HISTÓRIAS

Perfil, Vidas Negras Paula Cardoso Perfil, Vidas Negras Paula Cardoso

O livro da vida de Ilda escreve-se com música, para virar páginas de dor

A canção "África" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.

A canção "Áfrika" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.

As letras soltam-se em momentos de confronto e adversidade. “Quando estou chateada, a única libertação é a música”, conta Ilda Vaz, desde a infância habituada a transformar os desafios da vida em melodias.

Nascida em Cabo Verde há 57 anos, a fundadora do grupo Batukaderas Bandeirinha Panafrikanista Di Lisboa, recorda, sem uma nota de hesitação, o momento em que trauteou o primeiro tema.

“Tinha três anos, e estávamos no barco que nos levou para São Tomé e Príncipe”, diz, colando flashes do que viveu a um extenso arquivo de memórias maternas.

“Cresci a ouvir esta história: de uma senhora que foi mãe durante essa viagem, morreu e foi atirada para o fundo do mar. Depois entregaram a bebé à irmã, para criar. Disseram que essa menina se chamava Ana Mafalda”.

Estávamos em 1969, Ilda era ainda muito pequena para registar o episódio com tanto detalhe, mas, garante, todas as emoções que acompanharam a saída de Cabo Verde ficaram-lhe gravadas.

Assim que entrou no barco, por exemplo, a sensação de despertença impôs-se. “Isto é estranho. Aqui não é a nossa casa”, recorda-se de ter sentido, puxando para a conversa com o Afrolink não apenas as impressões, mas também algumas descrições.

“Lembro-me da rua onde vivíamos, de um cão, de uma vaca que era preta e branca, e de um caminho estreito que fizemos até entrar num carro, que nos levou à cidade da Praia”.

Naquela altura, São Tomé e Príncipe parecia oferecer um destino melhor para a família, mas entre a promessa de uma vida digna, lavrada em contrato, e a realidade do dia-a-dia, Ilda relata um contínuo de violência.

“Percebi, depois, que aquele era um barco de escravatura”, sublinha, de volta a um capítulo de vida carregado de humilhações e abusos.

“A minha mãe trabalhava na mata do cacau, parida de um mês, com o bebé nas costas, debaixo de chuva. Trabalhava doente”, denuncia, acrescentando que se hoje mal fala português é porque nem os contratados tinham direitos laborais, nem os filhos tinham acesso à educação.

“Depois do 25 de Abril, é que começa a haver isso de ir para a escola, mas também não era para todos”, contrapõe, enquanto revisita episódios de profunda dor. “Tenho muita coisa para contar, coisa de dar nervos mesmo!”, aponta esta trabalhadora do serviço doméstico, sem nunca perder a sintonia do amor.

“Canto para ajudar o nosso povo, o povo de África a ter coragem, a lutar sem odiar, porque o nosso caminho não é de ódio”.

Áfrika, a música de todos

Com a voz projectada sobre a dor das experiências que vive individualmente e que vivemos colectivamente – nomeadamente de racismo –, Ilda vê na música um canal de conhecimento e reconhecimento.

“Como não estudei, a única forma de fazer um livro é a cantar”, nota, sem mãos a medir para o tanto que importa musicar.

Começou por “Áfrika”, o seu tema de estreia, apresentado no final do Verão, e entoado a partir de uma agressão racista sofrida há cerca de 10 anos.

“Trabalhava numa farmácia, e um dia entrou um senhor com um cão grande, todo negro. Eu estava ali a limpar, e o homem olhou para mim com um ódio tão grande, que disse assim para a minha patroa: ‘Olha, tira essa preta daí porque o meu cão não gosta de pretos’. Eu ouvi, mas fingi que não estava a entender, e fiquei em silêncio, quieta”.

Sem tempo para digerir o ataque, Ilda confrontou-se com uma nova agressão: recebeu ordens para se remeter ao piso inferior, e de só voltar a subir quando o cliente saísse, não fosse o animal ficar agitado.

“Perguntei logo: será que é o cão que não gosta de mim, ou é o dono?”.

Para a dona da farmácia não fazia diferença, porque, conforme fez questão de sublinhar, enquanto dava a ordem de clausura, não iria perder um cliente por causa dela. Que é como quem diz, por causa de “uma preta”.

