HISTÓRIAS

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Golpes de humanidade: a força do boxe contra ódios e preconceitos

De treinos abertos a quem se quiser juntar, Valter Ventura derruba, encontro após encontro, os muros que, fora do “seu” ginásio, desumanizam a sociedade, cada vez mais fechada para a diferença. Contra os discursos e as práticas políticas que impõem fronteiras entre “nós” e “os outros” – e fabricam percepções de insegurança para alimentar narrativas de medo –, o antigo pugilista faz do boxe lugar de pertença, e de novas possibilidades.

De treinos abertos a quem se quiser juntar, Valter Ventura derruba, encontro após encontro, os muros que, fora do “seu” ginásio, desumanizam a sociedade, cada vez mais fechada para a diferença. Contra os discursos e as práticas políticas que impõem fronteiras entre “nós” e “os outros” – e fabricam percepções de insegurança para alimentar narrativas de medo –, o antigo pugilista faz do boxe lugar de pertença, e de novas possibilidades. “A partir do momento em que entram aqui dentro, só há três perguntas, e são iguais para todos: Como é que se chamam, já fizeram algum desporto de combate, têm alguma lesão?”, enumera Valter, em entrevista ao Afrolink. Antes da conversa, e para além dela, acompanhámos um dos três treinos semanais que dá, gratuitamente, em Lisboa. Sempre de punhos cerrados contra exclusões, ódios e preconceitos.

Valter Ventura, num dos treinos, em Lisboa

“Como é que se diz 75 em francês?”. A pergunta interrompe uma série de exercícios, que aquecem e expandem movimentos num ginásio, no centro de Lisboa.

Mais do que demonstrar, com o próprio corpo, a posição que se segue, o treinador Valter Ventura vai calibrando, à medida que o treino de boxe avança, a intensidade e frequência de cada gesto.

“Setenta e cinco? Soixante-quinze!”. A resposta à pergunta do antigo pugilista desbloqueia a comunicação com os alunos senegaleses, e volta a acelerar o ritmo, marcado por um repetitivo – e contagiante – manear.

“Toca no ombro. Sobe com a esquerda, desce com a direita. Agora em diagonal. Dobra menos as contas. Olha os joelhos”.

As indicações do mestre Valter cumprem-se em duplas, que se vão formando no compasso das chegadas. Rita, Joana, Rodrigo, Júlia, Luca..Guadalupe…

Os nomes circulam nos cumprimentos a cada entrada, sinalizam ausências, e humanizam movimentos durante o treino, a espaços pontuado de orientações em francês.

“Attend! Espera! Espera pelo golpe para meter o ombro. Protege-te! Não arrastes os pés. Não quero ouvir os assobios dos ténis. Atenção aos olhos abertos quando o adversário está a atacar.”

As pausas corrigem posturas e enquadram novas direcções, ao mesmo tempo que evidenciam as diferenças de condição física no grupo, inicialmente formado com estudantes do ensino básico e secundário, e, nos últimos cinco meses, alargado a pessoas migrantes.

“Comecei por ir às escolas dos agrupamentos aqui à volta, falar com professores de Educação Física e dizer: estão aqui treinos de boxe gratuitos”. O passa-palavra trouxe os primeiros alunos e, mais recentemente, chegou aos ouvidos do pessoal da Cozinha Migrante dos Anjos, ponte para novas possibilidades.  

“Se disser que inicialmente o meu francês era medíocre já me estou a gabar”, graceja Valter, enquanto procura uma definição melhor. “Sofrível também não é a palavra…era verdadeiramente deplorável”, diz, exemplificando: “Conseguia contar até 10, dizer umas coisas e apontar”.

Menos de seis meses depois, salta à vista o desembaraço linguístico.

“O boxe tem aqui uma coisa bonita, que é uma espécie de ritmo e de repetição. Portanto, as palavras acabam também por ser quase sempre repetidas. Então, à noite ia ao tradutor e procurava algumas palavras em francês de que ia precisar. Descobri depois que o tradutor também tinha Wolof e, já que estava a aprender, comecei assim a introduzir esta língua”.

O processo, conta o também fotógrafo e professor universitário, beneficiou ainda do apoio da turma.  “Agora há palavras que eu sei dizer em Wolof, mas que não sei dizer em francês”.

Ginásio sem fronteiras

Seja qual for o idioma, todos são bem-vindos nos treinos de Valter Ventura, há pouco mais de um ano fixados entre freguesias de Lisboa. É por aqui que, três vezes por semana, o treinador não só se empenha em derrubar muros, como o faz sem cobrar um cêntimo.

