HISTÓRIAS

Perfil, Vidas Negras Paula Cardoso Perfil, Vidas Negras Paula Cardoso

O livro da vida de Ilda escreve-se com música, para virar páginas de dor

A canção "África" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.

A canção "Áfrika" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.

As letras soltam-se em momentos de confronto e adversidade. “Quando estou chateada, a única libertação é a música”, conta Ilda Vaz, desde a infância habituada a transformar os desafios da vida em melodias.

Nascida em Cabo Verde há 57 anos, a fundadora do grupo Batukaderas Bandeirinha Panafrikanista Di Lisboa, recorda, sem uma nota de hesitação, o momento em que trauteou o primeiro tema.

“Tinha três anos, e estávamos no barco que nos levou para São Tomé e Príncipe”, diz, colando flashes do que viveu a um extenso arquivo de memórias maternas.

“Cresci a ouvir esta história: de uma senhora que foi mãe durante essa viagem, morreu e foi atirada para o fundo do mar. Depois entregaram a bebé à irmã, para criar. Disseram que essa menina se chamava Ana Mafalda”.

Estávamos em 1969, Ilda era ainda muito pequena para registar o episódio com tanto detalhe, mas, garante, todas as emoções que acompanharam a saída de Cabo Verde ficaram-lhe gravadas.

Assim que entrou no barco, por exemplo, a sensação de despertença impôs-se. “Isto é estranho. Aqui não é a nossa casa”, recorda-se de ter sentido, puxando para a conversa com o Afrolink não apenas as impressões, mas também algumas descrições.

“Lembro-me da rua onde vivíamos, de um cão, de uma vaca que era preta e branca, e de um caminho estreito que fizemos até entrar num carro, que nos levou à cidade da Praia”.

Naquela altura, São Tomé e Príncipe parecia oferecer um destino melhor para a família, mas entre a promessa de uma vida digna, lavrada em contrato, e a realidade do dia-a-dia, Ilda relata um contínuo de violência.

“Percebi, depois, que aquele era um barco de escravatura”, sublinha, de volta a um capítulo de vida carregado de humilhações e abusos.

“A minha mãe trabalhava na mata do cacau, parida de um mês, com o bebé nas costas, debaixo de chuva. Trabalhava doente”, denuncia, acrescentando que se hoje mal fala português é porque nem os contratados tinham direitos laborais, nem os filhos tinham acesso à educação.

“Depois do 25 de Abril, é que começa a haver isso de ir para a escola, mas também não era para todos”, contrapõe, enquanto revisita episódios de profunda dor. “Tenho muita coisa para contar, coisa de dar nervos mesmo!”, aponta esta trabalhadora do serviço doméstico, sem nunca perder a sintonia do amor.

“Canto para ajudar o nosso povo, o povo de África a ter coragem, a lutar sem odiar, porque o nosso caminho não é de ódio”.

Áfrika, a música de todos

Com a voz projectada sobre a dor das experiências que vive individualmente e que vivemos colectivamente – nomeadamente de racismo –, Ilda vê na música um canal de conhecimento e reconhecimento.

“Como não estudei, a única forma de fazer um livro é a cantar”, nota, sem mãos a medir para o tanto que importa musicar.

Começou por “Áfrika”, o seu tema de estreia, apresentado no final do Verão, e entoado a partir de uma agressão racista sofrida há cerca de 10 anos.

“Trabalhava numa farmácia, e um dia entrou um senhor com um cão grande, todo negro. Eu estava ali a limpar, e o homem olhou para mim com um ódio tão grande, que disse assim para a minha patroa: ‘Olha, tira essa preta daí porque o meu cão não gosta de pretos’. Eu ouvi, mas fingi que não estava a entender, e fiquei em silêncio, quieta”.

Sem tempo para digerir o ataque, Ilda confrontou-se com uma nova agressão: recebeu ordens para se remeter ao piso inferior, e de só voltar a subir quando o cliente saísse, não fosse o animal ficar agitado.

“Perguntei logo: será que é o cão que não gosta de mim, ou é o dono?”.

Para a dona da farmácia não fazia diferença, porque, conforme fez questão de sublinhar, enquanto dava a ordem de clausura, não iria perder um cliente por causa dela. Que é como quem diz, por causa de “uma preta”.

