HISTÓRIAS
Eva Rapdiva - o backlash em dois países e a urgência de falarmos sobre múltipla pertença e legitimidade
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, pós-graduada em Gestão Financeira e mestranda em Desenvolvimento Global, Eva Cruzeiro, popularizada pelo nome artístico Eva Rapdiva, é candidata a deputada pelo Partido Socialista, ocupando a 8.ª posição na lista do círculo eleitoral de Lisboa. A notícia está a desencadear uma onda de contestação, sobre a qual Myriam Taylor, empresária de impacto social, reflecte neste artigo de opinião.
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, pós-graduada em Gestão Financeira e mestranda em Desenvolvimento Global, Eva Cruzeiro, popularizada pelo nome artístico Eva Rapdiva, é candidata a deputada pelo Partido Socialista, ocupando a 8.ª posição na lista do círculo eleitoral de Lisboa. A notícia está a desencadear uma onda de contestação, sobre a qual Myriam Taylor, empresária de impacto social, reflecte neste artigo de opinião.
Texto de Myriam Taylor
A nomeação de Eva Rapdiva para a lista do Partido Socialista às eleições legislativas fez estalar um debate que ultrapassa largamente as fronteiras da política. Assistimos a uma reacção em cadeia — tanto em Portugal como em Angola — que, mais do que qualquer questão partidária, nos convida (ou obriga) a reflectir sobre pertença, identidade e legitimidade.
Eva é, ao mesmo tempo, portuguesa e angolana. Não “meio de cá e meio de lá”. É de cá e de lá, inteira. Afro-europeia, mulher, artista, com uma voz pública forjada na denúncia da injustiça social e racial. E é precisamente essa pluralidade que parece ter incomodado tantos, em dois contextos que, embora distintos, continuam a resistir à ideia de múltiplas identidades coexistirem num mesmo corpo, numa mesma história.
Em Portugal, vimos os ataques de sempre: o questionamento sobre quem tem direito a representar o país. Como se a negritude fosse um corpo estranho à identidade portuguesa, como se o simples facto de Eva existir e falar com autoridade fosse uma afronta à ordem estabelecida. Já em Angola, surgiram críticas num registo diferente, mas igualmente revelador — a ideia de que o envolvimento dela na política portuguesa significaria um afastamento das raízes ou um “esquecimento” da pátria.
Importa recordar, neste contexto, que há alguns anos a então deputada e líder do CDS, Assunção Cristas, mostrou no Parlamento o seu passaporte angolano com orgulho — e esse gesto, embora simbólico, nunca suscitou qualquer tipo de comoção social, muito menos indignação pública. Nenhum debate sobre "dupla lealdade", nenhuma exigência de explicações sobre "a quem serve". O contraste é gritante. E diz muito sobre como a cor da pele e a origem racializada continuam a definir a forma como legitimamos (ou não) a presença de alguém nos espaços de poder.
É curioso (e doloroso) constatar como, mesmo nos espaços que deviam acolher-nos, continuamos a ser desafiadas a “escolher um lado”. Como se a nossa existência tivesse de caber numa única caixa, numa só bandeira, numa só narrativa. Mas nós, filhas da diáspora, somos feitas de muitas camadas. E isso não é uma falha — é uma força.
A reacção à candidatura da Eva mostra-nos como ainda há um longo caminho a percorrer na aceitação da pluralidade identitária. Mas também revela que a sua presença incomoda porque quebra expectativas. Porque desloca o centro. Porque obriga-nos a repensar o que significa ser portuguesa, ser angolana, ser europeia — e quem tem o direito de ocupar os lugares de decisão.
Eva Rapdiva não está “a ser permitida” ocupar um espaço. Está a reclamar, com legitimidade e mérito, um lugar que também é seu. E isso é revolucionário. Não apenas para ela, mas para todas nós que crescemos a ouvir que não era para “gente como nós”.