“Comecei a dar treinos gratuitos há cerca de três anos”, assinala, adiantando que a escolha se impôs, diante do acentuar de clivagens sociais.

Desde logo, explica Valter, os clubes desportivos onde trabalhava sofreram com a gentrificação e turistificação de Lisboa.

“A população começou a sair, a vender as casas ou a não conseguir pagar rendas e tudo mais”, recorda, de volta à temporada em Campo de Ourique, estabelecida “junto à Maria Pia, ali, ainda a apanhar o resto daquela zona que era o antigo Casal Ventoso”.

A descaracterização levou-o a buscar uma mudança, mas a transferência para Campolide, numa geografia muito próxima, trouxe outra confrontação: a subida de preços não se ficou pelo mercado da habitação.

“Ao fim de quatro ou cinco meses, não só a mensalidade subiu, como os valores deixaram de ser praticáveis para alguns dos rapazes que tinham vindo comigo de Campo de Ourique”.

Ao mesmo tempo, lamenta o treinador, metade dos praticantes passaram a ser nómadas digitais, mais interessados em fitness do que propriamente no boxe. “Percebi que não era o sítio onde eu devia estar”.

A freguesia de Marvila, e em específico a zona de Chelas, tornou-se o destino óbvio, porque alguns dos antigos alunos tinham-se mudado para aí com as famílias.

Da intervenção resultou a confirmação da vontade de alargar o impacto, e Arroios surgiu como possibilidade.

“Perguntei se tinham um espaço para eu dar treinos, e coloquei como condições que não poderiam cobrar mensalidades, e que eu teria a liberdade de escolher a quem é que eu queria dar os treinos”.

Os termos do compromisso libertaram o processo de burocracias, facilitando uma prática de portas abertas, fundamental para aproximar “mundos”. “A partir do momento em que entram aqui dentro, só há três perguntas, e são iguais para todos: Como é que se chamam, já fizeram algum desporto de combate, têm alguma lesão?”.

A partir dessa ‘abolição de fronteiras’, sejam elas linguísticas, étnico-raciais, religiosas ou de qualquer outro tipo, deu-se o encontro com núcleos de pessoas migrantes.

“A palavra espalhou-se, e em meados de Junho deste ano, apareceu aqui o pessoal da Cozinha Migrante dos Anjos, e perguntou se os rapazes, que na altura estavam a viver em tendas à volta da Igreja dos Anjos, podiam vir treinar”.

Cooperação de possibilidades

O grupo, que até Setembro chegou a juntar 14 pessoas dos 19 aos 26 anos – das quais oito com presença constante e consistente –, animou ideias de constituição de uma equipa para competir, rapidamente desfeitas – e refeitas – pela realidade.

“Percebi que tudo isto é muito volátil. Ou seja, a situação em que estão é altamente precária, por isso, pensar em formar uma equipa seria pensar no pior cenário possível, de que iriam continuar a não ter nenhuma alternativa de vida, e a vir cá por causa disso”.

Felizmente, têm surgido opções, assinala Valter, explicando que o velho núcleo duro de partida já não existe, porque muitos conseguiram trabalho fora de Lisboa, nomeadamente em Évora, Beja, Sesimbra e Porto.

“É triste, porque de repente eles desaparecem e nem temos tempo de nos despedir. Vão de um dia para o outro, porque há circunstâncias da vida e há trajetórias que estão a ser decididas”.

Nesses fluxos migratórios, os trânsitos do Senegal e da Mauritânia têm sido os mais regulares, observa o treinador, que, a cada treino, não se limita a gerir pessoas.

“Nem toda a gente tem luvas. Há uns que estão a fazer um exercício, outros a fazer outro e, a meio do exercício, quem tem luvas troca e dá a quem não tem”.

O equilíbrio seria ainda mais difícil sem cooperação e entreajuda, valores que o antigo pugilista faz questão de consolidar.

“Fui falar com as pessoas que me tinham acolhido em Marvila, e disse: tenho um projecto novo em Arroios, e estou um pouco entalado porque tenho muita gente e ninguém tem luvas”.  Na altura, o grupo encaminhado pela Cozinha Migrante dos Anjos estava nos máximos, e era urgente encontrar solução.

“Eles disseram que desde que tinha saído dali, não tinha voltado a haver treinos de boxe. Como tinham comprado algum material quando eu estava lá a dar treinos, doaram o material que tinham. Isso foi muito bom porque tornou as aulas mais possíveis”.

