ao movimento colonialista português tardio, o seu desejo de que os homens portugueses não fossem “escravos” toldou-lhe o espírito. De modo que, não havia dentro de si, uma consciencialização sobre a barbárie. Estima-se que mais de 12 milhões de pessoas africanas foram arrancadas dos territórios africanos e torturadas vivas psicologicamente, fisicamente e patrimonialmente, entre os séculos XVI - XIX, tendo sido Portugal o precursor do tráfico transatlântico, responsável direto pelo tráfico de mais de 5,8 milhões de pessoas africanas.
Tara Roberts, afro-americana, mergulhadora e contadora de histórias, nos relata as suas vivências e experiências em viagens por diferentes territórios em busca de uma compreensão histórica e resignificação dos traumas provocados pelo tráfico transatlântico de pessoas africanas escravizadas. Na reportagem “Uma Mergulhadora procura as histórias daqueles que se perderam nos navios negreiros e encontra o lado humano de uma época trágica”, que foi publicada na Revista National Geographic Portugal e atualizada em 24 de Outubro de 2022, Roberts partilha connosco:
“Também ouço histórias do naufrágio do São José Paquete de África. O navio português viajou de Lisboa para a ilha de Moçambique em 1794. Os esclavagistas colocaram mais de quinhentas pessoas, muitas das quais pertencentes à etnia macua, no porão de carga do navio. Dirigindo-se ao Brasil, o navio teve um encontro fatal com o destino às primeiras horas da manhã de 27 de Dezembro, nas rochas ao largo da Cidade do Cabo, na África do Sul. Duzentos e doze dos prisioneiros africanos a bordo morreram e os sobreviventes foram vendidos como escravos.”
Histórias sobre o tráfico transatlântico de pessoas africanas que foram escravizadas pelos europeus e sobre o colonialismo tardio português, não têm vindo a ser rigorosamente explanadas nas escolas no Brasil e muito menos em Portugal, contribuindo assim para que atualmente estejamos a lidar com ataques à frágil vigência democrática onde as pessoas africanas e os seus descendentes estão continuamente a ser invisibilizadas e prejudicadas individualmente e coletivamente.
Pois bem. O Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP, celebrado a 9 de Dezembro de 2021, em comemoração aos 25 anos da CPLP, um diploma que foi votado por todos os partidos políticos do parlamento português, com exceção do partido de extrema-direita, em Novembro de 2021, teve nos países africanos como Cabo Verde e Angola, papéis determinantes e do meu ponto de vista, contemplou um princípio de responsabilização histórica, quiçá reparação colonial. Segundo os dados do relatório de 2023 da AIMA - Agência para a Integração, Migrações e Asilo, 40.266 pessoas oriundas dos territórios africanos que integram a CPLP, 108.232 pessoas oriundas do Brasil e 676 pessoas oriundas de Timor-Leste tiveram concessões de visto de autorização de residência dentro do Acordo de Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP. O acordo esteve estremecido durante o ano passado, devido às demandas europeias relacionadas com o espaço Schengen. Qual não foi a minha surpresa ontem, quando fiquei a compreender que o parlamento português, nomeadamente, os partidos políticos de direita PSD e CDS-PP votaram a favor da concessão de autorizações de residência mediante o acordo de mobilidade CPLP, cujo texto possui discriminações entre países que integram a CPLP! Somente o PCP e o PAN votaram contra! Os países africanos ficaram para trás. Pessoas do Brasil e de Timor-Leste vão poder entrar em Portugal sem visto e pedirão o visto em território português. Todas as pessoas dos 6 países que estão localizados no continente africano, Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Guiné Equatorial somente poderão entrar em Portugal com visto! Todas as pessoas devem ser respeitadas no seio da CPLP, independente da origem étnico-racial, da nacionalidade, do género, da classe social.
Parece-me ser fundamental solicitar-vos uma observação cuidadosa ao quotidiano português e ao mundo em que estamos a viver e que possam se solidarizar com os povos africanos e seus descendentes. A presença africana em Portugal é secular. Penso que seja um dever das pessoas brasileiras conscientes sobre as origens históricas da formação do povo brasileiro, contribuir para que não haja divisão entre povos na CPLP e sim dignificação histórica, verdadeiro entrelaçamento cultural, reparação colonial. O que significa evidentemente que devemos caminhar em conjunto para a salvaguarda da vigência democrática em Portugal. A corroboração com narrativas de que existem pessoas migrantes de 1.ª, 2.ª e 3.ª categorias no âmbito da CPLP, além de ser um caminho muito perigoso, potencializando o avanço da extrema-direita portuguesa, também potencializa a violação do Princípio da Igualdade, artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa: 1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. Espero sinceramente que este diploma embora tenha já sido votado na AR - Assembleia da República Portuguesa, que possa ser devidamente retificado, antes de ser legitimado pelo Presidente de Portugal, Professor Marcelo Rebelo de Sousa. Sem África, não haveria Brasil e muito menos, o Portugal que conhecemos hoje.