Que este momento sirva para nos unirmos em torno de algo maior: a construção de uma sociedade que abrace a complexidade das nossas existências. Que reconheça que somos plurais, móveis, e que isso não nos torna menos, mas muito mais.
Eva representa a possibilidade de um novo tempo. E é nosso dever assegurar que essa possibilidade floresça — com coragem, com dignidade e com amor.
Quem tem medo de criminalizar o racismo? Até tu, aliado?
Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus. Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!
Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com as quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus. Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!
Olho para os números que, no início desta semana, me diziam que desde 10 de Dezembro de 2024 – data de formalização da proposta –, cerca de 2.700 pessoas assinaram online a Iniciativa Legislativa Cidadã que prevê a alteração do Código Penal, para que se criminalize o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias.
Comparo os dados com as largas dezenas de milhares de pessoas que, no passado dia 11 de Janeiro, saíram à rua para combater o racismo e a xenofobia, sob o mote “Não nos encostem à parede”. Junto os cerca de 6.000 seguidores desta campanha no Instagram, e constato o óbvio: há uma linha demasiado ténue que separa um aliado da luta anti-racista de um apaniguado do sistema racista.
Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e, repetidamente, a vêem escapar impune.
Importa, por isso, lembrar – uma vez mais e sempre – o papel de um aliado, à luz do que definiu a afroamericana Kayla Reed, pessoa negra e queer, estratega do Movimento pelas Vidas Negras, a partir do qual co-fundou o Projecto pela Justiça Eleitoral.
Desconstruindo a palavra inglesa ally (aliado) letra a letra, a activista aponta quatro acções fundamentais para quem ocupa esse lugar.
Passo a enumerar, e a traduzir:
A - always center the impacted – focar sempre naqueles que sofrem o racismo na pele;
L - listen & learn from those who live in the oppression – ouvir e aprender com aqueles que vivem sob a opressão;
L - leverage your privilegie – colocar o próprio privilégio/poder ao serviço da luta;
Y - yield the floor – ceder o ‘palco’.
Entre “Setenta e Quatro”, “Gerador”, “DN” e “Brasil Já”, publicações onde fui e vou assinando opinião, perdi a conta ao número de vezes em que escrevi sobre pessoas que se afirmam aliadas da luta anti-racista, mas estão sempre voltadas para si próprias; não conseguem ouvir sem retorquir um ‘mas’ e perceber que, por mais empáticas que possam ser, e por muito que sofram discriminações, nomeadamente de género, nunca vão saber o que é estar na pele de uma pessoa negra. Nunca. Da mesma forma, não preciso dos dedos das duas mãos para contar o número de pessoas brancas com quem me cruzei que usam da influência que têm para criar acessos efectivos e quebrar barreiras estruturais.
Cabe aqui fazer uma dupla ressalva: uma coisa é abrir a porta a pessoas negras, outra muito diferente é construir espaços que as acolham. Do mesmo modo, convém prestar atenção ao papel que, quando são ‘integradas’ em estruturas brancas, as pessoas negras ocupam. É-nos reconhecido o direito de pensar e de opinar, quando ele coloca em causa o pensamento e opinião brancos?
A menos que acreditem na ficção do racismo reverso, percebam que pessoas brancas nunca saberão o que é ser alvo de racismo, da mesma forma que pessoas que não menstruam nunca saberão o que são dores menstruais, e pessoas que não engravidam nunca saberão o que é passar por um aborto.
Convém, por isso, ouvir e aprender com quem vive essas realidades, e perceber algo fundamental: se as pessoas que vivem as opressões apontam o caminho para as combater, a única coisa que quem não as vive e se diz aliado tem de fazer é apoiar e seguir sob o seu comando.
É vital entender que as dúvidas e questionamentos individuais – por mais legítimos que sejam – não se podem sobrepor a lutas colectivas que combatem violações de Direitos Humanos, e legislam contra a sua impunidade.
