França e Portugal têm “o gosto por África”, por isso devem “inventar” plano para ‘salvá-la’

Chegaram. Invadiram. Saquearam. Mataram. Criaram e engordaram fortunas. Desenvolveram cidades, países e continentes. Forjaram classificações humanas e princípios de universalidade epistémica. Com eles decretaram a sua superioridade moral e intelectual. Mas querem mais, porque nunca estão satisfeitos. Vai daí distribuem instabilidade política – leia-se o que nos conta Luís Bernardo Honwana –, fingem solidariedade internacional, vendem estabilidade militar e continuam donos e senhores de toda a prosperidade económica e financeira. Criminosamente engenhosos, criaram a mentira que inventou o racismo – como bem explica o jornalista e documentarista americano John Biewen nesta TED Talk –, e com ela se vão reinventando e perpetuando no poder. Homens, brancos, privilegiados, tão imbuídos de ‘boa vontade’, e de preocupação com os africanos – negócios africanos, entenda-se –, que não conseguem travar os instintos de ocupação. Jean-Pierre Raffarin faz parte do clube dos ‘declaradamente superiores’, e isso tresanda na entrevista que deu ao Expresso, em que revela os seus planos para salvar África…numa congeminação que estende a Portugal. E, quem mais?

A entrevista já tem um mês, mas continua colonialmente actual. Nela, lemos o ex-primeiro-ministro da França, Jean-Pierre Raffarin, expressar ao melhor estilo de velhos mapas de cor rosa que tem um plano para salvar África de si própria…e do terrorismo.

Cheio do espírito invasor que sedimentou impérios, Raffarin explicou ao Expresso “que é preciso inventar uma cooperação internacional com o continente” africano. “Precisamos de acção multilateral”, disse, à margem da participação na conferência “Que cooperações possíveis entre França e Portugal em África?”, na Nova School of Business & Economics (Nova SBE), em Carcavelos.

Sem maiores cuidados em esconder tiques de outros tempos – afinal, está entre cúmplices de crimes históricos – o antigo chefe do Executivo francês revela, contudo, preocupação em travar leituras que o denunciem.

“Qualquer país que crie um fundo para África é visto como neocolonialista. Só uma estrutura multilateral, que inclua asiáticos, europeus e americanos, será capaz de fornecer aos africanos os meios para o seu desenvolvimento sem dar a impressão de que tudo isto está a ser feito por uma vontade política interessada”.

Agora como antes, a agenda é forjar boas intenções para defender o indefensável: “Se não desenvolvermos África para os africanos, vão aderir a todas as formas de terrorismo”, antecipa um ‘inquieto’ Raffarin. “Hoje o que é perturbador é que seja o terrorismo a criar os empregos de amanhã em África”, prossegue na sua narrativa, em que não refreia os ímpetos coloniais.

“Temos de pensar primeiro no continente. E este pensamento continental significa pensar no século XXII, com milhares de milhões de jovens a chegar, e como vamos gerir esses milhares de milhões de jovens”, aponta, no que parece ser uma referência ao “êxodo silencioso” em curso na França.

O fenómeno foi-nos apresentado no programa “Africa Eye”, da BBC, e surge como resposta ao aumento do racismo em solo gaulês, indissociável da ascensão e normalização da extrema-direita.

Entre o “bem de” e o “gosto por” África

É revelador que, para Raffarin, hoje presidente da Fondation Prospective & Innovation, a saída da juventude negra francesa para África tenha como resultado o seu alistamento no grande ‘consórcio’ terrorista.

Do mesmo modo, comove-me a sua preocupação de “como vamos gerir esses milhares de milhões de jovens”. Vamos? Quem?

O grande pensador tem todas as respostas, insistindo na ideia de um concerto de nações para o conserto de África. “Temos de inventar uma acção multilateral e, para isso, a reflexão franco-portuguesa é essencial. Se os franceses e os portugueses não forem capazes de o fazer, isso quer dizer que esta é uma tarefa impossível”.

A monstruosa sobranceria e desfaçatez é explicada pelo “gosto por África”, que, aparentemente, não é fácil de encontrar por aí.

“Alguns países estão interessados no bem de África, mas não no gosto por África. Nós, portugueses e franceses, temos isso em comum, o gosto por África. Os que trabalharam em África, os que têm raízes africanas amam e interessam-se por África, não apenas por um destino comum. Gostamos das paisagens africanas, das culturas africanas, da luz africana, dos pores do sol africanos. Há muitas coisas que os portugueses e os franceses podem dizer sobre África que outros povos nunca dirão”.

Haja Amor!

Mas o que não pode mesmo faltar é riqueza! “Há 5.000 empresas francesas a ganhar dinheiro em África”, indica, a determinada altura da entrevista, o antigo primeiro-ministro francês, para quem a experiência acumulada no regime colonial “continua a ser muito importante”.

Quem discorda estará, provavelmente, a instrumentalizar a História com intenções políticas. “Estamos convencidos de que as acções passadas de França e Portugal em África foram bem-intencionadas”, ainda que tenham ocorrido “muitos desvios e dificuldades”.

Apesar de declarar que os europeus não devem “tentar dar lições”, nem “tentar impor valores”, aos africanos, Raffarin é um poço sem fundo de recomendações. Segue mais uma para lidarmos com a ferida colonial.

“As gerações que vão governar estão inocentes desse passado, nada têm que ver com ele. E é muito importante que as novas gerações se declarem inocentes do colonialismo”.

A ‘fundamental’ absolvição histórica – em vez da justa e responsabilizante reparação – emerge, no maravilhoso mundo de ficções coloniais, como um pacto de felicidade. Porque, explica Raffarin, “não podemos pensar que a Europa será feliz se África continuar infeliz”.

Ninguém diria, a avaliar pela forma como destratam africanos e afrodescendentes dentro e fora das suas fronteiras, e como não se cansam de espalhar instabilidade para negociar estabilidade.  

Mas, sabemos, o que importa é manter as aparências da Europa civilizadora, em que uns são ameaçadoramente negros e devem ficar de fora – mesmo que supliquem até à morte por uma entrada –, enquanto outros são “lourinhos e de olhos azuis” e, de tão “parecidos connosco”, têm carta branca para entrar, assentar e prosperar.

Paula Cardoso

Jornalista, Fundadora da rede Afrolink e Autora da série de livros infantis Força Africana.

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