Moçambique: Luís Honwana alerta para o perigo imperial que pode dividir o país
O livro “Nós Matámos o Cão-Tinhoso” inscreveu a escrita de Luís Bernardo Honwana nos anais das literaturas africanas. Leitura obrigatória nas escolas de Moçambique e, até 2026, também no Brasil – para os estudantes que concorram à prestigiada USP - Universidade de São Paulo – a obra popularizou-se em todo o mundo como denúncia das atrocidades do regime colonial português. Publicada em vários países e idiomas, “Nós Matámos o Cão-Tinhoso” já inspirou ensaios, teses académicas, e debates em conferências, alcançando um amplo reconhecimento, do qual ao autor se foi afastando.
O livro “Nós Matámos o Cão-Tinhoso” inscreveu a escrita de Luís Bernardo Honwana nos anais das literaturas africanas. Leitura obrigatória nas escolas de Moçambique e, até 2026, também no Brasil – para os estudantes que concorram à prestigiada USP - Universidade de São Paulo – a obra popularizou-se em todo o mundo como denúncia das atrocidades do regime colonial português. Publicada em vários países e idiomas, “Nós Matámos o Cão-Tinhoso” já inspirou ensaios, teses académicas, e debates em conferências, alcançando um amplo reconhecimento, do qual o autor se foi afastando. “O meu percurso não está pendurado no livro, talvez até tenha tido uma reacção de quase de me distanciar dele”, aponta Honwana ao Afrolink, desfiando “outras machambas” que o têm “entretido”, longe do campo literário. A ligação à Organização das Nações Unidas, por exemplo, permitiu-lhe ver como os interesses imperiais dividiram o Sudão, e continuam a orquestrar instabilidades para extrair as riquezas de África. Por isso, acompanha com especial apreensão as movimentações em Cabo Delgado, e as fracturas sociais expostas pelos protestos pós-eleitorais”. No horizonte, traçado numa conversa em Lisboa, no final de Outubro, Honwana destaca o dever de Moçambique assegurar “que os jovens vão ter o seu país, que vão ter a sua pátria”. Esta garantia, sugere, pode estar na criação de um Governo de unidade nacional: “Vamos tentar lançar esta fórmula do Mandela”.
Edição mais recente do clássico da literatura moçambicana publicada no Brasil, onde, até 2026, é leitura obrigatória nas provas de acesso à Universidade de São Paulo
Uma nota intriga a leitura da biografia de Luís Bernardo Honwana. Aclamado logo à primeira obra, subversivamente publicada entre práticas de resistência ao colonialismo, o autor de “Nós Matámos o Cão-Tinhoso” não mais voltou a sujeitar a assinatura ao crivo literário da ficção.
“Esse livro fez e parece-me que continua fazendo o seu percurso. Eu faço o meu”, contemporiza Honwana, sem ceder à sedução da notoriedade granjeada pela escrita.
“Posso conceder que as histórias [presentes nessa obra] têm algum mérito, mas as circunstâncias em que elas foram produzidas, e o quadro histórico que se vivia ajudaram. Tudo isso faz o sucesso”, considera o escritor, acrescentando outra variável à equação: o acaso. “Acredito que haverá por aí muitas obras-primas em gavetas, que não tiveram a mínima chance, enquanto outras, por uma questão de sorte, apareceram no momento apropriado”.
“Nós Matámos o Cão-Tinhoso” surgiu em 1964, altura em que Portugal trucidava Moçambique com o seu regime colonial, e ano em que Luís Bernardo Honwana completou 22 anos.
Seis décadas depois, o livro continua a suscitar renovado interesse, visível nas reedições que se produzem um pouco por todo o mundo, e que, este ano, com a chancela da Maldoror, resgataram para as livrarias portuguesas uma presença há muito esgotada.
Já no Brasil – à semelhança do que acontece nas escolas de Moçambique –, a obra, que reúne sete contos, tornou-se leitura obrigatória para os estudantes que, até 2026, concorram à prestigiada USP - Universidade de São Paulo.
Mais do que ferramenta de estudo, o livro de Honwana, publicado em vários países e idiomas, é objecto de investigação, inspirando ensaios, teses académicas, e debates em conferência.
As lições do Sudão
Apesar do amplo reconhecimento, e acesso a diferentes públicos e mercados – que fariam imaginar uma trajectória na ficção literária –, o autor escolheu viver outra história.
“O meu percurso não está pendurado no livro, talvez até tenha tido uma reacção de quase de me distanciar dele”, aponta Honwana, desfiando “outras machambas” que o têm “entretido”.
A ligação à Organização das Nações Unidas, por exemplo, permitiu-lhe observar como os interesses imperiais dividiram o Sudão, e continuam a orquestrar instabilidades para extrair as riquezas de África.
