Que Moçambique é este? Sem medo da morte, com a revolução dos 20% 

Em Maputo, Cídia Chissungo desdobra-se entre colectivos, num esforço de concertação activista que, a cada manifestação, mobiliza canais de denúncia e redes de apoio a vítimas de detenções arbitrárias, e violentas cargas policiais. Em Lisboa, Gilana Sousa, com o projecto Quid Iuris – Associação, e Nelson Melo, em nome individual, são os precursores das primeiras marchas pacíficas contra a violação dos Direitos Humanos em Moçambique, entretanto alargadas a outras cidades portuguesas, com outros dinamizadores. Jovens, moçambicanos, e defensores de uma sociedade democrática e justa, todos vêem nas ruas uma plataforma de pressão política, especialmente activa na sequência das alegações de fraude eleitoral, apresentadas na ressaca da votação de 9 de Outubro, marcada pela forte repressão das autoridades, e pelo assassinato de duas figuras da oposição – Elvino Dias e Paulo Guambe. Presente num dos protestos de Lisboa, o Afrolink recolheu os testemunhos dos manifestantes, e também ouviu a contestação que chega de Maputo.

As palavras de ordem, exibidas em cartazes improvisados, dão expressão à crescente revolta popular. “Não à fraude eleitoral”, lemos de um lado da manifestação, enquanto do outro encontramos várias mensagens de oposição ao Governo “assassino” e “mentiroso” de Moçambique.

Em Lisboa, a exemplo do que vem acontecendo noutras cidades da diáspora moçambicana, os protestos contestam os resultados das eleições de 9 de Outubro, e exigem uma viragem na condução dos destinos do país.

 “O poder das pessoas é mais forte do que as pessoas no poder”, lembra Susana Cunhete, uma das pessoas que se juntaram à marcha pacífica organizada por Nelson Melo, no passado dia 7 de novembro.

Estudante do terceiro ano do curso superior de Economia, a maputense de 22 anos confia numa mudança política, forçada a partir das ruas. “Um povo unido faz a diferença”, repete, poucos metros depois da saída da Embaixada de Moçambique, ponto de concentração e de partida para a Praça do Comércio.

É aqui que, depois de um percurso em passo acelerado, num ritmo de quem não tem tempo a perder, dezenas de manifestantes exigem Justiça, e reclamam o poder. “Este país é nosso”, grita um dos cartazes que povoam a marcha, lado a lado com outro que reforça o repto popular: “Devolvam a nossa bela pátria”.

O amor a Moçambique proclama-se mais alto, e, entre declarações de rejeição da FRELIMO – o partido que governa o país desde a Independência –, um nome sobressai: Venâncio Mondlane.

“É uma marcha apartidária, mas como pode ouvir, há quem tenha as suas preferências. É normal”, defende Nelson Melo, responsável pelo protesto que antecedeu a denominada quarta fase dos protestos.

Demarcando-se de outras vozes, que expressam total devoção ao candidato presidencial do PODEMOS – força política que contesta os primeiros resultados eleitorais, que lhe dão cerca de 20% dos votos, contra 70% da FRELIMO –, o empresário de 27 anos, há três baseado em Portugal, sublinha que Venâncio é um produto das circunstâncias.

“Nós pegamos em algo que já sentimos há muitos anos. Estamos aqui porque queremos uma mudança, porque percebemos que as coisas não podem continuar do mesmo jeito”, diz o moçambicano, que vê na principal figura da oposição uma peça ao serviço de uma necessária viragem.

“O Venâncio não começou nada, ele aproveitou o momento, e nós aproveitamo-nos dele ainda mais”.

Profundamente activo nas redes sociais – o púlpito de onde mobiliza a população, lançando convocatórias de greve, manifestações e protestos simbólicos –, aquele que muitos nas ruas apelidam de “nosso Presidente”, não se poupa a demonstrações de força e popularidade.

Do panelanço ao luto

A mais recente, que terminou hoje, 22, incluiu o decretar de três dias de luto nacional, “pelos mártires da revolução das panelas”.

A referência fixa atenções num dos marcos da contestação pós-eleitoral: o apelo de Venâncio para que, num contínuo de contestação, os moçambicanos demonstrassem a sua insatisfação com o bater de tachos.

O chamado “panelanço” persiste, e em linha com ele, a presença nas ruas, duramente reprimida pelas autoridades. Além de acusações de detenções arbitrárias e fortes cargas policiais, sucedem-se os relatos de execuções à lei da bala, que números desencontrados situam na casa das dezenas.

“Não é de qualquer maneira que morrem 50 pessoas e a sociedade fica impávida e serena”, assinala Venâncio, numa das inúmeras mensagens que dirige aos seus seguidores, em directo, a partir da sua conta no Facebook.

