HISTÓRIAS

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De boas intenções pode estar o Governo cheio. E as acções?

Sem apresentar medidas concretas para combater o racismo, e em particular a violência policial contra corpos negros, o Governo recebeu, na passada terça-feira, 29, representantes de colectivos da Área Metropolitana de Lisboa que actuam em bairros municipais. O encontro, no qual o Afrolink esteve presente, evidenciou a necessidade de uma articulação entre as instituições públicas e a sociedade civil, apenas pontualmente – e em situações críticas – chamadas a intervir. Os dias que se seguiram à morte de Odair Moniz, às mãos da polícia, tornam igualmente óbvio que a o compromisso e consciência colectivos sobre questões raciais, continua restrito a planos de intenções.

Sem apresentar medidas concretas para combater o racismo, e em particular a violência policial contra corpos negros, o Governo recebeu, na passada terça-feira, 29, representantes de colectivos da Área Metropolitana de Lisboa que actuam em bairros municipais. O encontro, no qual o Afrolink esteve presente, evidenciou a necessidade de uma articulação entre as instituições públicas e a sociedade civil, apenas pontualmente – e em situações críticas – chamadas a intervir. Os dias que se seguiram à morte de Odair Moniz, às mãos da polícia, tornam igualmente óbvio que a o compromisso e consciência colectivos sobre questões raciais, continua restrito a planos de intenções.

Procuro notícias sobre a morte, às mãos da polícia, de Odair Moniz. Neste exercício de pesquisa online, entre artigos de jornal e peças televisivas, encontro suspeitas de falsificação de provas que estarão a ser investigadas pela PJ; uma série de relatos de “distúrbios” e “desacatos” nos “bairros sociais”; declarações do advogado do agente que atirou a matar; descrições de velhas e novas imagens de videovigilância captadas na madrugada fatal; teorias sobre os limites da legítima defesa; e um penoso rosário de intervenções políticas.

De declarações rápidas a pronunciamentos mais longos, confirmo, a partir dessa cobertura noticiosa, que a vida de Odair, violentamente encerrada aos 43 anos, desperta menos comoção do que a destruição de autocarros, carros e caixotes de lixo.

Basta analisar como dirigentes públicos, governantes e líderes partidários não pouparam na veemência na hora de condenar os protestos que se seguiram à violência policial, mas expressaram (aqueles que o fizeram) confrangedora inibição no momento de repudiar a actuação policial que resultou na morte de Odair.

É verdade que lamentaram a tragédia, e garantiram que o caso será adequadamente investigado, mas, acima de tudo, estiveram mais entretidos  a recomendar calma, moderação e tranquilidade, dando lições de ‘civismo’ aos ‘selvagens’ , e esquecendo-se que a revolta dos bairros não surgiu num vácuo.

Porque é que a nossa ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, é peremptória em classificar de “perfeitamente inadmissíveis” o que classifica de “distúrbios” mas, ao referir-se à morte de Odair, não vai além de uma reacção frouxa e conformada, classificando a perda de uma vida irreparável de “infeliz incidente”.

A diferença não é meramente semântica. De um lado temos o que se traduz num assumido e proactivo compromisso de acção: "Tudo faremos para levar aqueles que participaram nestes tumultos à justiça”, garantiu a titular do MAI. Do outro lado, encontramos a contenção do costume, porque – ao contrário do que acontece com propriedade privada incendiada – a violência que vemos acontecer nos bairros de maioria negra nunca é suficiente. 

“A nossa cor é a arma que eles temem”

Exemplo disso mesmo – que me faz abrir aqui um parêntesis – é a reacção da comentadora Maria João Marques diante de um vídeo exibido na SIC Notícias, em que vemos um homem negro ser agredido por dois polícias.

Aos olhos de Maria João Marques (que felizmente se confrontaram com os de Paulo Baldaia), nada há de errado em termos agentes altamente armados a atirar para o chão uma pessoa desarmada, que, segundo se vê nas imagens, faz de tudo para mostrar – despindo-se – que não representa uma ameaça.