“Foi fundamental para mim aquilo que vi. Perceber de que maneira é que essas coisas funcionam, como o petróleo não poderia ficar em mãos que não fossem as imperiais. Então decidiram que era preciso dividir o Sudão, e começaram: ‘porque nós os africanos não nos entendemos, temos o Norte Islamizado, e o Sul Animista; porque, historicamente, os do Sudão do Norte vinham ao Sul capturar escravos, e mais não sei o quê’”.
O fio condutor das narrativas, lamenta o moçambicano, produz invariavelmente o mesmo desfecho. “Pegam nas nossas querelas e incendeiam quando lhes interessa. E agora já está, é definitivo: temos um novo país que se chama Sudão do Sul, com petróleo que nunca mais acaba”.
A experiência sudanesa, vivida durante cerca de dois intensos anos ao serviço da ONU, aconselha redobrados cuidados em Moçambique. “A gente arrisca-se a ter um país dividido. Mas dividido a sério, com fronteiras, porque o tal imperialismo não é só uma coisa de que a gente ouve falar. Ele existe, mexe-se, e tem os seus interesses no país”, avisa, trazendo para a conversa não apenas os protestos pós-eleitorais, mas também a situação em Cabo Delgado.
“Há Islamismo em toda a África, então, porque é que foi aí, no Norte de Moçambique, que deu nessas insurgências? Os Al-Shabaab [somalis], são pagos por alguém”, sublinha Honwana, alertando para a disputa das reservas de gás.
“Há interessados nessas riquezas. As bolsas do gás são o Norte de Moçambique, o Sul da Tanzânia, quer dizer, o próprio Oceano Índico. Há uma zona que já está demarcada, e é essa que está afectada por estes fenómenos?”, questiona Honwana, lembrando que a força imperial nunca recuou no terreno. “Estão lá presentes os americanos, os franceses…e o que isso pode dar? Ah, que os moçambicanos não se entendem, que os conflitos pós-eleitorais não sei o quê, e, de repente, há um senhor que diz assim: ‘Vou lançar uma guerrilha, e, pronto, isso divide o país ao meio’”.
O cenário, insiste o autor de “Nós Matámos o Cão-Tinhoso”, pode soar, aos ouvidos dos mais incautos, como exagerado ou catastrofista, mas convém conhecer – e reconhecer – as nossas heranças: “Quando fizeram Biafra, havia alguma razão?”.
Cobiças externas, convulsões internas
Sempre atento às tramas internacionais, o antigo Ministro da Cultura Moçambique prossegue na análise político, género no qual, ao longo dos anos, foi calibrando a sua escrita e pensamento, compilados, em 2017, na obra “A Velha Casa de Madeira e Zinco”.
“Porque é que estão a ‘expulsar’ a Rússia, que é o país detentor da energia para o mercado da Europa? Porque estão a confiar em fontes alternativas. Os EUA têm a fonte alternativa que é o fracking, mas na realidade não querem fazer o fracking. Vão, isso sim, buscar essas ‘coisas’ que já reservaram em diferentes partes do mundo, incluindo Moçambique. E esse plano, se não tivermos juízo, vai passar pela divisão do país”.
Recuando algumas décadas na História, Honwana, que foi director de gabinete do Presidente Samora Machel logo após a Independência, em 1975, recorda que o poder imperial nunca poupou Moçambique a ataques – incluindo bombardeamentos sob a cumplicidade da NATO – para impedir que se tornasse um “mau exemplo”. Ou seja, um país livre do jugo colonial e bem-sucedido.
Mas, mais do que sinalizar as armadilhas externas, em que “os sul-africanos foram um instrumento de destruição”, o autor debruça-se sobre as derivas internas: “Não temos uma elite capaz, porque essa mesma elite está sendo corrompida com dinheiros. Eles estão comprados, eles estão a destruir a possibilidade” de um futuro.
Sem perder de vista as movimentações nas ruas, que, no final de Outubro, quando conversámos, ainda estavam nos primeiros dias, Honwana deixa outros avisos: “O Venâncio Mondlane, com todas as bonitas ideias que tem, é pago pelas igrejas fundamentalistas. Não é por acaso que ele saudou o Bolsonaro. Não é por acaso que quando ele veio aqui [Portugal], esteve com o Chega”.
A leitura crítica, ressalva o escritor, não anula o facto de estarmos perante “uma pessoa interessante”, antes pretende dirigir o foco para o país “olhar o futuro”.
No horizonte, Luís Bernardo Honwana destaca o dever de Moçambique assegurar “que os jovens vão ter o seu país, que vão ter a sua pátria”. Esta garantia, sugere, pode estar na criação de um Governo de unidade nacional: “Vamos tentar lançar esta fórmula do Mandela”.
