Com quantas músicas se compõe a Paz? Juliata Cohen canta-nos

Nasceu em França, há 32 anos, com Marrocos e Tunísia no sangue, e cresceu sob a inspiração de múltiplas influências culturais, desde cedo alargadas a viagens frequentes a Israel. Já adulta, Juliata Cohen encontrou em Jerusalém um bastião de entendimentos humanos, de onde partiu para seguir um apelo de alma, pronunciado numa língua que desconhecia, mas admirava: o bambara. Encontrou o idioma nas vozes de artistas como Fatoumata Diawara, Amadou & Mariam ou Oumou Sangaré, e, por dois anos, fez dele ‘morada’, entre viagens pelo Mali e o Burkina Faso. Já com algum vocabulário em bambara, seguiu para Cabo Verde, destino de um novo impulso musical, entretanto adoptado como casa e laboratório de experiências, traduzidas em “22:22”, o seu álbum de estreia. Lançado a 22 de Janeiro, o trabalho conta com os contributos de duas referências da música cabo-verdiana – Djô da Silva e Mario Lucio –, e, por estes dias, está a ser apresentado em Portugal. Amanhã, 8, Juliata sobe ao palco do Wow, no Porto, e no sábado seguinte, 15, podemos ouvi-la na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa. Até lá, fique a conhecer um pouco mais da sua história, que também passa pelo artesanato.

Sem conhecer uma única palavra da língua, Juliata Cohen agarrou no sentimento, e soltou a voz no crioulo de Cabo Verde, para interpretar o tema “Tan Kalakatan”.

“Estava apaixonada pela música”, conta ao Afrolink, revisitando o primeiro contacto com Carlos Alberto Sousa Mendes, mais conhecido por Princezito.

Na altura ainda a viver em Israel, a artista conta que para além de ser ter entusiasmado a gravar a canção que o cabo-verdiano compôs para Mayra Andrade, decidiu partilhar com ele o resultado.

“Procurei o contacto no Facebook, e escrevi a dizer: sou fã do seu trabalho, aqui está uma versão da sua música”.

A mensagem abriu espaço a uma conversa, e, de repente, o arquipélago africano ficou mais perto.

“Ligou-me porque estava espantado que conseguisse cantar em crioulo. Ficou super surpreendido, e acabámos a falar ao telefone 30 minutos, em francês e inglês, tudo misturado. Quando disse que tinha o sonho de ir para Cabo Verde, respondeu logo que seria bem-vinda”.

Hoje Juliata vive na cidade da Praia, fala crioulo, e tem no seu álbum de estreia uma forte identidade cabo-verdiana.

Hora como herança

Intitulado “22:22”, o disco foi produzido pelo renomado Mario Lucio, e com o selo de qualidade da editora Harmonia/LusAfrica, de Djô da Silva, mundialmente reconhecido pela ligação a Cesária Évora.

“22:22 é uma ‘hora-espelho’, uma boa hora para rezar, e também um bom momento de alinhamento, de sincronicidade”.

O significado, explica a cantautora, reflecte parte da sua herança familiar. “Trago isso da minha avó materna, e utilizo essa hora quando quero mandar uma reza para o céu ou desejar uma coisa, até para outra pessoa. Sempre foi um momento de conexão, uma coisa forte”.

A dimensão espiritual, presente no título “22:22”, estende-se aos oito temas que integram o álbum, criado, tal como Juliata, sob uma miscelânea de influências.

Nascida em França, há 32 anos, a artista é filha de mãe marroquina e pai tunisino, e cresceu entre Paris e Israel.

“Fui pela primeira vez aos 8 anos, para um casamento, e depois passei a ir todos os anos para festas tradicionais. Às vezes ficava duas semanas, outras dois meses no Verão”.

O destino, que durante a infância e adolescência permitia o encontro com a família do lado paterno, tornou-se residência, já em idade adulta, durante cerca de dois anos e meio.

“Já estava acostumada aos meus familiares, mas nunca tinha vivido no Médio Oriente. Aí tive a sorte de descobrir um lado que talvez poucos conhecem, porque estava no meio de um lugar de multiculturalidade, com pessoas de todas as religiões, com tolerância, aceitação e paz”.

Dessa temporada, de descoberta de Jerusalém, Juliata guarda as melhores lembranças.