Com elas, percebe-se pelos movimentos, as vidas que por ali passam também são mais possíveis.

A de Samba é um bom exemplo. Alfaiate especializado na criação de peças de vestuário e acessórios de moda – onde sobressaem os panos africanos –, o senegalês assume no ringue um lugar de pertença e liderança que, fora dele, políticas e práticas anti-imigração convergem para inviabilizar.

“É um dos melhores da turma. Vem sempre, nunca falha”, elogia Valter, que encontrou no alfaiate um apoio essencial. “As pessoas novas que chegam aprendem com o Samba, que, nitidamente, tem o respeito de todos. Mesmo os rapazes que já cá estavam antes expressam essa admiração”.

Pelo contrário, lamenta o treinador, “lá fora é como se todas estas pessoas – o Aziz, o Adam, o Abdulai o Samba… – não fossem indivíduos. São tratados como um colectivo que responde por todas as coisas que esse colectivo faz. E, pior ainda, estão a responder por coisas que o colectivo não fez”.

Travar deriva desumanizadora

A recente megaoperação “Portugal sempre seguro”, que, na passada sexta-feira, 8, musculou o Martim Moniz de repressão e presença policial é reveladora disso mesmo.

“No decurso desta acção, vários imigrantes foram transportados para centros de instalação temporária ou notificados para abandonarem voluntariamente o país”, denunciou o SOS Racismo, lembrando que “nas últimas semanas, a perseguição a imigrantes intensificou-se em todo o país, com especial incidência em Lisboa”.

Através de um comunicado, o movimento anti-racista acusa o Governo de adoptar uma “política persecutória e infame de ‘caça ao imigrante ilegal’”, em linha com “o programa xenófobo e racista da extrema-direita”.

Contra o que designa de “consagração da visão securitária e xenófoba sobre os fluxos migratórios”, o SOS assinala que esta via de intervenção representa “um verdadeiro retrocesso na defesa e salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais num estado de direito, e um ataque aos direitos humanos de imigrantes”.

Para o Governo, contudo, operações como aquela que aconteceu no Martim Moniz vieram para ficar. “Temos várias calendarizadas, demos instruções às forças de segurança para continuarem a fazer este trabalho no terreno”, anunciou o ministro da Presidência,

A partir das palavras de António Leitão Amaro, extrai-se, uma vez mais, a ideia de que imigração, ilegalidade e criminalidade são indissociáveis. “Quando detectam situações de imigração ilegal, os abusadores e os traficantes devem ser penalizados criminalmente e quem está ilegal em território nacional deve ser sujeito a uma medida de afastamento”, disparou o governante.

Com este posicionamento, o Executivo liderado por Luís Montenegro deixa à vista “a desproporcionalidade dos meios investidos na “caça ao imigrante ilegal” por oposição aos que são investidos para assegurar o dever de resposta, em tempo útil, às justas aspirações de imigrantes que procuram Portugal como país para viver”, nota o SOS.

Valter Ventura não precisou de mais este episódio para compor o retrato de uma deriva desumanizadora.

“Por causa do medo, ignorância e ódio que se coloca em cima de quem chega, ouvimos sempre o discurso de que ‘eles’ são perigosos. Existe sobre essas pessoas uma espécie de condenação prévia a qualquer crime que possa vir a acontecer, quando os factos negam essas ideias”.

Atento a essas e outras narrativas de discriminação, o treinador nota que abandonámos o domínio racional, para entrar num “mundo animal, em que a percepção pública que é criada, pela repetição das mesmas histórias, estereótipos e mentiras, tem mais validade do que a realidade”.

De punhos cerrados para combater essa desumanização, Valter faz do boxe lugar de pertença, e de novas possibilidades.

“Pode parecer que estamos a falar uma coisa de agressividade e que eu, enquanto treinador, o que devia fazer era estimular a agressividade. Mas a agressividade é uma coisa animal, e o que eu quero é que eles sejam absolutamente racionais. Eu quero que eles não fechem os olhos quando sentem que estão a ser atacados. Quero que pensem na respiração, que respirem com os golpes do adversário, que antecipem os movimentos que estão a ser feitos”.

Nesse contínuo de ensinamentos, entre noções sobre postura e detalhes de técnica, a aprendizagem faz-se sem vislumbre de atrito.

“Tudo aquilo que eu estou a fazer e outro treinador de boxe faz é substituir um lado primário, as reações primárias – como encolher-me ou bater porque me estão a bater – por reacções que são absolutamente racionais”, prossegue Valter, lembrando a ligação ao xadrez.