Seja como for, “temos de andar depressa”, aponta o moçambicano. “Isto precisa de uma nova revolução, porque a da minha geração falhou, mas aquele projecto que tínhamos não foi totalmente abandonado, porque continuamos a querer um país independente, que é viável, que tem recursos naturais e humanos”.
Guiado por essa aspiração maior, Honwana e muitos outros nacionalistas moçambicanos embrenharam-se na luta de libertação, para muitos paga com a própria vida, e, no seu caso, saldada em quase quatro anos de prisão.
“Estava, entretido a mudar o mundo com os meus colegas”, conta, de volta aos tempos em que publicou “Nós Matámos o Cão-Tinhoso”.
Sem memórias, mas com muita memória
Dos revolucionários 22 anos de antes, para o amadurecimento dos 82 de agora, o autor reitera que “essa coisa do livro era um show à parte, mas não era o show principal”. Recentrando a conversa no compromisso político e nos valores que importa resgatar, o escritor defende que é fundamental que nos reconduzamos à nossa dimensão de humildade. “Só um fulano humilde aprende, porque assume que não sabe, que tem que aprender. Nós não, a gente acha que sabe tudo. Até fizemos a revolução!”, critica, renovando o apelo à unidade nacional. “Hoje assistimos a uma sucessão de monólogos, mas não há diálogo”.
Para quebrar esse ciclo de destruição, o moçambicano propõe que “os corrompidos encostem à boxe”, para vermos “o que se pode fazer, e como é possível mobilizar todas as capacidades disponíveis para reajustarmos, sem a intervenção do imperial”.
À medida que revê velhos capítulos e antevê novas páginas para a História de Moçambique, Luís Bernardo Honwana parece escrever as próprias memórias. Mas, garante, elas vão permanecer à margem de incursões literárias.
“Tenho a sorte de estar rodeado de pessoas que vão fazendo as suas memórias, e como essas memórias me envolvem de alguma maneira, não preciso de me preocupar com isso. Acho que estou dispensado dessa tarefa”.
Cumpre-nos a nós continuar a escrever – e a viver – as páginas da nossa Independência.
Luís Bernardo Honwana
França e Portugal têm “o gosto por África”, por isso devem “inventar” plano para ‘salvá-la’
Chegaram. Invadiram. Saquearam. Mataram. Criaram e engordaram fortunas. Desenvolveram cidades, países e continentes. Forjaram classificações humanas e princípios de universalidade epistémica. Com eles decretaram a sua superioridade moral e intelectual. Mas querem mais, porque nunca estão satisfeitos. Vai daí distribuem instabilidade política – leia-se o que nos conta Luís Bernardo Honwana –, fingem solidariedade internacional, vendem estabilidade militar e continuam donos e senhores de toda a prosperidade económica e financeira.
Chegaram. Invadiram. Saquearam. Mataram. Criaram e engordaram fortunas. Desenvolveram cidades, países e continentes. Forjaram classificações humanas e princípios de universalidade epistémica. Com eles decretaram a sua superioridade moral e intelectual. Mas querem mais, porque nunca estão satisfeitos. Vai daí distribuem instabilidade política – leia-se o que nos conta Luís Bernardo Honwana –, fingem solidariedade internacional, vendem estabilidade militar e continuam donos e senhores de toda a prosperidade económica e financeira. Criminosamente engenhosos, criaram a mentira que inventou o racismo – como bem explica o jornalista e documentarista americano John Biewen nesta TED Talk –, e com ela se vão reinventando e perpetuando no poder. Homens, brancos, privilegiados, tão imbuídos de ‘boa vontade’, e de preocupação com os africanos – negócios africanos, entenda-se –, que não conseguem travar os instintos de ocupação. Jean-Pierre Raffarin faz parte do clube dos ‘declaradamente superiores’, e isso tresanda na entrevista que deu ao Expresso, em que revela os seus planos para salvar África…numa congeminação que estende a Portugal. E, quem mais?
A entrevista já tem um mês, mas continua colonialmente actual. Nela, lemos o ex-primeiro-ministro da França, Jean-Pierre Raffarin, expressar ao melhor estilo de velhos mapas de cor rosa que tem um plano para salvar África de si própria…e do terrorismo.
Cheio do espírito invasor que sedimentou impérios, Raffarin explicou ao Expresso “que é preciso inventar uma cooperação internacional com o continente” africano. “Precisamos de acção multilateral”, disse, à margem da participação na conferência “Que cooperações possíveis entre França e Portugal em África?”, na Nova School of Business & Economics (Nova SBE), em Carcavelos.
Sem maiores cuidados em esconder tiques de outros tempos – afinal, está entre cúmplices de crimes históricos – o antigo chefe do Executivo francês revela, contudo, preocupação em travar leituras que o denunciem.