Em protesto, o candidato do PODEMOS exortou a população a “parar todas as viaturas e buzinar em homenagem aos heróis”, por 15 minutos, das 12h às 12h15.

Sem esquecer “os que não têm viaturas”, Venâncio apontou outra forma de luta: “Levantem cartazes, da reposição da verdade eleitoral, nos semáforos, no meio das ruas, como se fossem sinaleiros”.

Atento a estas e outras manobras políticas, Kevin Ribeiro, de 31 anos, não esconde as reservas em relação ao novo protagonista da oposição em Moçambique.

“Será que é a melhor opção? Eu acho que é a única, porque a gente veio de uma altura em que tínhamos o [Afonso] Dhlakama e o David Simango como referências. Primeiro morre o Dhlakama, depois morre o Simango. Nós ficámos sem um refúgio. Então, quando aparece o Venâncio – porque ele já lutava há muitos anos por isso –, quando ele se impôs, claro que a gente viu ali uma alternativa”, contextualiza Kevin, residente em Maputo e, por estes dias, de visita a Portugal.

O exemplo do Brasil e a de Venâncio

Presente na marcha lisboeta de 7 de Novembro, o moçambicano, que trabalha no sector comercial, afasta da sua leitura as crenças salvacionistas que têm galvanizado o candidato do PODEMOS.

“Não é que o Venâncio seja o nosso Deus, mas ele é a chave para a mudança que nós todos queremos. E é o nosso alicerce, basicamente”.

Sem ilusões de um milagre, Kevin traz para a conversa o exemplo do Brasil.

“Posso estar a ser ingénuo, mas acho que daqui para frente a gente se vai começar a politizar, o moçambicano tem de se começar a politizar, como fez o brasileiro, por exemplo”.

Recuando ao “golpe”, que retirou Dilma Rousseff da Presidência e promoveu a ascensão de Temer, Kevin defende que, a partir dessa consciência, a população começou a “mexer-se mais”.

Confiante nesse processo, em que “todos, desde os mais novos ao mais velhos”, se começam a interessar mais por política, o maputense considera que Venâncio está apenas a funcionar como “a virada de chave” para um movimento de emancipação.

 “Não temos de depender dele. A partir de agora, nós todos, os jovens, podemos fazer parte desta história, podemos até criar um partido”.

O impulso de Azagaia

O “abanão” cívico ganha crescente expressão em Moçambique, sublinha a activista Cídia Chissungo, desde o primeiro dia de protesto nas ruas.

“Entender o que está a acontecer hoje sem mencionar o dia 18 de Março de 2023 não faz sentido”, aponta, recuando a uma série de mobilizações na sequência da morte do músico Azagaia, falecido dias antes.

“Eu mesma fiz a lista das acções que deveriam ser realizadas, e a última acção consistia em prestar tributo em público, nas capitais do país, nessa data. Então, juntamente com outros activistas, começamos a nos mobilizar, e nos preparamos para sair à rua, no dia 18 de Março. Acontece que, mesmo tendo submetido todas as cartas a comunicar às autoridades a intenção de realizarmos a homenagem, naquele dia a Polícia atacou de forma brutal os jovens”.

As memórias mancham-se de violência: “A única coisa que os jovens tinham na mão eram cartazes, para se despedirem do seu músico favorito. Mas várias pessoas ficaram feridas e, até hoje, convivemos com dois companheiros que perderam, cada um deles, um olho, por conta daquelas manifestações, porque a Polícia simplesmente começou a disparar gás lacrimogéneo sem nenhuma necessidade. Houve um grande caos, não só em Maputo, mas também em Inhambane, em Nampula, Niassa…e tudo desnecessário”.

Os planos de uma revolução jovem estavam em marcha, reconstitui a activista. “Naquele dia, prometemos que nos iríamos vingar, mas que não iríamos fazer nada até ao dia das autárquicas. Dito e feito, em Outubro de 2023, as pessoas responderam da forma como deveriam responder, e a FRELIMO perdeu, incluindo em Maputo”, diz Cídia, sem ponta de hesitação.

“O Venâncio Mondlane venceu essas eleições. A sociedade civil e vários outros observadores colectaram provas dessa vitória, que a FRELIMO se recusou a aceitar. Então, as pessoas disseram mais uma vez: vamos voltar a cancelar esses dirigentes em Outubro de 2024”.

Cronologia estabelecida, a jovem moçambicana de 28 anos reforça o impacto de Azagaia para a força de sublevação.

“Esta onda toda de ‘precisamos de mudar o país’ começa mesmo em Março de 2023, porque quando Azagaia morre as pessoas começam a escutar as músicas com mais cuidado. A cena do povo tomar o poder, e que não é possível conseguir isso sem consentir sacrifícios, sem fazer greves etc, vai ecoando cada vez mais. Tanto mais que as pessoas que naquele dia 18 de Março tinham a intenção de sair à rua e que não puderam, acabaram formando aquilo que nós chamamos de Geração de 18 de Março”.