“É um lugar muito sagrado, que tem uma energia única no mundo, e é muito raro ouvir falar sobre isso. Ouvimos falar muito mais sobre a guerra sem fim, que continua até hoje, mas é importante pôr luz nesse outro lado que também faz parte da vida lá”.

Música de Paz

Determinada em contribuir para essa ‘iluminação’ de perspectivas – para que o mundo não veja apenas a separação das pessoas e os problemas –, a cantora usa a arte para quebrar fronteiras, aplicando mais uma dimensão do legado familiar.

“Tenho esta vontade de misturar línguas, por isso às vezes canto em árabe e hebraico ao mesmo tempo”, assinala, sublinhando o poder desse cruzamento: “É um símbolo de Paz, uma forma de conservar a minha herança judaica e árabe”.

Além da inspiração das próprias raízes, desde cedo Juliata se sentiu fascina por outras maneiras de pensar, e por outras culturas. O interesse, revela, foi sendo musicalmente alimentado a partir da colecção de discos de um tio DJ.

“Ele tinha o hábito de escutar música africana, de Angola, Cabo Verde, Marrocos, Etiópia, e também do Brasil. Tinha 10 anos quando ele me dizia: ‘Não, não, não vais ouvir Britney Spears. Vem cá, e ouve Stevie Wonders, Ray Charles…”.

O exemplo fez escola, e reforçou a veia artística da cantora, desde cedo encaminhada pela família para a música, o teatro e a dança.

“Estamos habituados a adaptar e a misturar. Foi sempre parte da minha educação respeitar todo o mundo com sua cultura, religião, forma de viver. Acho que por isso sempre tive uma grande vontade de viajar, de ir ainda para mais longe do que as viagens que a minha família, de alguma forma, me foi proporcionando”.

Encontros de línguas

Um dos impulsos para percorrer mundo continua a ser a música, mesmo que cantada em idiomas desconhecidos.

“Eu tinha uma conexão muito grande com a língua bambara, falada nuns oito países da Costa de África, então sempre quis aprender”.

O fascínio, que foi crescendo a partir das vozes de artistas como Fatoumata Diawara, Amadou & Mariam ou Oumou Sangaré acabou por fixá-la durante dois anos na rota Mali-Burkina Faso.

“No Burkina, no início, o primeiro contacto que tinha era de um baixista, muito profissional. Todo o mundo estava a recomendar esta conexão. Depois começámos um projecto e, com tempo, paciência e experiência conheci outros artistas”.

Sempre na espontaneidade de cada encontro, e com abertura para novas ligações, o mapa de Juliata estendeu-se a Cabo Verde, destino cumprido já com algum vocabulário em bambara na bagagem, e o contacto de Princezito nas ligações.

“A minha música é um encontro de países, línguas e culturas”, diz em português, um dos cinco idiomas que fala, embora consiga cantar em sete. Mais do que “falar certinho”, a autora de “22:22” preocupa-se em comunicar.

Com o mesmo engenho criativo, a artista produz colares, brincos e pulseiras, que vende pelas ruas de Cabo Verde, também como expressão da sua ‘missão’ conciliadora.

“Faz parte de mim. Tanto para o processo de criar uma jóia, como para o processo de criar uma música, gosto de misturar influências, por exemplo juntar uma pedra de Marrocos, com um búzio de Cabo Verde, e com isso ter uma história que junta culturas e países. É o mesmo que faço com a música. É um ponto de encontro, um ponto de unir as culturas, as línguas, os povos, as histórias”.

 A proposta sobe ao palco do Wow, quarteirão cultural no Porto, amanhã, 8, às 22h30, enquanto no sábado seguinte, 15, podemos ouvi-la na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa, às 23h30.

Depois, a agenda de divulgação de “22:22”, que apresenta como uma proposta afro-árabe soul, passa por Cabo Verde e França. Mais para a frente, ainda sem calendarização, a artista planeia uma imersão nos ritmos brasileiros.

Mas, vá para onde for, pode sempre acompanhá-la e ouvi-la nas plataformas digitais.

Spotify

YouTube

Instagram 

Facebook

Paula Cardoso

Jornalista, Fundadora da rede Afrolink e Autora da série de livros infantis Força Africana.

https://paulacardoso.pt/
Anterior
Anterior

Dos saberes do arroz africano à libertação das memórias, Zia Soares revela-nos um outro mundo

Próximo
Próximo

A vida de Georgina Ribas deu esta obra de arte, e isso vê-se no Brooklyn