“Qualquer país que crie um fundo para África é visto como neocolonialista. Só uma estrutura multilateral, que inclua asiáticos, europeus e americanos, será capaz de fornecer aos africanos os meios para o seu desenvolvimento sem dar a impressão de que tudo isto está a ser feito por uma vontade política interessada”.
Agora como antes, a agenda é forjar boas intenções para defender o indefensável: “Se não desenvolvermos África para os africanos, vão aderir a todas as formas de terrorismo”, antecipa um ‘inquieto’ Raffarin. “Hoje o que é perturbador é que seja o terrorismo a criar os empregos de amanhã em África”, prossegue na sua narrativa, em que não refreia os ímpetos coloniais.
“Temos de pensar primeiro no continente. E este pensamento continental significa pensar no século XXII, com milhares de milhões de jovens a chegar, e como vamos gerir esses milhares de milhões de jovens”, aponta, no que parece ser uma referência ao “êxodo silencioso” em curso na França.
O fenómeno foi-nos apresentado no programa “Africa Eye”, da BBC, e surge como resposta ao aumento do racismo em solo gaulês, indissociável da ascensão e normalização da extrema-direita.
Entre o “bem de” e o “gosto por” África
É revelador que, para Raffarin, hoje presidente da Fondation Prospective & Innovation, a saída da juventude negra francesa para África tenha como resultado o seu alistamento no grande ‘consórcio’ terrorista.
Do mesmo modo, comove-me a sua preocupação de “como vamos gerir esses milhares de milhões de jovens”. Vamos? Quem?
O grande pensador tem todas as respostas, insistindo na ideia de um concerto de nações para o conserto de África. “Temos de inventar uma acção multilateral e, para isso, a reflexão franco-portuguesa é essencial. Se os franceses e os portugueses não forem capazes de o fazer, isso quer dizer que esta é uma tarefa impossível”.
A monstruosa sobranceria e desfaçatez é explicada pelo “gosto por África”, que, aparentemente, não é fácil de encontrar por aí.
“Alguns países estão interessados no bem de África, mas não no gosto por África. Nós, portugueses e franceses, temos isso em comum, o gosto por África. Os que trabalharam em África, os que têm raízes africanas amam e interessam-se por África, não apenas por um destino comum. Gostamos das paisagens africanas, das culturas africanas, da luz africana, dos pores do sol africanos. Há muitas coisas que os portugueses e os franceses podem dizer sobre África que outros povos nunca dirão”.
Haja Amor!
Mas o que não pode mesmo faltar é riqueza! “Há 5.000 empresas francesas a ganhar dinheiro em África”, indica, a determinada altura da entrevista, o antigo primeiro-ministro francês, para quem a experiência acumulada no regime colonial “continua a ser muito importante”.
Quem discorda estará, provavelmente, a instrumentalizar a História com intenções políticas. “Estamos convencidos de que as acções passadas de França e Portugal em África foram bem-intencionadas”, ainda que tenham ocorrido “muitos desvios e dificuldades”.
Apesar de declarar que os europeus não devem “tentar dar lições”, nem “tentar impor valores”, aos africanos, Raffarin é um poço sem fundo de recomendações. Segue mais uma para lidarmos com a ferida colonial.
“As gerações que vão governar estão inocentes desse passado, nada têm que ver com ele. E é muito importante que as novas gerações se declarem inocentes do colonialismo”.
A ‘fundamental’ absolvição histórica – em vez da justa e responsabilizante reparação – emerge, no maravilhoso mundo de ficções coloniais, como um pacto de felicidade. Porque, explica Raffarin, “não podemos pensar que a Europa será feliz se África continuar infeliz”.
Ninguém diria, a avaliar pela forma como destratam africanos e afrodescendentes dentro e fora das suas fronteiras, e como não se cansam de espalhar instabilidade para negociar estabilidade.
Mas, sabemos, o que importa é manter as aparências da Europa civilizadora, em que uns são ameaçadoramente negros e devem ficar de fora – mesmo que supliquem até à morte por uma entrada –, enquanto outros são “lourinhos e de olhos azuis” e, de tão “parecidos connosco”, têm carta branca para entrar, assentar e prosperar.
“Vulva Negra” - a militância discursiva de Yasmin que exorciza o espírito obsessor da branquitude
Com apenas 18 anos, Yasmin Morais criou, em Salvador, na Bahia, o projecto “Vulva Negra” para difundir “o trabalho intelectual que mulheres negras têm construído no Brasil e na América do Sul”. Aos 24 anos, e de passagem por Portugal – um dos destinos de internacionalização da iniciativa – activista falou com o Afrolink sobre esta proposta, que descreve como “feminista material e radical”.