Talvez Maria João Marques precise, conforme sugeriu Paulo Baldaia, de viver algo semelhante para avaliar se estamos ou não perante um acto de violência.

Sabemos, contudo, que a pele branca funciona como um escudo de protecção contra esse tipo de abordagens policiais, criminosa e racialmente musculadas.

Pelo contrário, conforme nos lembrava um dos cartazes que, no último sábado, 26, povoaram a Avenida da Liberdade – na marcha de homenagem a Odair Moniz, organizada pelo movimento Vida Justa –, “é impossível estar desarmado quando a nossa cor é a arma que eles temem”.

Neste “eles” não cabem apenas os polícias, mas é sobre eles que, neste caso, importa centrar a discussão. Afinal, é às suas mãos que os nossos homens negros continuam a morrer. E, por mais que tentem normalizar e justificar a violência policial racista, inventando ameaças inexistentes, nós continuaremos a contestá-la sem reservas, algo que o Governo hesita em fazer.

Quando a ministra da Administração Interna se refere à morte de Odair como um “infeliz incidente”, não estará certamente a minimizar a tragédia, mas está, em larga medida, a desresponsabilizar o agente.

“Mandei abrir o inquérito para saber exactamente, em termos exaustivos, o que aconteceu”, anunciou Margarida Blasco na ressaca da morte, escusando-se a apontar o óbvio: mesmo que tivesse de usar a arma – e neste caso os indícios sugerem que não tinha de o fazer –, o agente nunca deveria atirar a matar.

Antes dele, muitos outros que também não o deveriam fazer, fizeram-no, sem que ficássemos a saber o que aconteceu, “em termos exaustivos”, para que, perante tantas evidências de abuso policial e racismo, tivessem sido absolvidos.

Diálogo minado de desconfianças

Como esperar, neste quadro, que haja calma e se aguarde com serenidade o resultado das investigações?

Como confiar numa Justiça que criminaliza o anti-racismo, e transforma vítimas negras em arguidas?

Como dar o benefício da dúvida a um Governo liderado por alguém que, em particular neste contexto, afirma que “não somos um país onde o ódio, as questões raciais tenham uma natureza de preocupação”?

Foi ainda sob o ruído dessa declaração do primeiro-ministro que, na passada terça-feira, 29, o Afrolink se juntou a cerca de 15 representantes de associações e colectivos da Área Metropolitana de Lisboa, numa reunião convocada pelo ministro da Presidência.

Depois de nos guiar pela visão do Executivo para “melhorar as condições da vida concreta das pessoas”, nomeadamente nas áreas  da Segurança, Habitação, Saúde e Educação, António Leitão Amaro garantiu que Luís Montenegro “não disse nem quis dizer” que não há racismo em Portugal.

Das intenções às acções, o encontro, classificado de “exercício de escuta histórico”, demonstrou que não há grande distância entre o que o líder do Governo disse e o que o Executivo faz.

Percebe-se, por exemplo, pelas medidas apresentadas por Leitão Amaro, que a dimensão étnico-racial da violência policial e da exclusão social continua a ser desprezada.

Anunciar a reformulação e melhoria da formação pedagógica das forças de segurança, com ênfase nos Direitos Humanos terá a sua importância nos relatórios, mas, no dia-a-dia, não me parece que os polícias desconheçam a desumanidade de espancar pessoas nas esquadras, interpelá-las violentamente na rua, ou tratá-las à lei da bala.

A questão não se resolve com mais ou menos Direitos Humanos, porque o problema está em termos polícias que não reconhecem as vidas negras como humanas. Portanto, à luz das suas práticas racistas, os Direitos Humanos não se aplicam diante de pessoas negras.

O Governo tem a obrigação de conhecer esta realidade, quanto mais não seja porque a própria Inspecção-Geral da Administração Interna – que Margarida Blasco liderou – investiga esse e outro tipo de processos, incluindo denúncias sobre a infiltração de elementos da extrema-direita nas polícias.

O que é feito desses inquéritos?