Ilda explodiu em lágrimas, mas, uma a uma, todas foram secando à medida que a letra “Áfrika” se compunha dentro de si. “Dei esse nome porque é música para todos e todas. Para a gente ficar com a vista mais aberta”, explica, visibilizando e vocalizando atenções para a necessidade de um combate anti-racista.

Ao mesmo tempo, “Áfrika” sobressai como uma fonte de energia renovável. “Tenho a minha mãe, que não está bem de saúde, a viver comigo, tenho oito horas de trabalho diárias, tenho as actividades das batukaderas, tenho a casa para arrumar, comida para fazer e, cada vez que não sei como faço tudo isso, fico ainda mais forte”.

Música contra discriminações

Casada há 34 anos, recém-comemorados, e mãe de três, Ilda esbarra numa série de desafios ao seu processo criativo. A começar pela gestão do quotidiano doméstico.

“Eu passo muito mal para fazer letras aqui em casa”, exemplifica, partilhando, entre risos, uma reclamação habitual.  “Dizem que sou muito barulhenta, que toda hora estou a cantar. Mas quando a gente gosta a gente não se enerva”.

Mais do que gostar de soltar a voz, a batukadera destaca o efeito catártico das letras surgem a cada trauma, como aquele que traz da infância em São Tomé e Príncipe.

Além da consciência precoce de exploração trabalhista, que massacrou a vida dos pais, a compositora percebeu muito cedo como a pele negra é tratada como “um defeito”.

“Um dia estava a brincar à porta de uma senhora branca, portuguesa, mulher do feitor da roça. Eu era moça pequenininha, a crescer, e ela saiu na janela e insultou-me. Foi tão…”, as palavras falham diante da desumana lembrança, antes de prosseguirmos com a conversa.

“Isso ainda está comigo, e vai ficar. Ela disse: ‘Sua preta, sai daí, vai para a sanzala, canalha, suja, preta do c******.”

Incapaz de entender tamanha violência, a pequena Ilda deu por si a reparar: “Mas eu não estou suja”!.

Ainda com cada um e todos aqueles insultos agarrados à pele, a cabo-verdiana fez deles música.

“O que sinto, o que vejo, o que eu passo todos os dias nas limpezas, e o que os meus irmãos passam, tudo isso está nas minhas letras”, nota, libertando, através das composições, o peso de múltiplas discriminações.

Frente feminina

Desde 1996 em PortugaI, destino de tratamentos médicos do marido – que veio para fazer hemodiálise –, Ilda não esconde o cúmulo de desencantos: “Olha, o negro nunca é bem-vindo para a raça branca. Nunca, nunca, nunca”, insiste, alertando para alguns cuidados a ter.

“A maior parte da nossa raça negra está a entrar num portão que não é nosso. Então eu digo: entra para entender, para perceber, para estudar, mas nunca esquece que, no espírito deles, você não pertence. Por isso, deixa uma fuga para sair, e para outros irmãos entrarem”.

Calejada em episódios racistas, a batucadeira reforça os alertas. “Para eles nós estamos aqui só para trabalhar. Não servimos para mostrar o país, não servimos para ser ministros, não servimos para ser presidentes, porque Portugal tem que ser branco. Nós, negros, temos de estar atentos a isso, e não deixar a cabeça cair em enganos”.

À letra das próprias recomendações, Ilda cuida da mente como quem gere uma biblioteca.  Sem desmerecer o lugar “bom” do coração, a cantora defende que “a nossa cabeça é o nosso mundo, porque guarda tudo, tem ferramentas lá dentro, uma espécie de motor”.

Atenta a esse funcionamento, a cantora faz da memória um bem maior, e da saúde mental uma riqueza. Por isso, da mesma forma que encontrou na música uma via para processar vivências dolorosas, e transformá-las em mensagens, Ilda quer contribuir para que mais mulheres africanas descubram a sua força de libertação.

“Há muitas senhoras que têm muito para falar, pessoas da minha idade, com muitas histórias para contar. Mas ficam travadas, às vezes com medo e vergonha, e não mostram a capacidade que têm. Estão a adoecer com depressão. Eu quero estar com elas, e apoiar.”

Os planos passam pela criação de um espaço de mulheres, onde mais novas e mais velhas se possam encontrar, entreajudar e crescer juntas. Unidas para que até o choro que partilhamos seja “de futuro e de esperança”.