Com apenas 18 anos, Yasmin Morais criou, em Salvador, na Bahia, o projecto “Vulva Negra” para difundir “o trabalho intelectual que mulheres negras têm construído no Brasil e na América do Sul”. Aos 24 anos, e de passagem por Portugal – um dos destinos de internacionalização da iniciativa – a activista falou com o Afrolink sobre esta proposta, que descreve como “feminista material e radical”. A conversa passou também pelo “ranço colonial” que ainda reveste de “grande animosidade” as relações entre portugueses e brasileiros, sem esquecer as ameaças à nossa humanidade, decorrentes da ascensão de forças políticas anti-democráticas. “A extrema-direita está muito bem organizada, não apenas no continente europeu, como também ali na América do Norte e infelizmente também na América do Sul. Eles já perceberam que a grande luta desse século é a luta por significado”, nota a baiana, reflectindo sobre a demonização das identidades. “Algumas pessoas dizem que as pautas negras são identitárias, ou que as pautas das mulheres são identitárias, quando são extremamente materiais”, assinala, sublinhando: “Nós estamos falando das nossas vidas e das nossas possibilidades de existência”. Quem se recusa a escutar?
Yasmin Morais, fundadora do “Vulva Negra”, aqui fotografada por Catherine Sant’ Ana e, na foto de capa, por Ivny Coura
Os olhares atravessaram-lhe o caminho para não ser quem é. “Eu me sentia vista como algo diferente de humana”. Ainda criança, Yasmin Morais confrontou-se com a impossibilidade até mesmo de estar. “No recreio, momento de confraternização entre as crianças, eu brincava sozinha, porque elas fingiam que que eu não estava ali”.
Única negra da sala, a baiana começou, logo aí, a destituir-se de si própria.
“Essas violências contribuem para um auto-ódio muito grande em mulheres negras. Lembro que a primeira vez que os meus cabelos foram alisados eu tinha 7 ou 8 anos”, conta a hoje escritora, palestrante e comunicóloga, sublinhando a importância dos questionamentos.
“Fui percebendo desde cedo como a desigualdade ia moldando minhas possibilidades, minhas oportunidades, e a maneira como as pessoas me viam. Então, me perguntava: por que as pessoas me olham de uma maneira que elas não olham para as minhas outras colegas, garotas brancas e loiras? Por que isso acontece? O que significa isso? Por que as coisas são como são? Buscar respostas, acabou sendo um caminho natural para mim”.
Natural do estado da Bahia, onde nasceu há 24 anos, Yasmin explica como a vida lhe demonstrou que “a cidade mais negra fora do continente africano também é um tanto hostil com a comunidade negra”.
Além das desigualdades no acesso à educação, a activista aponta para as diferenças no acesso à habitação. “Estudei em uma escola particular, porque a minha mãe era professora lá, mas a maior parte das pessoas negras se concentram nas instituições de ensino público”, nota, sublinhando o quanto a estratificação social se evidencia no quotidiano – “As pessoas brancas vivem nos melhores bairros”.
Mais do que observar e questionar, Yasmin decidiu actuar.
“Comecei a procurar leituras que me trouxessem respostas. Então, acabei esbarrando com autoras maravilhosas, tanto nos Estados Unidos como no Brasil”.
Os encontros literários, com figuras como Angela Davis e Lélia González, trouxeram-lhe compreensão e construção da sua identidade, negra e feminina.
“As pessoas olham a aquisição de conhecimento como algo bom – e é realmente muito bom –, mas quando nós falamos do conhecimento sobre a questão étnico-racial e feminina, sempre vem de um lugar muito doloroso. Você se interessa por saber porque as coisas são como são, porque elas te atingiram primeiro e isso também tem de ser levado em consideração”.
Para começar, Yasmin pergunta: “Quantas de nós não gostariam de ser mais claras, por exemplo? Ou de se enquadrar na noção de feminilidade eurocêntrica?”.
Quebrar correntes de subalternização
Assumidamente fora dos padrões ocidentais, a baiana defende que “como mulher negra, com um nariz largo e cabelos crespos”, não cabe na construção feminina dita ‘universal’. “Os meus traços estão muito mais associados àquilo que dentro da concepção eurocêntrica seria masculino ou animalizado”.
Hoje consciente dos mecanismos de apagamento e silenciamento, e das tentativas de aniquilação da existência negra, a activista alerta para a importância da resistência e ruptura com dinâmicas de subalternização.
“O ódio que nos dirigem acaba se impregnando na nossa personalidade. Então, o trabalho de conscientização com mulheres negras também é uma espécie de exorcismo do espírito obsessor da branquitude, que tenta incutir nas nossas cabeças que não somos boas o suficiente, quando na verdade somos”.
O auto-conhecimento e reconhecimento, iniciado na infância, amplifica-se, há seis anos, através da plataforma “Vulva Negra”.
“Tinha apenas 18 anos, um celular velho e um sonho. Hoje, já representamos o Brasil em mais de seis países e, no ano retrasado [2022] me tornei a primeira brasileira a palestrar no palco principal da maior conferência feminista actual da Europa – a FiLiA Conference”.