Enquanto Leitão Amaro reitera toda a confiança nas forças de segurança, “na lógica do princípio de que actuam para cumprir a regra e o respeito pelos Direitos Humanos”, nós continuamos a morrer. E enquanto o Governo se congratula por estar a ouvir representantes da sociedade civil, nós gostaríamos de o ver a agir contra o racismo.

Sem mas, nem meio mas.

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Uma iniciativa para “libertar Portugal do colonialismo”

“Libertar Portugal do colonialismo: reparação e políticas públicas”. Este foi o mote lançado pelo grupo parlamentar do BE, numa audição que no passado dia 20 de Setembro, juntou pessoas que admiro profundamente. A Belinha, que temos a sorte de nos ver representar em tantas frentes políticas, do associativismo às partidárias; o Miguel de Barros que me faz acreditar mais e mais em presentes partilhados e humanizados, e em futuros sonhados; e o Miguel Vale de Almeida, que me habituei a ler entre crónicas no Público, e a admirar por múltiplos posicionamentos fundamentais, nomeadamente anti-racistas.

“Libertar Portugal do colonialismo: reparação e políticas públicas”. Este foi o mote lançado pelo grupo parlamentar do BE, numa audição que no passado dia 20 de Setembro, juntou pessoas que admiro profundamente. A Belinha, que temos a sorte de nos ver representar em tantas frentes políticas, do associativismo às partidárias; o Miguel de Barros que me faz acreditar mais e mais em presentes partilhados e humanizados, e em futuros sonhados; e o Miguel Vale de Almeida, que me habituei a ler entre crónicas no Público, e a admirar por múltiplos posicionamentos fundamentais, nomeadamente anti-racistas. Para minha felicidade, aconteceu-me também estar ali, e ter 10 minutos para falar sobre "Políticas de Igualdade e direitos cívicos". Como não quis desperdiçar um segundo, escrevi. Convido-vos a ler!

 Políticas de Igualdade e Direitos Cívicos

Começo por enquadrar a minha intervenção: falo antes de mais como pessoa negra e mulher moçambicana, porque foi a partir dessa dupla pertença que percebi, desde muito cedo, aqui em Portugal, que a minha cor de pele e o meu lugar de nascimento faziam de mim não apenas uma criança diferente da maioria que me rodeava, mas alguém visto como inferior e tratado exactamente como tal.

Por isso, antes de qualquer idealização sobre igualdade, fui confrontada com a vivência da desigualdade.

Enquanto crescia, ser igual representava parecer menos negra e menos moçambicana. Portanto, uma rejeição de mim própria.

Talvez venha daí alguma incompatibilidade que adquiri com a palavra igualdade, que sinto como sinónimo de impossibilidade de ser a pessoa que sou.

Proponho, por isso, que comecemos a falar em políticas e práticas de equidade. Uma via que permita olhar para as diferenças que temos, valorizá-las, em vez de continuar a instrumentalizá-las para dividir e excluir pessoas, a pretexto de intenções de integração.

Aliás, importa sublinhar que eu nunca senti necessidade de ser integrada, o que sempre busquei foi o direito a uma vida humanizada, que começa com a garantia de que ser quem sou – pessoa negra e mulher moçambicana – não faz de mim um alvo de ódio, e alguém privado dos mais básicos direitos de cidadania.

Mas é isso que acontece. Mesmo sem dados estatais que nos permitam conhecer estatisticamente a diversidade étnico-racial existente em Portugal, e compreender de que forma a mesma influencia as nossas condições de vida, sabemos que as escolas segregam crianças racializadas; sabemos que os próprios professores encaminham os alunos negros para trajectórias que os mantenham o mais longe possível da universidade; sabemos que a violência obstétrica é maior quando a paciente é negra; sabemos que a justiça legitima o racismo e criminaliza quem o combate; sabemos que a polícia persegue e mata pessoas negras impunemente, e ainda consegue ser louvada pela sua proactividade.

Sabemos porque vivemos esta realidade quotidianamente. Sabemos também porque tudo isto está estudado. O que falta é reparar.