A iniciativa cidadã para criminalizar práticas racistas parte do Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e a Xenofobia, que reúne mais de 80 colectivos “determinados a lutar por um Portugal, uma Europa e um mundo mais inclusivos e interculturais, contra todas as opressões e formas de discriminação”.
Travar o avanço desta proposta é compactuar com o sistema de impunidade, porque sabemos que os casos de racismo raramente são punidos, e, que quando o são, poucas vezes vão além do pagamento de coimas.
Recusar assinar a Iniciativa Legislativa Cidadã de criminalização do racismo não é uma expressão de divergência, é um acto racista.
Porque, conforme explicam ao Afrolink os juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, o que a proposta de alteração ao Código Penal permite é agravar as consequências de práticas já previstas na Lei, para que, por exemplo, agredir pessoas negras– como fez a jornaleira Tânia Laranjo em 2019 com Joacine Katar Moreira e Mamadou Ba –, não seja equiparado à colocação incorrecta de um toldo numa esplanada.
Ignorar que as normas existentes promovem uma cultura de impunidade é próprio de racistas, e de quem não está a focar em quem sofre o racismo na pele. E isso não se resolve com hashtags no Instagram, frases eloquentes, nem rodadas de cachupa.
Televisão a branco e branco
Trabalhei como jornalista durante quase 20 anos, percurso iniciado na revista Visão, continuado no semanário Sol, e expandido a partir da saída para Angola, onde assumi, pela primeira vez, funções de chefia. As novas responsabilidades permitiram-me adicionar à minha assinatura profissional a única secção para a qual, até aí, nunca tinha escrito uma palavra: política. A nacional, entenda-se, porque a minha formação em Relações Internacionais acabou por me direccionar para o acompanhamento da actualidade ‘global’ – que é como quem diz do Norte Global. Faço o enquadramento para assinalar que apesar da minha experiência no jornalismo, nunca consumi tanto comentário político como no último ano e meio. Entre páginas de jornais e canais de televisão, a minha dieta informativa passou a incluir doses generosas de análise e opinião, demasiadas vezes indigestas de tão destemperadas. Cada uma à sua maneira, as diferentes posições que vou encontrando evidenciam que o pensamento que habita o espaço público até pode ter diferentes cores partidárias, mas há uma que sobressai: a da pele branca. Afinal, onde estão os comentadores negros?
Trabalhei como jornalista durante quase 20 anos, percurso iniciado na revista Visão, continuado no semanário Sol, e expandido a partir da saída para Angola, onde assumi, pela primeira vez, funções de chefia. As novas responsabilidades permitiram-me adicionar à minha assinatura profissional a única secção para a qual, até aí, nunca tinha escrito uma palavra: política. A nacional, entenda-se, porque a minha formação em Relações Internacionais acabou por me direccionar para o acompanhamento da actualidade ‘global’ – que é como quem diz do Norte Global. Faço o enquadramento para assinalar que apesar da minha experiência no jornalismo, nunca consumi tanto comentário político como no último ano e meio. Entre páginas de jornais e canais de televisão, a minha dieta informativa passou a incluir doses generosas de análise e opinião, demasiadas vezes indigestas de tão destemperadas. Cada uma à sua maneira, as diferentes posições que vou encontrando evidenciam que o pensamento que habita o espaço público até pode ter diferentes cores partidárias, mas há uma que sobressai: a da pele branca. Afinal, onde estão os comentadores negros?
Semanalmente, junto-me aos camaradas Nuno Ramos de Almeida e Pedro Tadeu n’ Os Comentadores. É um espaço integrado no AbrilAbril, também acessível via YouTube, e que parte de comentários feitos nas televisões, a que se soma um artigo publicado na imprensa escrita – não forçosamente de opinião.
Estou neste trio há mais de um ano, e, episódio após episódio, fui encontrando o meu lugar num território que, até aí, me era completamente estranho, e que sempre senti que me estava vedado.