“É um desporto de antecipação: para cada golpe, existe um contragolpe certo, para cada movimento existe um contramovimento. E é preciso estar absolutamente calmo, presente e tranquilo perante a outra pessoa, e compreender o que está ali a acontecer: o som do outro, a respiração, os pequenos tiques que tem, e que permitem antecipar gestos. Isso é uma coisa muito humanizante, e é preciso estarmos sempre a trabalhar nisso”.

Golpe a golpe. Contra ódios e preconceitos.

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De boas intenções pode estar o Governo cheio. E as acções?

Sem apresentar medidas concretas para combater o racismo, e em particular a violência policial contra corpos negros, o Governo recebeu, na passada terça-feira, 29, representantes de colectivos da Área Metropolitana de Lisboa que actuam em bairros municipais. O encontro, no qual o Afrolink esteve presente, evidenciou a necessidade de uma articulação entre as instituições públicas e a sociedade civil, apenas pontualmente – e em situações críticas – chamadas a intervir. Os dias que se seguiram à morte de Odair Moniz, às mãos da polícia, tornam igualmente óbvio que a o compromisso e consciência colectivos sobre questões raciais, continua restrito a planos de intenções.

Sem apresentar medidas concretas para combater o racismo, e em particular a violência policial contra corpos negros, o Governo recebeu, na passada terça-feira, 29, representantes de colectivos da Área Metropolitana de Lisboa que actuam em bairros municipais. O encontro, no qual o Afrolink esteve presente, evidenciou a necessidade de uma articulação entre as instituições públicas e a sociedade civil, apenas pontualmente – e em situações críticas – chamadas a intervir. Os dias que se seguiram à morte de Odair Moniz, às mãos da polícia, tornam igualmente óbvio que a o compromisso e consciência colectivos sobre questões raciais, continua restrito a planos de intenções.

Procuro notícias sobre a morte, às mãos da polícia, de Odair Moniz. Neste exercício de pesquisa online, entre artigos de jornal e peças televisivas, encontro suspeitas de falsificação de provas que estarão a ser investigadas pela PJ; uma série de relatos de “distúrbios” e “desacatos” nos “bairros sociais”; declarações do advogado do agente que atirou a matar; descrições de velhas e novas imagens de videovigilância captadas na madrugada fatal; teorias sobre os limites da legítima defesa; e um penoso rosário de intervenções políticas.

De declarações rápidas a pronunciamentos mais longos, confirmo, a partir dessa cobertura noticiosa, que a vida de Odair, violentamente encerrada aos 43 anos, desperta menos comoção do que a destruição de autocarros, carros e caixotes de lixo.

Basta analisar como dirigentes públicos, governantes e líderes partidários não pouparam na veemência na hora de condenar os protestos que se seguiram à violência policial, mas expressaram (aqueles que o fizeram) confrangedora inibição no momento de repudiar a actuação policial que resultou na morte de Odair.

É verdade que lamentaram a tragédia, e garantiram que o caso será adequadamente investigado, mas, acima de tudo, estiveram mais entretidos  a recomendar calma, moderação e tranquilidade, dando lições de ‘civismo’ aos ‘selvagens’ , e esquecendo-se que a revolta dos bairros não surgiu num vácuo.

Porque é que a nossa ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, é peremptória em classificar de “perfeitamente inadmissíveis” o que classifica de “distúrbios” mas, ao referir-se à morte de Odair, não vai além de uma reacção frouxa e conformada, classificando a perda de uma vida irreparável de “infeliz incidente”.

A diferença não é meramente semântica. De um lado temos o que se traduz num assumido e proactivo compromisso de acção: "Tudo faremos para levar aqueles que participaram nestes tumultos à justiça”, garantiu a titular do MAI. Do outro lado, encontramos a contenção do costume, porque – ao contrário do que acontece com propriedade privada incendiada – a violência que vemos acontecer nos bairros de maioria negra nunca é suficiente. 

“A nossa cor é a arma que eles temem”

Exemplo disso mesmo – que me faz abrir aqui um parêntesis – é a reacção da comentadora Maria João Marques diante de um vídeo exibido na SIC Notícias, em que vemos um homem negro ser agredido por dois polícias.

Aos olhos de Maria João Marques (que felizmente se confrontaram com os de Paulo Baldaia), nada há de errado em termos agentes altamente armados a atirar para o chão uma pessoa desarmada, que, segundo se vê nas imagens, faz de tudo para mostrar – despindo-se – que não representa uma ameaça.