O testemunho está afixado na página do projecto no Instagram, lugar de afirmação e celebração.
“Eu demorei muito para me apropriar de uma percepção positiva sobre mim. Hoje eu considero que eu tenho uma óptima autoestima, mas é uma construção, porque na minha infância, na minha adolescência, eu passei por muitos conflitos internos”.
Desde logo, Yasmin conta como não se identificava com as construções de feminino.
“Eu sei que sou uma mulher, mas levei anos e anos para conseguir dizer que eu sou uma mulher, porque não me sentia dessa forma”, diz, explicando que cresceu com “uma definição completamente limitante” do que representa estar nessa pele.
“Pensando especificamente no contexto brasileiro, e religioso, as pessoas apresentaram para mim que ser mulher é ser submissa, é ser compassiva, é ser compreensiva…É andar dois passos atrás de um homem. Não lado a lado, nem à frente. Dois passos atrás. E eu, como aquela criança, como aquela adolescente, pensava: isso é ser uma mulher? Então, eu anulo essa possibilidade”.
A importância de ler
Já longe dessa invalidação, a escritora conta que o estudo, associado às experiências que foi tendo ao longo da vida, lhe permitiram desmontar essa construção social.
“Percebi que, na verdade, aquilo ali é uma noção completamente arcaica e patriarcal de quais são as possibilidades para uma mulher”.
Aos 24 anos, Yasmin afasta-se de impossibilidades, e propõe, com o seu projecto, “uma perspectiva crítica às noções clássicas”, posicionando-se pelo abolicionismo de género, por acreditar que o mesmo nos é imposto, de forma limitante.
Apesar de reconhecer as condicionantes, a palestrante faz questão de se afirmar mulher, ao mesmo tempo que desafia padrões. “Ser uma mulher que viaja, que é activista, que está no mundo”, e “não ser submissa, não ser feminilizada, não ter o nariz fino…não retira a minha mulheridade”.
Segura na sua pele, a escritora reafirma a importância da literatura no seu processo de humanização, afirmação e exaltação negra.
“Sei que tenho uma história incomum, um pouco fora da curva”, admite, de volta aos tempos de criança.
“A minha mãe é professora, e sempre foi professora. O meu pai, durante a adolescência, início da juventude, era um escritor. Então, a minha família sempre foi circundada pela questão educacional da parte da minha mãe, e pela questão literária da parte do meu pai”.
A conjugação facilitou o acesso a livros, congratula-se a palestrante, reiterando que “apesar de ser uma pessoa negra que veio da classe socioeconómica baixa no Brasil”, desfrutou do “privilégio de ter pais que encorajam a ler”.
A influência permitiu-lhe treinar, precocemente, o músculo da escrita. “Eu me descobri escritora muito cedo. Com 10 anos, eu já escrevia poemas porque eu me sentia mesmo incentivada pela minha família”.
Lembrando que, no Brasil, “a maioria das pessoas lê, no máximo, um livro por ano”, Yasmin questiona o impacto dessa circunstância.
“Não estou aqui dizendo que é impossível construir conhecimento de outras formas. Você pode assistir a documentários, aulas, palestras, mas ler é uma forma de se apropriar do seu próprio senso crítico, da sua própria perspectiva”.
Enraizada no seu lugar de pensamento, a fundadora do “Vulva Negra” reflecte sobre as ameaças da extrema-direitas a múltiplas identidades; sobre “ranço colonial” que tensiona as relações entre brasileiros e portugueses; e sobre a proposta do seu projecto.
Militância discursiva
“O nome “Vulva Negra” surge por dois motivos interessantes: primeiro, porque é um trocadilho com a aranha viúva-negra, que devora o macho depois do acasalamento; segundo, porque essa palavra ainda é um grande tabu, e, por isso, as pessoas utilizam 1001 nomes inventados para não falar vulva”.
Em contracorrente, a escritora avançou para o que chama de “militância discursiva”: “Toda pessoa que tiver que falar do meu trabalho, vai ter que falar a palavra”.
A ‘profecia’ cumpre-se em jornais, revistas e nas televisões, que acompanham as actividades, nacionais e internacionais, em que o projecto criado por Yasmin Morais está envolvido.
É também na arena mediática que se percebe, cada vez mais, a ascendência da extrema-direita, que cresce sob impulso de polarizações identitárias.
“Penso que é interessante que todos nós, a nível individual, defendamos nossas identidades e nossas questões. Mas é importante, sobretudo, que isso também não nos impeça de ter um olhar colectivo”, defende a baiana, alertando para a distorção de termos por forças anti-democráticas: “Apropriam-se e colocam tudo de forma pejorativa”.