Leia mais
Reportagem, Vidas Negras Paula Cardoso Reportagem, Vidas Negras Paula Cardoso

“Mataram o Dá!” – no grito de Mónica cabem 23 anos de amor: “E agora?”

A narrativa repete-se nas notícias: sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática”, e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não têm sequer o direito de gozar do estatuto de vítimas. Pelo contrário, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter. Aconteceu novamente com Odair Moniz, ou simplesmente Dá, atingido mortalmente no tórax e axila por disparos de um agente da PSP. O Afrolink falou com a viúva, Ana Patrícia Moniz, mais conhecida por Mónica, e é guiados pelo seu olhar que aqui estamos.

A narrativa repete-se nas notícias: sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática”, e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não têm sequer o direito de gozar do estatuto de vítimas. Pelo contrário, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter. Aconteceu novamente com Odair Moniz, ou simplesmente Dá, atingido mortalmente no tórax e axila por disparos de um agente da PSP. O Afrolink falou com a viúva, Ana Patrícia Moniz, mais conhecida por Mónica, e é guiados pelo seu olhar que aqui estamos.

Altar de homenagem a Odair, na casa onde vivia

As contas embrulham-se numa matemática de vida que, a partir de agora, parece condenada a não bater certo, enredada num problema sem solução: a morte. “Tinha 13 anos quando nos conhecemos”, recorda Ana Patrícia Moniz, de seu nominho Mónica, recuando a história aos tempos do bairro 6 de Maio.

Foi aí que ela e Odair Moniz se cruzaram, apaixonaram-se, e nunca mais se largaram.  “Casámos em 2008, de papel passado mesmo”, conta a viúva de Odair, ou simplesmente Dá, nome que, desde o início da semana, engrossa a já longa lista de vítimas de violência policial racista em Portugal.

“Eu conheço-o tão bem, tão bem...Cada um com o seu feitio, crescemos juntos, a cada passo, a cada momento bom ou mau”, sublinha ao Afrolink, assinalando que nos seus 36 anos de vida não encontra memórias relevantes sem o seu Dá. Não estranha, por isso, que encontremos Odair tatuado na sua pele.

Juntos construíram 23 anos de história, ligação aprofundada com o nascimento de dois filhos, um de 20 anos e outro de três, núcleo alargado à criação de uma sobrinha.

O legado de amor, visível nas fotografias que povoam o apartamento, situado no bairro do Zambujal, acompanhou Dá até à curva final.

“A senhora é que é a Mónica? Ele estava a chamá-la”. Assim, sem mais, um dos agentes policiais que, na Rua Principal da Cova da Moura, garantia a distância entre os moradores e o local onde Odair foi mortalmente baleado, despachava a conversa.

Pouco passava das seis da manhã, e, no momento dessa troca de palavras, a hair stylist ainda tinha esperança de encontrar e falar com o marido. “Foi o meu filho que me chamou: disse, ‘Mãe, levanta, há alguma coisa com o pai lá na Cova’”.

A morada da morte

De passo acelerado, aos poucos, muito longe de se imaginar viúva, Mónica começou a despertar para a tragédia. Ainda não sabia que Odair tinha sido baleado no tórax e axila, por um agente da PSP, mas, ao perceber para onde tinha sido levado, confrontou-se com o peso da morte.

“O Hospital Amadora-Sintra está ali perto, por isso pensei logo: se foi para o São Francisco Xavier é por causa da morgue”.

A rapidez do raciocínio é perturbadora, por evidenciar um contínuo de perdas.

Quantas delas aconteceram em circunstâncias que levantam suspeitas sobre a actuação policial? Como continuar a dar o benefício da dúvida às autoridades, quando os indícios de abusos se sucedem, e, com eles, a construção de narrativas que criminalizam comunidades e bairros inteiros?

“Eu não sou o dono da verdade, mas o Dá é a pessoa mais calma que eu posso apontar, a pessoa certa para apaziguar certos problemas. Mas os senhores agentes acharam que não, que estava exaltado. Não sei…”.

O testemunho chega-nos de um morador do Zambujal, e rompe um extenso muro de silêncio, erguido como protecção contra a manipulação e instrumentalização – pelos media e políticos – dos discursos que saem do bairro, enlutado desde que a chocante notícia da morte de Odair começou a circular.

“Já mataram um, querem matar outro?”