Afinal, quantas pessoas negras assinam colunas de opinião política em revistas e jornais? Quantas têm espaço na TV portuguesa?
Vejo que a professora Luísa Semedo resiste nas páginas do Público, depois do afastamento abrupto da socióloga Cristina Roldão, mas não encontro nenhuma outra referência na imprensa escrita.
A ausência acentua-se quando ligo a televisão: à excepção dos programas desportivos, só me deparo com comentadores brancos.
Ressalva: os comentadores negros que aparecem a analisar futebol chegam à televisão já com expressão pública, pelas carreiras que tiveram nos relvados e/ou no comando técnico de equipas.
Sem essa projecção prévia seriam alguma vez considerados?
Foco na categoria “comentadores” porque, em teoria, ela tem subjacente o reconhecimento de intelectualidade, a que corresponde conhecimento, vivência e capacidade de interpretação e análise da actualidade, fundamentais para a construção de pensamento.
Sublinho “em teoria” porque, à luz da prática que tenho acompanhado nos diferentes canais de televisão – exercício que passou a integrar a minha digestão informativa diária por causa d’ Os Comentadores –, essa intelectualidade resume-se, regra geral, a sobranceria, vaidade e apelidos que acumulam privilégios, adornados, aqui e ali, por distinções curriculares que escondem longas cadeias de referenciações. Mas, apregoam eles e elas, o que vale é a meritocracia!
Uma ardilosa invenção segundo a qual, se não temos pessoas negras a comentar a actualidade política – e a ocupar outras posições de visibilidade e influência social –, é por não fazerem o suficiente para chegar lá.
E como quem decide goza do enorme privilégio de poder escolher não ver cores, continuamos a viver num mundo em que a televisão se pensa e vê a branco e branco, e em que a cobertura mediática ignora a presença negra, a menos que sirva para confirmar percepções de identidades.
Não estranha, por isso, que, a dar-se o milagre de nos chamarem para comentar a actualidade num espaço mainstream, o convite esteja invariavelmente amarrado a uma qualquer situação de racismo. O que não deixa de ser sintomático: por um lado, dizem-nos que não vêem cores, e, por outro, não nos conseguem reconhecer para além da nossa negritude.
Esta tem sido a regra, mas esta não tem de continuar a ser a regra. Da mesma forma que se abriu caminho – e bem – à opinião feminina no espaço público, é crucial que se faça o mesmo em relação às pessoas negras e a todas aquelas que continuam invisibilizadas.
Sei que a simples exposição às diferenças humanas não produz, por si só, a aceitação dessas diferenças, contudo, parece-me evidente que sem a desconstrução dos preconceitos associados a essas diferenças, continuaremos a viver numa sociedade de profunda desumanização do “outro”.
Se todos os tipos de pessoas trabalham, pagam impostos, arrendam e compram casas, consomem, constroem famílias, amam, sofrem, pensam, indignam-se, revoltam-se…porque é que na configuração do espaço público português, apenas as pessoas brancas são consideradas na multidimensionalidade humana?
O que sabemos é que a partir dessa subtracção de vidas se multiplicam os olhares de desumanização e a normalização de práticas discriminatórias, cristalizando-se percepções de subalternidade, incivilidade e criminalidade. Mas o que para tantos representa enviesamento, apagamento e silenciamento, continua a ser, aos olhos da branquitude “criadora de todas as causas e coisas”, um bom programa de fortalecimento e entretenimento de poder.
Cabe-nos, por isso, a nós, pessoas racializadas e aliadas, continuar a apresentar outros programas. Conscientes de que a revolução não será televisionada, mas precisa de ser imaginada. À imagem do que nos lembra Jonathan Horstmann, na citação que abre a newsletter desta semana: “A voz negra é forçada a ser imaginativa, caso contrário será silenciada”.
Nós por cá, reiteramos o compromisso de continuar a imaginar.