Atenta a essa perversão, a comunicóloga nota que “a extrema-direita está muito bem organizada, não apenas no continente europeu, como também ali na América do Norte e, infelizmente na América do Sul”, e já percebeu que “a grande luta desse século é a luta por significado”.
Por isso, diz, “eles estão a todo o momento se apropriando e se reapropriando de conceitos”.
A manobra exige maior e melhor concertação de esforços, aponta Yasmin. “É muito importante nós termos consciência que estamos vivendo um momento social em que aqueles que se posicionam contra nós, contra as minorias, a comunidade negra e as mulheres, sentem muito medo dos nossos movimentos auto-organizados, não apenas por emancipação, mas também pela justiça que todos nós merecemos como cidadãos”.
A palestrante destaca ainda que “quando esses indivíduos nos vêem nos auto-organizando, criando nossos eventos, nossos movimentos, nossas petições, quando nos vêem pensando a nível político, eles gostam de nos taxar como pessoas perigosas, como pessoas radicais, em um sentido ruim”.
Dando como exemplo o Brasil, a escritora nota que “não há uma polémica dentro dos movimentos de esquerda em falar que nós precisamos de um combate radical às estruturas: do próprio capitalismo, da opressão social e económica”.
No entanto, prossegue a fundadora do “Vulga Negra”: “Quando se fala na questão étnico-racial ou na questão de género, as pessoas vêm com um discurso, que é muito mais próximo do ‘não se pode ser radical demais’”. Então, continua Yasmin, “enquanto você acredita que pessoas negras ou que mulheres precisam também vivenciar uma emancipação completa, outras pessoas olham esse discurso como se fosse algo pernicioso para a sociedade, começam a demonizar, quando, na verdade, o feminismo material nada mais é do que a busca pela emancipação das mulheres e das pessoas negras, compreendendo que nós somos oprimidos historicamente, por razões que nos foram impostas a partir da nossa materialidade: ser negro e mulher”.
Sem nunca perder o fio aos questionamentos, a activista baiana dispara: “Se nós não observamos quais são os factores que constituem a nossa realidade, como vamos pensar políticas públicas para mulheres negras? Como vamos pensar políticas públicas para as pessoas em situação de subalternidade?”.
Sublinhando que “essas questões são históricas”, a escritora adianta que “o empobrecimento das mulheres negras no Brasil, por exemplo, vem desde a época da colonização”.
A explicação é simples: “Quando nós pensamos que, após a Abolição da Escravatura no Brasil, pessoas negras não receberam políticas de reparação; quando pensamos que mulheres demoraram muitíssimo para poder ter acesso a condições financeiras e económicas, temos de reconhecer como isso influencia de certa forma a maneira como nós vivemos hoje”.
Limpar o ranço colonial, para Portugal aprender com o Brasil
O impacto do passado no presente não é teórico, avisa a baiana, insistindo na dimensão concreta das opressões.
“Porque quando nós estamos vivendo em países que não são a favor de pessoas negras, de mulheres e de minorias, nós não estamos em uma guerra conceitual, nós estamos em uma guerra por sobrevivência, por existência com dignidade. Então, algumas pessoas dizem que as pautas negras são identitárias, ou que as pautas das mulheres são identitárias, sem compreenderem que essas pautas são extremamente materiais”.
Por entender está igualmente o caminho que brasileiros e portugueses podem construir juntos.
“Eu sinto que há uma grande animosidade, de certa forma, entre portugueses e brasileiros, porque ainda há no Brasil o que nós chamamos de ranço colonial. Ainda há ali uma sensação de superioridade dos portugueses face aos brasileiros por termos sido colonizados”.
Poderá a forte presença da comunidade brasileira em Portugal contribuir para eliminar esse “ranço”?
“Sinto que nós temos muito a ensinar no quesito étnico-racial, porque estamos há muito tempo fazendo isso, lutando por isso no Brasil, e já houve vitórias. Apesar de tudo, temos aí a lei de cotas. Temos aí o Ministério da Igualdade Racial. Temos avançado da maneira que nos é possível”.
Nessa trajectória, Yasmin destaca o protagonismo feminino.
“Lá atrás, houve uma questão muito interessante, das ganhadeiras, mulheres negras que às vezes não eram sequer libertas, e ainda trabalhavam para os seus senhores. Utilizavam a venda de alimentos, e de pequenas coisas como método para financiar a compra da alforria de outros indivíduos negros, de suas famílias e de suas comunidades”.
Séculos depois, a história renova-se com o movimento feminista e anti-racista, nota a escritora. “É muito mais fácil a gente ficar quieta do que falar sobre as coisas como elas são. Mas nós, mulheres negras, saímos desse lugar, e estamos, de certa forma, contribuindo para a compra dessa alforria – que agora é psicológica – das pessoas que fazem parte da nossa comunidade.” Até à libertação final!
Fotografia de Catherine Sant’ Ana, num dos encontros promovidas pelo projecto “Vulva Negra”