Dos saberes do arroz africano à libertação das memórias, Zia Soares revela-nos um outro mundo

Ia e regressava de Bissau, sem outro plano a não ser trabalhar nos campos de arroz. “Interessava-me saber como é que se planta”, conta Zia Soares, que, durante quatro anos, desdobrou viagens à Guiné e, com elas, viu germinar a sua mais recente criação: “Arus Femia”. Presente no ensaio de imprensa, realizado no Espaço da Penha, em Lisboa, o Afrolink conversou com a encenadora e actriz sobre esta produção, que “desarruma” os nossos olhares, escutares e falares. “É sobre isto que este espectáculo trabalha: a criação de um outro mundo, de uma outra língua, de outras perspectivas”.  Titulada em crioulo guineense, a peça – que em português significa “Arroz Fêmea” –, estreia-se esta semana no Teatro Campo Alegre, no Porto, com duas sessões. A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30. Neste dia, as reflexões desembrulhadas em palco estendem-se ao programa da Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, que acontece a partir das 14h30, no Rivoli. “Para além da obra artística, esta é uma discussão para a sociedade civil”, sublinha Zia Soares, que, de inquietação em criação, encontra novas chaves de leitura do mundo. Desta vez, os questionamentos atravessam a história do arroz africano no mundo Atlântico. “Como uma espécie domesticada de forma independente na África Ocidental há mais de três mil anos chegou às plantações do Novo Mundo? Que protagonismo tiveram as mulheres escravizadas no estabelecimento deste alimento africano vital nas Américas?”. Do palco para a conferência, libertam-se memórias.

Fotos de Arlindo Camacho (também de capa), aqui com elenco do espectáculo “Arus Femia”, que inclui elementos do grupo cultural da Guiné-Bissau, Netos de Bandim

Sem uma única palavra, o diálogo constrói-se de silêncios e gestos, num serpentear de corpos e expressar de pés. Com eles desponta um movimento comum, tão harmonioso quanto misterioso.

“O que é isto? Quem és tu? O que é que tu queres? Não dizes nada?”.

Há uma estranheza neste encontro-confronto que nos prende a atenção, desarruma pensamentos, e marca os primeiros minutos de “Arus Femia”, a mais recente criação de Zia Soares.

“Nós estamos habituados a muito ruído, de todo o tipo, tanto sonoro como visual. E este espectáculo traz outra perspectiva. Há uma possibilidade de mundo no silêncio”, introduz a encenadora e actriz, propondo novos olhares, escutares e falares.

“Na expressão europeia, euro-centrada, as palavras, o que se diz e aquilo que se escreve têm uma hegemonia sobre tudo o resto”, nota a criadora, interessada em conhecer – e dar a conhecer – outros modos de comunicar.

“O silêncio não é uma incapacidade de expressão. Não é uma assombração, e sim um assombramento, uma forma de expressão completamente diferente, que nos diz que há um outro entendimento possível que desconhecemos”.

Mais do que teorizar sobre alternativas de ser e de estar, Zia faz por vivê-las.

Foi assim que, durante quatro anos, desdobrou viagens à Guiné-Bissau, sem outro plano a não ser trabalhar nos campos de arroz: “Interessava-me saber como é que se planta”.

O processo, construído na ligação a, e com outras mulheres e comunidade, acabou por produzir “Arus Femia”, espectáculo titulado em crioulo guineense, e que, em português, significa “Arroz Fêmea”.

“Há um entendimento maior que me acompanha: de que há muitas coisas que tenho de saber, que tenho de descobrir, que tenho de escavar, e em que tenho de mergulhar. Essa é a certeza que tenho, mas aquilo que vou encontrar quando mergulho é desconhecido também para mim”.

Não surpreende, por isso, que a experiência nos arrozais tenha acontecido desligada de programações artísticas, guiada por essa ânsia de conhecer, espicaçada por conversas e leituras sobre o contributo africano para a globalização do consumo do arroz.

“Como uma espécie domesticada de forma independente na África Ocidental há mais de três mil anos chegou às plantações do Novo Mundo? Que protagonismo tiveram as mulheres escravizadas no estabelecimento deste alimento africano vital nas Américas?”.