Nascido na cidade cabo-verdiana da Praia, há 43 anos, Dá veio para Portugal na adolescência. “Vivia na Achada Grande”, recorda Mónica, enquanto segura uma fotografia antiga do marido, transformada numa espécie de portal para boas memórias.

“Dizem coisas sem sentido…que encontraram o Dá com uma faca na mão. O meu marido não é um homem de faca. Ele não anda com faca. Tenho a certeza. Ele não tinha nada porque é uma pessoa pacífica, não de guerra”.

A voz de Mónica vai e vem, enrouquecida e entrecortada pelo som lancinante do choro que vem da sala, onde, horas depois desta conversa com o Afrolink, na terça-feira, 22, novos gritos da família chegam-nos por mensagem.

“A PSP invadiu a casa por volta das 20h. Arrombaram a porta, e, ao mesmo tempo, apontaram uma arma à Mónica, ao irmão e à irmã, e agrediram duas pessoas lá dentro que os confrontaram com o porquê dessa atrocidade. Só pararam com os gritos: “Já mataram um. Querem matar outro?”. 

O relato de violência acentua a revolta que se instalou no Zambujal e na Cova da Moura, e que, nos últimos dias, se propagou a vários outros bairros da Área Metropolitana de Lisboa. À medida que os protestos avançam, e as distorções noticiosas se avolumam, os apelos aos registos audiovisuais aumentam.

“Ninguém gravou [o arrombamento da polícia] porque estavam todos em choque, incrédulos mesmo”, conta-nos uma amiga da família, acrescentando que cerca de uma hora depois da primeira investida, os agentes regressaram.

“Aí já estava uma advogada, que os confrontou”, assinala, enquanto insiste no poder das gravações. “Precisamos de provas de tudo”.

“Precisamos de provas de tudo”

Sem vídeos, será que a PSP teria mantido, em comunicado, as primeiras declarações feitas à comunicação social, de que Odair seguia numa viatura roubada quando foi interpelado pelos agentes?

“Precisamos de provas de tudo”, repete a amiga dos Moniz, antes de partilhar mais um episódio de indignidade policial. “A Mónica foi à Judiciária hoje [quarta-feira, 23] e trataram-na muito mal. Ela diz que se sentiu mal, pediu um copo com água, e responderam que, se quisesse, fosse à casa de banho beber, porque só havia água no piso de baixo”.

Os focos de desumanização, em que o luto por Dá é sucessivamente desrespeitado, não estão circunscritos à actuação das forças de segurança.

Pelo contrário, são disseminados por discursos políticos e narrativas noticiosas inflamadas, em que, sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática” e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não gozam sequer do estatuto de vítimas. Em vez disso, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter.

Odair, que trabalhava como cozinheiro e, há cerca de sete meses, partilhava com Mónica a gestão de um café no Zambujal, foi rapidamente rotulado de “criminoso”, e a sua morte apontada como exemplo de boas práticas policiais.

“Porque é que não parou?”, “Porque é que resistiu?”, “Porque é que andava ali àquela hora?”. Em diferentes versões, entre comentários nas televisões e nos jornais, e reacções nas redes sociais, acicatadas por responsáveis políticos, o veredicto do julgamento público é profundamente incriminatório e dispensa argumentos de defesa.

Afinal, percebe-se entre ocupações de espaço mediático, se há alguém nesta história digno do benefício da dúvida, só pode mesmo ser o polícia, porventura um “português de bem”. 

A última cachupa

Já Odair, esse, não passa, aos olhos de quem o condena, de um “bandido que teve o que mereceu”. Menos um negro da ‘cor da ameaça’. Mais uma pessoa violentamente arrancada dos filhos, mulher, amigos e comunidade.

“Estávamos a sair da música ao vivo, e o Dá tinha ido ao café, no Zambujal, buscar cachupa para os miúdos. Ele estava a voltar para a Cova para comerem todos juntos, quando se cruzou com a Polícia. Eles dizem que o mandaram parar, e que ele não obedeceu. Mesmo que isso seja verdade, é suficiente para matar uma pessoa? Ainda por cima desarmada? Como é que um agente treinado dispara assim, logo para a barriga, em vez de apontar para a perna?”.

As perguntas, colocadas por várias pessoas, num entrelaçado de conversas paralelas, permanecem sem respostas, agravando a desconfiança instalada entre moradores e Polícia.