Talvez Maria João Marques precise, conforme sugeriu Paulo Baldaia, de viver algo semelhante para avaliar se estamos ou não perante um acto de violência.

Sabemos, contudo, que a pele branca funciona como um escudo de protecção contra esse tipo de abordagens policiais, criminosa e racialmente musculadas.

Pelo contrário, conforme nos lembrava um dos cartazes que, no último sábado, 26, povoaram a Avenida da Liberdade – na marcha de homenagem a Odair Moniz, organizada pelo movimento Vida Justa –, “é impossível estar desarmado quando a nossa cor é a arma que eles temem”.

Neste “eles” não cabem apenas os polícias, mas é sobre eles que, neste caso, importa centrar a discussão. Afinal, é às suas mãos que os nossos homens negros continuam a morrer. E, por mais que tentem normalizar e justificar a violência policial racista, inventando ameaças inexistentes, nós continuaremos a contestá-la sem reservas, algo que o Governo hesita em fazer.

Quando a ministra da Administração Interna se refere à morte de Odair como um “infeliz incidente”, não estará certamente a minimizar a tragédia, mas está, em larga medida, a desresponsabilizar o agente.

“Mandei abrir o inquérito para saber exactamente, em termos exaustivos, o que aconteceu”, anunciou Margarida Blasco na ressaca da morte, escusando-se a apontar o óbvio: mesmo que tivesse de usar a arma – e neste caso os indícios sugerem que não tinha de o fazer –, o agente nunca deveria atirar a matar.

Antes dele, muitos outros que também não o deveriam fazer, fizeram-no, sem que ficássemos a saber o que aconteceu, “em termos exaustivos”, para que, perante tantas evidências de abuso policial e racismo, tivessem sido absolvidos.

Diálogo minado de desconfianças

Como esperar, neste quadro, que haja calma e se aguarde com serenidade o resultado das investigações?

Como confiar numa Justiça que criminaliza o anti-racismo, e transforma vítimas negras em arguidas?

Como dar o benefício da dúvida a um Governo liderado por alguém que, em particular neste contexto, afirma que “não somos um país onde o ódio, as questões raciais tenham uma natureza de preocupação”?

Foi ainda sob o ruído dessa declaração do primeiro-ministro que, na passada terça-feira, 29, o Afrolink se juntou a cerca de 15 representantes de associações e colectivos da Área Metropolitana de Lisboa, numa reunião convocada pelo ministro da Presidência.

Depois de nos guiar pela visão do Executivo para “melhorar as condições da vida concreta das pessoas”, nomeadamente nas áreas  da Segurança, Habitação, Saúde e Educação, António Leitão Amaro garantiu que Luís Montenegro “não disse nem quis dizer” que não há racismo em Portugal.

Das intenções às acções, o encontro, classificado de “exercício de escuta histórico”, demonstrou que não há grande distância entre o que o líder do Governo disse e o que o Executivo faz.

Percebe-se, por exemplo, pelas medidas apresentadas por Leitão Amaro, que a dimensão étnico-racial da violência policial e da exclusão social continua a ser desprezada.

Anunciar a reformulação e melhoria da formação pedagógica das forças de segurança, com ênfase nos Direitos Humanos terá a sua importância nos relatórios, mas, no dia-a-dia, não me parece que os polícias desconheçam a desumanidade de espancar pessoas nas esquadras, interpelá-las violentamente na rua, ou tratá-las à lei da bala.

A questão não se resolve com mais ou menos Direitos Humanos, porque o problema está em termos polícias que não reconhecem as vidas negras como humanas. Portanto, à luz das suas práticas racistas, os Direitos Humanos não se aplicam diante de pessoas negras.

O Governo tem a obrigação de conhecer esta realidade, quanto mais não seja porque a própria Inspecção-Geral da Administração Interna – que Margarida Blasco liderou – investiga esse e outro tipo de processos, incluindo denúncias sobre a infiltração de elementos da extrema-direita nas polícias.

O que é feito desses inquéritos?

Enquanto Leitão Amaro reitera toda a confiança nas forças de segurança, “na lógica do princípio de que actuam para cumprir a regra e o respeito pelos Direitos Humanos”, nós continuamos a morrer. E enquanto o Governo se congratula por estar a ouvir representantes da sociedade civil, nós gostaríamos de o ver a agir contra o racismo.

Sem mas, nem meio mas.

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