Este movimento, explica Cídia, “não tem nenhuma liderança”, mas partilha a vontade de afastar a FRELIMO do poder, “porque não sabe conviver com a liberdade, não consegue nem respeitar as próprias leis que existem no país”.

O peso dos 20%

O mau diagnóstico após quase 50 anos no poder, é reforçado nas palavras de quem ocupa as ruas.

“Todos estamos cansados da injustiça, dos raptos, dos assassínios, e de tudo aquilo que tem havido na fraude eleitoral que nós conseguimos ver”, assinala Nelson Melo, a partir de Lisboa.

Kevin Ribeiro corrobora. “As pessoas saíram de casa para votar, e fizeram filas enormes nas escolas primárias, em que a gente chegava às 10h e ficava até às 14, e 15h, se fosse preciso. Depois no final, tivemos a Comissão Nacional de Eleições a dizer: “Houve algumas anomalias, mas mesmo assim a gente declarou, já o vencedor”. Isso não faz sentido nenhum. A gente quer ver as coisas concretas, a gente quer ver o nosso voto realmente valer. Acho que é principalmente sobre isso. É sobre isso”.

O coro de protestos que se ouve desde a Embaixada de Moçambique em Lisboa, até à Praça do Comércio confirma as alegações de fraude eleitoral.  

“O nosso papel, da diáspora, é dizer ao nosso querido Presidente, Filipe Jacinto Nyusi, que esta é a revolução dos 20%, e de que nós estamos aqui para mostrar que nos tem doído e vai continuar a doer até haver uma mudança”. A voz projectada entre aspas é a de Nelson Melo, firme na oposição, e, ao mesmo tempo, consciente das possibilidades de retaliação.

“Infelizmente tenho familiares que já foram raptados, tenho amigos e conhecidos que já foram raptados e assassinados.  Então, como estamos sempre numa posição de voltar para Moçambique, podemos acabar numa posição de persona non grata.  Sei que o pior pode acontecer, mas nós vamos fazer a nossa parte porque não temos medo, deixámos de ter medo, e vamos continuar a não ter medo”.

A coragem dos que não têm nada a perder ecoa também da voz da advogada Gilana Sousa, que, a 2 de Novembro, organizou, com o projecto Quid Iuris – Associação, a primeira marcha pacífica “contra a violência policial, assassinatos e raptos em Moçambique”, na sequência das convulsões eleitorais.

“Acho que este é um momento em que temos de nos solidarizar. Não é por estarmos em Portugal que as coisas que acontecem em Moçambique já não nos dizem respeito. Nascemos lá, crescemos lá, estamos cá a viver, mas identificamo-nos muito com o nosso país”.

Há uma década em terras lusas, a moçambicana de 26 anos nota que a liberdade de manifestação e expressão contrasta com a pressão familiar.

“Pais e tias ficaram muito preocupados com a minha vida, quando perceberam que estava a organizar uma marcha. Disseram-me: não te metas nisso, não te envolvas”.

O fim do medo

Gilana avançou e, tal todos aqueles que protestam, em Moçambique e na diáspora, não pretende recuar. Isso mesmo demonstram os novos apelos à mobilização: na próxima quinta-feira, 28, a partir das 19h30, decorre a “Vigília dos Mártires Moçambicanos em Lisboa”, em frente à Embaixada.

A proposta, indicam os seus promotores, pretende “honrar e homenagear as corajosas almas que deram as suas vidas” por um país melhor.

“As pessoas estão determinadas a retirar a FRELIMO do poder”, garante Cídia Chissungo, lembrando que a informação que temos hoje favorece a contestação.

 “Esta não é só uma batalha de quem está na rua, é uma batalha de narrativas também, porque as pessoas estão mais do que nunca a ter acesso a uma versão dos factos que no passado não existia. Antes dizia-se às pessoas do Sul que quem estava a matar eram as pessoas da zona Centro e da zona Norte. Esses eram os maus. Então as pessoas da zona Sul sempre se viram na posição de terem de se defender, mas hoje essa retórica acabou”.

Para a activista, tornou-se evidente, para “todo o mundo”, que “o verdadeiro bandido da história actual é a FRELIMO”.

A consciência, defende, reforça a oposição. “O que estou a notar é que quanto mais a repressão aumenta, mais a resistência aumenta. As pessoas perderam o medo de morrer”.

Vigília na Praça do Comércio, em Lisboa

Paula Cardoso

Jornalista, Fundadora da rede Afrolink e Autora da série de livros infantis Força Africana.

https://paulacardoso.pt/
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