Televisão a branco e branco
Trabalhei como jornalista durante quase 20 anos, percurso iniciado na revista Visão, continuado no semanário Sol, e expandido a partir da saída para Angola, onde assumi, pela primeira vez, funções de chefia. As novas responsabilidades permitiram-me adicionar à minha assinatura profissional a única secção para a qual, até aí, nunca tinha escrito uma palavra: política. A nacional, entenda-se, porque a minha formação em Relações Internacionais acabou por me direccionar para o acompanhamento da actualidade ‘global’ – que é como quem diz do Norte Global. Faço o enquadramento para assinalar que apesar da minha experiência no jornalismo, nunca consumi tanto comentário político como no último ano e meio. Entre páginas de jornais e canais de televisão, a minha dieta informativa passou a incluir doses generosas de análise e opinião, demasiadas vezes indigestas de tão destemperadas. Cada uma à sua maneira, as diferentes posições que vou encontrando evidenciam que o pensamento que habita o espaço público até pode ter diferentes cores partidárias, mas há uma que sobressai: a da pele branca. Afinal, onde estão os comentadores negros?
Semanalmente, junto-me aos camaradas Nuno Ramos de Almeida e Pedro Tadeu n’ Os Comentadores. É um espaço integrado no AbrilAbril, também acessível via YouTube, e que parte de comentários feitos nas televisões, a que se soma um artigo publicado na imprensa escrita – não forçosamente de opinião.
Estou neste trio há mais de um ano, e, episódio após episódio, fui encontrando o meu lugar num território que, até aí, me era completamente estranho, e que sempre senti que me estava vedado.
Afinal, quantas pessoas negras assinam colunas de opinião política em revistas e jornais? Quantas têm espaço na TV portuguesa?
Vejo que a professora Luísa Semedo resiste nas páginas do Público, depois do afastamento abrupto da socióloga Cristina Roldão, mas não encontro nenhuma outra referência na imprensa escrita.
A ausência acentua-se quando ligo a televisão: à excepção dos programas desportivos, só me deparo com comentadores brancos.
Ressalva: os comentadores negros que aparecem a analisar futebol chegam à televisão já com expressão pública, pelas carreiras que tiveram nos relvados e/ou no comando técnico de equipas.
Sem essa projecção prévia seriam alguma vez considerados?
Foco na categoria “comentadores” porque, em teoria, ela tem subjacente o reconhecimento de intelectualidade, a que corresponde conhecimento, vivência e capacidade de interpretação e análise da actualidade, fundamentais para a construção de pensamento.
Sublinho “em teoria” porque, à luz da prática que tenho acompanhado nos diferentes canais de televisão – exercício que passou a integrar a minha digestão informativa diária por causa d’ Os Comentadores –, essa intelectualidade resume-se, regra geral, a sobranceria, vaidade e apelidos que acumulam privilégios, adornados, aqui e ali, por distinções curriculares que escondem longas cadeias de referenciações. Mas, apregoam eles e elas, o que vale é a meritocracia!
Uma ardilosa invenção segundo a qual, se não temos pessoas negras a comentar a actualidade política – e a ocupar outras posições de visibilidade e influência social –, é por não fazerem o suficiente para chegar lá.
E como quem decide goza do enorme privilégio de poder escolher não ver cores, continuamos a viver num mundo em que a televisão se pensa e vê a branco e branco, e em que a cobertura mediática ignora a presença negra, a menos que sirva para confirmar percepções de identidades.
Não estranha, por isso, que, a dar-se o milagre de nos chamarem para comentar a actualidade num espaço mainstream, o convite esteja invariavelmente amarrado a uma qualquer situação de racismo. O que não deixa de ser sintomático: por um lado, dizem-nos que não vêem cores, e, por outro, não nos conseguem reconhecer para além da nossa negritude.
Esta tem sido a regra, mas esta não tem de continuar a ser a regra. Da mesma forma que se abriu caminho – e bem – à opinião feminina no espaço público, é crucial que se faça o mesmo em relação às pessoas negras e a todas aquelas que continuam invisibilizadas.
Sei que a simples exposição às diferenças humanas não produz, por si só, a aceitação dessas diferenças, contudo, parece-me evidente que sem a desconstrução dos preconceitos associados a essas diferenças, continuaremos a viver numa sociedade de profunda desumanização do “outro”.
Se todos os tipos de pessoas trabalham, pagam impostos, arrendam e compram casas, consomem, constroem famílias, amam, sofrem, pensam, indignam-se, revoltam-se…porque é que na configuração do espaço público português, apenas as pessoas brancas são consideradas na multidimensionalidade humana?
O que sabemos é que a partir dessa subtracção de vidas se multiplicam os olhares de desumanização e a normalização de práticas discriminatórias, cristalizando-se percepções de subalternidade, incivilidade e criminalidade. Mas o que para tantos representa enviesamento, apagamento e silenciamento, continua a ser, aos olhos da branquitude “criadora de todas as causas e coisas”, um bom programa de fortalecimento e entretenimento de poder.
Cabe-nos, por isso, a nós, pessoas racializadas e aliadas, continuar a apresentar outros programas. Conscientes de que a revolução não será televisionada, mas precisa de ser imaginada. À imagem do que nos lembra Jonathan Horstmann, na citação que abre a newsletter desta semana: “A voz negra é forçada a ser imaginativa, caso contrário será silenciada”.
Nós por cá, reiteramos o compromisso de continuar a imaginar.