O palco em discussão

A proposta de reflexão, presente na Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, prolonga a acção de “Arus Femia”, que se estreia esta semana no Teatro Campo Alegre, no Porto, com duas sessões.

A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30, dia em que a apresentação é antecedida, a partir das 14h30, no Rivoli, por essa Conferência.

“Para além da obra artística, esta é uma discussão para a sociedade civil”, sublinha Zia Soares, que, de inquietação em criação, encontra novas chaves de leitura do mundo, neste caso apontadas para reflectir sobre soberania alimentar, crise climática, migrações e feminismo. Sem quaisquer pressões de entendimentos, garante a criadora.

“Não me sinto responsável pela forma como o público vai receber e interpretar o espectáculo. A mim cabe-me ter coisas que me impactam e inquietam, e que eu traduzo artisticamente”, revela Zia, interessada em estimular a reflexão de quem assiste, seja ela qual for.

Depois do Porto, a proposta segue para Lisboa, apresentando-se, a 2 de Abril, no CAM – Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, com entrada gratuita.

Ainda na capital, o Teatro do Bairro vai acolher cinco dias da produção, de 7 a 11 de Maio, mês que encerra com a presença do espectáculo na primeira Bienal da Guiné-Bissau.

Entre os palcos e a conferência, libertam-se memórias.

“A maioria das pessoas identifica a escravidão com o açúcar e poucas a associam ao arroz”, assinala-se na sinopse da conferência, recordando-se que os africanos escravizados cultivavam o cereal no estuário do Sado, em Portugal, no Brasil, nas Caraíbas e no sul dos Estados Unidos.

Este e outros saberes inspiraram “Arus Femia”, que, no entanto, se solta de cronologias e geografias. “É sobre isto que este espectáculo trabalha: a criação de um outro mundo, de uma outra língua, de outras perspectivas”, reflecte a autora, sublinhando a natureza não exclusivamente humana das personagens.

“Vemos em palco uma comunidade para além de qualquer tempo, em que as memórias não se fixam, estão sempre a circular, como acontece com a natureza, que não está presa, que se vai reconfigurando e se vai transformando”.

Pelo contrário, nota Zia, “nesta nossa forma de vida, estamos a acumular memórias, e como não sabemos o que fazer com elas, isso traz-nos muitas dores”.

Será a Dormência, nome de uma das sete personagens de “Arus Femia”, um modo de resistir à dor das memórias?

Será, como sugere outra personagem, que é preciso afundar, para lembrar? Ou então, lembrar para depois esquecer?

Entre os nossos próprios questionamentos, e aqueles que o espectáculo verbaliza, persiste a certeza de que um outro mundo está ao nosso alcance.

Com “coisas que nós não conseguimos ver, ouvir, nem olhar quando temos tanto ruído à nossa volta”.  

Zia Soares, foto de Sofia Berberan

Direcção, encenação, texto
Zia Soares

Interpretação
Albertinho Monteiro, Aoaní, Dionezia Cá, Izária Sá, Ulé Baldé, Urbício Vieira, Xullaji

Música
Xullaji

Movimento coreográfico
Vânia Doutel Vaz

Cenografia
Neusa Trovoada

Design de iluminação
Carolina Caramelo

Vídeo
António Castelo, Lentim Nhabaly

Video design
Cláudia Sevivas

Conteúdo visual para animação 2D
Camila Reis, Nú Barreto

Figurinos
Neusa Trovoada

Tranças
Mariana Desidério

Tradução para kriol
Miguel de Barros

Engenheiro de som
Jorge Gonçalves

Direcção de produção
Camila Reis

Apoio à pesquisa
TINIGUENA

Produção
Sowing_arts

Coprodução
Teatro Municipal do Porto, Netos de Bandim, STATION service for contemporary dance

Apoio
Câmara Municipal de Lagos/Centro Cultural de Lagos, Casa da Dança, Fundação Calouste Gulbenkian, GROWTH, Largo Residências/Jardins da Bombarda, O Rumo do Fumo, Polo Cultural Gaivotas Boavista, RDP África

Paula Cardoso

Jornalista, Fundadora da rede Afrolink e Autora da série de livros infantis Força Africana.

https://paulacardoso.pt/
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