“E agora?”, inquieta-se Mónica, atordoada pela dor de uma certeza tão aberrante quanto dilacerante: “Mataram o Dá!”.

Leia mais
Reportagem, Vidas Negras Paula Cardoso Reportagem, Vidas Negras Paula Cardoso

Fronteiras que condenam: “Fui segregado dentro do meu país”

O passeio “Noz Stória”, conduzido por José Baessa de Pina, ou simplesmente Sinho, guia-nos por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”. Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência. Contra tudo e contra todos, “aqui houve felicidade”.

O passeio “Noz Stória”, conduzido por José Baessa de Pina, ou simplesmente Sinho, guia-nos por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”. Neles cabem festas que celebram rituais e identidades que o colonialismo criminalizou e a polícia continua a reprimir, e também o acolhimento de todas as pessoas, a determinada altura da história, povoado de hordas de filhos de famílias brancas e privilegiadas, expulsos de casa entre percursos de toxicodependência. Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência. Contra tudo e contra todos, “aqui houve felicidade”.

Sinho, o anfitrião do “Noz Stória”

Duas crianças morreram num incêndio, que escancarou a precariedade habitacional em que viviam. Nada mudou. Famílias inteiras perderam tudo com o avanço de cheias, especialmente impiedosas diante da fragilidade infra-estrutural. Nada mudou.

Só quando o negócio das construções rodoviárias se começou a movimentar em redor das Portas de Benfica, é que a realidade nos bairros de auto-construção ali à volta mudou.

O mapa da transformação – em que transacções de asfalto e betão pesaram e continuam a pesar mais do que as pessoas –, traça-se a partir dos passos de José Baessa de Pina, que seguimos durante o passeio “Noz Stória”.

Nesse percurso, construído a partir de memórias individuais e colectivas, Sinho, como o conhecemos, reconstitui caminhos de comunidades desfeitas. Vividas na sua pluralidade – de nacionalidades africanas e de etnias –, e recordadas pela sua força colectiva, bem visível no álbum de fotografias expandido à medida que a rota avança.

“Aqui houve felicidade”, aponta o outrora morador do bairro das Fontainhas, enquanto nos guia por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”.

Neles cabem festas que celebram rituais e identidades que o colonialismo criminalizou e a polícia continua a reprimir, e também o acolhimento de todas as pessoas, a determinada altura da história, povoado de filhos de famílias brancas e privilegiadas, expulsos de casa entre percursos de toxicodependência.

Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência. 

Exclusão

“Eu fui segregado dentro do meu país. Não é nada inocente”, sublinha Sinho, que encontra nas políticas públicas várias fontes de exclusão.

Por exemplo, nota o anfitrião do “Noz Stória”, o desempenho dos alunos é fortemente influenciado pela escola em que andam, numa demarcação territorial que continua a condenar crianças ao insucesso e abandono precoce dos estudos.

O impacto dessas fronteiras está amplamente reconhecido, por isso, para garantir aos filhos uma educação melhor, há trabalhadoras domésticas que dão a morada dos patrões, explica Sinho, lembrando que a prática – longe de revelar o eventual altruísmo das chefias – acentua relações de dependência. Uma espécie de inversão da dívida histórica, instalada na Escravatura, reforçada no colonialismo, com a violência dos trabalhos forçados dos contratados de São Tomé e Príncipe, e ainda hoje evidente na exploração extractivista do capitalismo, especialmente dura sobre os corpos negros.

“Se essa facilidade [da morada] existe para essas mães trabalhadoras é porque precisam delas com estabilidade”, atira o guia da nossa história, enquanto aproveita para destacar o papel provedor das mulheres nas nossas comunidades.

Foi, por exemplo, graças à sua mãe, e em particular ao amor que sempre recebeu dela, que Sinho não se deixou correr pela raiva e revolta que acompanharam múltiplos episódios de violência racista – tantas vezes indutores de trauma.

“Às vezes, o que safava os nossos pais da intervenção bruta da polícia militar, quando eram parados para entrar no bairro, era o cartão da obra”, assinala, sem esquecer um velho temor. “E se batem na minha mãe?”.

Essas e outras memórias marcam o ritmo do passeio, iniciado nas Portas de Benfica e encerrado diante das marcas do que outrora foi o bairro Estrela D’ África.