Reparar, por exemplo, a injustiça de uma lei que impede o A. de ter a cidadania portuguesa. O A. é filho de cabo-verdianos, nasceu em Angola em 1973, e, no ano seguinte, a sua família foi forçada a mudar-se para Cabo Verde, tendo perdido toda a documentação quando a casa em que viviam, em Luanda, lhes foi retirada e incendiada.

Há mais de duas décadas em Portugal, o A. tenta há 16 anos obter a nacionalidade portuguesa, mas esbarra numa exigência que o simples bom senso recomenda que seja eliminada: a apresentação do registo criminal do país onde nasceu, documento que apesar de incontáveis diligências, ninguém consegue providenciar.

O mais certo, conhecendo nós a história de guerra civil que Angola viveu, é que os arquivos tenham sido destruídos.

Se tivéssemos políticas e práticas de equidade, o Adriano, e todas as pessoas na mesma situação, gozariam de um regime de excepção.  Bastaria libertar da obrigação de apresentação do registo criminal quem tenha saído dos países colonizados por Portugal ainda menor de idade.

Não o fazer é assumir que nós, pessoas africanas nascemos com cadastro, que somos criminosos até prova em contrário.

Com assumpções como esta, como é que podemos falar de igualdade e de direitos iguais?

Conta-me o Adriano que já gastou milhares de euros no seu processo de cidadania, e que mesmo tendo o título de residente, continua a perder inúmeras oportunidades de trabalho, enquanto profissional freelancer do sector cultural.

Será que alguém nota? E notando, como é que se repara a subtracção de vida, e de vidas?

Falo do caso do Adriano, mas posso falar de muitas outras pessoas negras, nascidas em Portugal, com e sem nacionalidade, e diariamente diminuídas nos seus direitos. 

Conheci e continuo a conhecer vários exemplos, que incluem a normalização e institucionalização de práticas racistas, como a imposição, a pessoas negras, de alisamentos ou cortes de cabelo para que possam trabalhar.

Nas escolas por onde tenho andado, procurando sensibilizar contra todas as formas de discriminação, é comum os alunos relatarem comportamentos e comentários racistas.

Trago, como exemplo, três questões que recolhi em tempos junto de alunos entre os 10 e os 13 anos.

Primeira: “Porque é que, na minha turma, são tão rudes com os estrangeiros?”.

Segunda: “Os professores podem dizer que a nossa forma de falar está errada, quando somos de um país que fala outra língua?”.

Terceira: “Por que relacionam os negros com roubo, fraude e feiura?”.

Muitas perguntas ficam sem resposta por falta de interlocutor, tornando evidente a urgência de uma educação anti-racista.

Com tudo o que sabemos, devemos e podemos fazer melhor enquanto sociedade, mas aquilo que está ao alcance dos cidadãos – por mais activos e comprometidos que sejamos – é muito diferente do que está ao alcance de um partido político, de uma Assembleia da República ou de um Governo.

Se hoje estou aqui a ocupar este lugar, a projectar a minha voz, e a partilhar a minha perspectiva, é porque antes de mim – antes de nós – muitas pessoas negras deram a vida por esta possibilidade.

Se hoje estou aqui a ocupar este lugar é porque sei que as pessoas negras continuam a morrer simplesmente por serem negras. Estou aqui também porque sei que a minha voz, não se substituindo a nenhuma outra voz, representa vozes que continuam a ser silenciadas.

Hoje estou aqui, confiante no poder do diálogo, mas consciente de que falar não basta. Importa actuar sobre os problemas.

Importa garantir não apenas hoje, mas todos os dias, a presença, o pensamento e a acção das pessoas negras nesta casa da democracia, e em todas as esferas da nossa sociedade.

Porque mais do que sermos pontualmente ouvidos, aqui e ali, e depois invariavelmente esquecidos, importa sermos vistos, reconhecidos e acolhidos como pares.

Termino a minha intervenção, saudando uma vez mais cada pessoa presente, e renovando o meu compromisso no combate a todas as formas de discriminação e opressão.

Ao mesmo tempo, desejo que haja coragem política para transformar este momento de auscultação num movimento de mobilização contra o racismo, que seja não apenas afectivo – como tem sido até agora – mas efectivo.

A luta continua, e com unidade a vitória é certa!

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