Ilda explodiu em lágrimas, mas, uma a uma, todas foram secando à medida que a letra “Áfrika” se compunha dentro de si. “Dei esse nome porque é música para todos e todas. Para a gente ficar com a vista mais aberta”, explica, visibilizando e vocalizando atenções para a necessidade de um combate anti-racista.

Ao mesmo tempo, “Áfrika” sobressai como uma fonte de energia renovável. “Tenho a minha mãe, que não está bem de saúde, a viver comigo, tenho oito horas de trabalho diárias, tenho as actividades das batukaderas, tenho a casa para arrumar, comida para fazer e, cada vez que não sei como faço tudo isso, fico ainda mais forte”.

Música contra discriminações

Casada há 34 anos, recém-comemorados, e mãe de três, Ilda esbarra numa série de desafios ao seu processo criativo. A começar pela gestão do quotidiano doméstico.

“Eu passo muito mal para fazer letras aqui em casa”, exemplifica, partilhando, entre risos, uma reclamação habitual.  “Dizem que sou muito barulhenta, que toda hora estou a cantar. Mas quando a gente gosta a gente não se enerva”.

Mais do que gostar de soltar a voz, a batukadera destaca o efeito catártico das letras surgem a cada trauma, como aquele que traz da infância em São Tomé e Príncipe.

Além da consciência precoce de exploração trabalhista, que massacrou a vida dos pais, a compositora percebeu muito cedo como a pele negra é tratada como “um defeito”.

“Um dia estava a brincar à porta de uma senhora branca, portuguesa, mulher do feitor da roça. Eu era moça pequenininha, a crescer, e ela saiu na janela e insultou-me. Foi tão…”, as palavras falham diante da desumana lembrança, antes de prosseguirmos com a conversa.

“Isso ainda está comigo, e vai ficar. Ela disse: ‘Sua preta, sai daí, vai para a sanzala, canalha, suja, preta do c******.”

Incapaz de entender tamanha violência, a pequena Ilda deu por si a reparar: “Mas eu não estou suja”!.

Ainda com cada um e todos aqueles insultos agarrados à pele, a cabo-verdiana fez deles música.

“O que sinto, o que vejo, o que eu passo todos os dias nas limpezas, e o que os meus irmãos passam, tudo isso está nas minhas letras”, nota, libertando, através das composições, o peso de múltiplas discriminações.

Frente feminina

Desde 1996 em PortugaI, destino de tratamentos médicos do marido – que veio para fazer hemodiálise –, Ilda não esconde o cúmulo de desencantos: “Olha, o negro nunca é bem-vindo para a raça branca. Nunca, nunca, nunca”, insiste, alertando para alguns cuidados a ter.

“A maior parte da nossa raça negra está a entrar num portão que não é nosso. Então eu digo: entra para entender, para perceber, para estudar, mas nunca esquece que, no espírito deles, você não pertence. Por isso, deixa uma fuga para sair, e para outros irmãos entrarem”.

Calejada em episódios racistas, a batucadeira reforça os alertas. “Para eles nós estamos aqui só para trabalhar. Não servimos para mostrar o país, não servimos para ser ministros, não servimos para ser presidentes, porque Portugal tem que ser branco. Nós, negros, temos de estar atentos a isso, e não deixar a cabeça cair em enganos”.

À letra das próprias recomendações, Ilda cuida da mente como quem gere uma biblioteca.  Sem desmerecer o lugar “bom” do coração, a cantora defende que “a nossa cabeça é o nosso mundo, porque guarda tudo, tem ferramentas lá dentro, uma espécie de motor”.

Atenta a esse funcionamento, a cantora faz da memória um bem maior, e da saúde mental uma riqueza. Por isso, da mesma forma que encontrou na música uma via para processar vivências dolorosas, e transformá-las em mensagens, Ilda quer contribuir para que mais mulheres africanas descubram a sua força de libertação.

“Há muitas senhoras que têm muito para falar, pessoas da minha idade, com muitas histórias para contar. Mas ficam travadas, às vezes com medo e vergonha, e não mostram a capacidade que têm. Estão a adoecer com depressão. Eu quero estar com elas, e apoiar.”

Os planos passam pela criação de um espaço de mulheres, onde mais novas e mais velhas se possam encontrar, entreajudar e crescer juntas. Unidas para que até o choro que partilhamos seja “de futuro e de esperança”.

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