Para trás ficaram vestígios das Fontainhas e do Bairro 6 de Maio, atravessados por recordações de rupturas tão abruptas quanto terminais.

Pertença

“Ali, a Dona Rosa e o Tio João tinham porcos, leitões, galinhas, figueiras, e estavam habituados a ir e vir do poço. Depois do realojamento, bastou 1 ano e 30 dias para os dois desaparecerem”.

A lembrança de morte é partilhada por Delson Alexandre, que, tal como Sinho, cresceu entre bairros de auto-construção, entretanto engolidos pelo asfalto.

“Costumo dizer que São Tomé e Príncipe é o meu berço, e esta é a minha casa. O lugar onde quero estar, e onde me sinto bem”, diz Delson ao Afrolink, apressando-se nas distinções. “Quando falo de casa, não estou a falar de Portugal ou de Lisboa, mas sim da Linha de Sintra, da Damaia, do Bairro do Zambujal, da Cova da Moura, da minha Reboleira, da Amadora…a minha Porcalhota”.

O sentimento de pertença e o sentido de comunidade enraizados no passado perduram até hoje, garante Delson, que conserva as antigas relações de vizinhança como quem preserva as mais valiosas ligações familiares.

Muitos, porém, como a Dona Rosa e o Tio João, acabaram por sucumbir à tristeza de uma mudança indesejada.

“Os laços de solidariedade foram quebrados”, comenta Sinho, que responsabiliza o Estado por uma política de abandono.

“Tinha de haver outra solução, outro tipo de realojamento”, defende, recordando as dificuldades de ajuste que sentiu quando, aos 22 anos, se viu obrigado a trocar a morada de toda a vida pelo Casal da Boba.

“Mesmo depois de termos a chave, preferia dormir entre os vários barulhos estranhos das Fontainhas”.

Denúncia

Desperto para cada barreira que foi encontrando, e continua a encontrar, o criador do “Noz Stória”, nascido em 1976 na Maternidade Dona Estefânia, em Lisboa, traça as suas próprias fronteiras: “Não somos pobres, somos empobrecidos”.

Filho de descendentes de cabo-verdianos emigrantes, Sinho defende igualmente que é importante “saber de onde viemos, com os pés no chão”, mas ao mesmo, “sempre almejar mais”. O líder associativo acrescenta ainda que não nos podemos “esquecer da denúncia para a elaboração de políticas de reparação”, dispositivos “de que precisamos urgentemente, para colmatar 50 anos de segregação”.

Desde logo, assinala o nosso guia, importa questionar: “Como dizem que a entrada dos imigrantes é descontrolada, se sempre foi bem controlada?”. Afinal, vemo-la abrir e fechar, à medida dos caprichos do sistema, que põe e dispõe de pessoas como quem manuseia utensílios de produção.

Aliás, as memórias recuam até episódios recorrentes de abuso da polícia municipal que, aproveitando-se de quem, nas ruas, encontrava o seu ganha-pão com a venda de pescado, resolvia ali as necessidades domésticas de peixe.

Violências somadas e multiplicadas, meio século vivido desde a Revolução dos Cravos, Sinho questiona que liberdade existe nas periferias negras, asfixiadas por programas de realojamento que são também de policiamento?

“O sistema sabota a nossa cultura”, considera, dando como exemplo os horários de celebração dos Santos Populares até às 2h, em contraponto com as restrições das festividades dentro da comunidade, silenciadas muito antes da meia-noite.

“A música é uma via de pertença que tem sido travada”, assinala o guia do “Noz Stória”, partilhando outro aspecto da sua identidade precocemente reprimido.

“Eu sinto em crioulo, respiro, penso…e até isso é bloqueado”, adianta, de volta aos bancos de escola, carregados de práticas coloniais.

É também para a Educação aí que se dirige o olhar crítico de Aleksandra Augustynowicz, uma das pessoas no encalço das direcções de Sinho. Há oito anos em Portugal, esta polaca de 29 anos, defende a “importância de consciencializar as pessoas para os factos históricos” que o ensino continua a mascarar.  “O que podemos esperar se apenas aprendemos a partir de livros escritos pelos colonizadores?”.

A nossa História não é essa, perdida num labirinto de ficções romantizadas. “Noz Stória” retira-nos daí, e dá-nos caminho para andar. Aproveitemos!

Leia mais