HISTÓRIAS

Opinião Paula Cardoso Opinião Paula Cardoso

Quem tem medo de criminalizar o racismo? Até tu, aliado?

Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus.  Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!

Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com as quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus.  Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!

Olho para os números que, no início desta semana, me diziam que desde 10 de Dezembro de 2024 – data de formalização da proposta –, cerca de 2.700 pessoas assinaram online a Iniciativa Legislativa Cidadã que prevê a alteração do Código Penal, para que se criminalize o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias.

Comparo os dados com as largas dezenas de milhares de pessoas que, no passado dia 11 de Janeiro, saíram à rua para combater o racismo e a xenofobia, sob o mote “Não nos encostem à parede”.  Junto os cerca de 6.000 seguidores desta campanha no Instagram, e constato o óbvio: há uma linha demasiado ténue que separa um aliado da luta anti-racista de um apaniguado do sistema racista. 

Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e, repetidamente, a vêem escapar impune.

Importa, por isso, lembrar – uma vez mais e sempre – o papel de um aliado, à luz do que definiu a afroamericana Kayla Reed, pessoa negra e queer, estratega do Movimento pelas Vidas Negras, a partir do qual co-fundou o Projecto pela Justiça Eleitoral.

Desconstruindo a palavra inglesa ally (aliado) letra a letra, a activista aponta quatro acções fundamentais para quem ocupa esse lugar. 

Passo a enumerar, e a traduzir:

A - always center the impacted – focar sempre naqueles que sofrem o racismo na pele;

L - listen & learn from those who live in the oppression – ouvir e aprender com aqueles que vivem sob a opressão;

L - leverage your privilegie – colocar o próprio privilégio/poder ao serviço da luta;

Y - yield the floor – ceder o ‘palco’.

Entre “Setenta e Quatro”, “Gerador”, “DN” e “Brasil Já”, publicações onde fui e vou assinando opinião, perdi a conta ao número de vezes em que escrevi sobre pessoas que se afirmam aliadas da luta anti-racista, mas estão sempre voltadas para si próprias; não conseguem ouvir sem retorquir um ‘mas’ e perceber que, por mais empáticas que possam ser, e por muito que sofram discriminações, nomeadamente de género, nunca vão saber o que é estar na pele de uma pessoa negra. Nunca. Da mesma forma, não preciso dos dedos das duas mãos para contar o número de pessoas brancas com quem me cruzei que usam da influência que têm para criar acessos efectivos e quebrar barreiras estruturais.

Cabe aqui fazer uma dupla ressalva: uma coisa é abrir a porta a pessoas negras, outra muito diferente é construir espaços que as acolham. Do mesmo modo, convém prestar atenção ao papel que, quando são ‘integradas’ em estruturas brancas, as pessoas negras ocupam. É-nos reconhecido o direito de pensar e de opinar, quando ele coloca em causa o pensamento e opinião brancos?  

A menos que acreditem na ficção do racismo reverso, percebam que pessoas brancas nunca saberão o que é ser alvo de racismo, da mesma forma que pessoas que não menstruam nunca saberão o que são dores menstruais, e pessoas que não engravidam nunca saberão o que é passar por um aborto.

Convém, por isso, ouvir e aprender com quem vive essas realidades, e perceber algo fundamental: se as pessoas que vivem as opressões apontam o caminho para as combater, a única coisa que quem não as vive e se diz aliado tem de fazer é apoiar e seguir sob o seu comando.

É vital entender que as dúvidas e questionamentos individuais – por mais legítimos que sejam – não se podem sobrepor a lutas colectivas que combatem violações de Direitos Humanos, e legislam contra a sua impunidade.

A iniciativa cidadã para criminalizar práticas racistas parte do Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e a Xenofobia, que reúne mais de 80 colectivos “determinados a lutar por um Portugal, uma Europa e um mundo mais inclusivos e interculturais, contra todas as opressões e formas de discriminação”.

Travar o avanço desta proposta é compactuar com o sistema de impunidade, porque sabemos que os casos de racismo raramente são punidos, e, que quando o são, poucas vezes vão além do pagamento de coimas.

Recusar assinar a Iniciativa Legislativa Cidadã de criminalização do racismo não é uma expressão de divergência, é um acto racista.

Porque, conforme explicam ao Afrolink os juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, o que a proposta de alteração ao Código Penal permite é agravar as consequências de práticas já previstas na Lei, para que, por exemplo, agredir pessoas negras– como fez a jornaleira Tânia Laranjo em 2019 com Joacine Katar Moreira e Mamadou Ba –, não seja equiparado à colocação incorrecta de um toldo numa esplanada.

Ignorar que as normas existentes promovem uma cultura de impunidade é próprio de racistas, e de quem não está a focar em quem sofre o racismo na pele. E isso não se resolve com hashtags no Instagram, frases eloquentes, nem rodadas de cachupa.

Leia mais
Despertar Negro, Cidadania, Racismo estrutural Paula Cardoso Despertar Negro, Cidadania, Racismo estrutural Paula Cardoso

Racismo em Portugal comprovado por assinatura: onde está a sua?

Cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas votaram num partido abertamente racista e xenófobo nas últimas Legislativas, transformando-o na terceira força política em Portugal. Os alarmes deveriam ter soado bem alto, mas, em vez disso, várias vozes se apressaram a absolver o eleitorado racista, justificando as suas escolhas com “zangas”, “ressentimentos” e “descontentamentos”.  Como se houvesse contexto capaz de tornar aceitável e até justificável o racismo e a xenofobia. Ou como se as pessoas escolhessem propostas racistas inocentemente e sem intenção. Afinal, garante o primeiro-ministro, em Portugal "o ódio e as questões raciais não têm uma natureza de preocupação”. Facto é que a aparente facilidade com que a extrema-direita mobiliza racistas e xenófobos no país contrasta com a dificuldade que o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia (GAC) enfrenta para juntar 20 mil assinaturas em defesa da criminalização do racismo. O Afrolink deixa-lhe com o essencial desta iniciativa do GAC, percorrida a partir dos esclarecimentos dos juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, que integram a campanha.

Cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas votaram num partido abertamente racista e xenófobo nas últimas Legislativas, transformando-o na terceira força política em Portugal. Os alarmes deveriam ter soado bem alto, mas, em vez disso, várias vozes se apressaram a absolver o eleitorado racista, justificando as suas escolhas com “zangas”, “ressentimentos” e “descontentamentos”.  Como se houvesse contexto capaz de tornar aceitável e até justificável o racismo e a xenofobia. Ou como se as pessoas escolhessem propostas racistas inocentemente e sem intenção. Afinal, garante o primeiro-ministro, em Portugal "o ódio e as questões raciais não têm uma natureza de preocupação”. Facto é que a aparente facilidade com que a extrema-direita mobiliza racistas e xenófobos no país contrasta com a dificuldade que o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia (GAC) enfrenta para juntar 20 mil assinaturas em defesa da criminalização do racismo. O Afrolink deixa-lhe com o essencial desta iniciativa do GAC, percorrida a partir dos esclarecimentos dos juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, que integram a campanha.

Anunciar duas pessoas negras como se fossem mercadoria, à semelhança de velhos leilões escravocratas, tornou-se tentador para Tânia Laranjo. “Não resisto”, escreveu em 2019 a jornalista do Correio da Manhã e da CMTV, aproveitando a febre consumista da “Black Friday” para divulgar a sua “promoção especial leve 2 e não pague nenhum”.

A parangona, exibida no Facebook com os rostos do dirigente do SOS Racismo, Mamadou Ba, e da então deputada Joacine Katar Moreira, viralizou entre partilhas, reacções e comentários de ódio, e, mais de cinco anos depois, permanece impune. Apesar de a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) ter condenado Tânia Laranjo ao pagamento de uma coima de 435,76€ por “prática discriminatória em razão da cor da pele”, a decisão foi contestada pela repórter e o desfecho não se adivinha reparador.

Ainda assim, poderia ser pior: 80% dos processos instaurados pela CICDR acabam arquivados, segundo um estudo do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, que analisou denúncias nas áreas da educação, habitação/vizinhança e forças de segurança feitas entre 2006 e 2016, e encerradas até Fevereiro de 2020.

A pesquisa foi desenvolvida no âmbito do projecto “Combat - O combate ao racismo em Portugal: uma análise de políticas públicas e legislação anti-discriminação”, e demonstra a pertinência da Iniciativa Legislativa Cidadã promovida pelo Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e a Xenofobia (GAC).

“O objectivo é fazer alterações ao Código Penal, reforçando o combate à discriminação e aos crimes praticados em razão da origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica”.

A proposta, explicam ao Afrolink os juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, que integram o grupo de especialistas que redigiu o texto, resulta de um processo amplamente discutido e participado.

“Houve um primeiro momento em que verificámos todas as opções jurídicas que tínhamos em cima da mesa”, reconstitui Nuno, adiantando que a ideia inicial de criar uma nova lei sobre esta matéria foi preterida pela opção de introduzir mudanças ao artigo 240.º do Código Penal, que enquadra a discriminação e incitamento ao ódio e à violência.

“É mais simples alterar apenas um ou dois artigos, do que estarmos a criar um diploma novo”, reforça, sem nunca perder de vista o propósito. “A Iniciativa Legislativa Cidadã exige um mínimo de 20 mil assinaturas que, do ponto de vista dos movimentos associativos, é um objectivo muito difícil de conseguir, daí a preocupação de agregar o maior número de pessoas possível, quer entre nós, quer lá fora”.

Convencer a opinião pública

A força mobilizadora, acrescenta Anizabela, passa pela capacidade de conquistar a “aceitação da opinião pública, e da própria Assembleia” da República.

“Temos plena consciência que há muitas outras reivindicações a nível legislativo que deixámos de lado, áreas que ficam em aberto, como a protecção das vítimas, mas desta forma achámos que seria mais fácil convencer as pessoas”.

O processo ganhou expressão há um ano, a partir da manifestação “Vota contra o Racismo”, embora as primeiras conversas sobre uma concertação viessem de 2023.

“Tem sido um tema recorrente para as discussões do SOS Racismo esta questão da criminalização. Aliás, mesmo a lei que existe actualmente, e que queremos rever, já foi um trabalho muito empurrado pelos movimentos, e pelo SOS”. 

A dinâmica impulsionadora da sociedade civil volta a sobressair nesta Iniciativa Legislativa Cidadã.

“Por um lado, abrimos a proposta ao debate público”, explica Anizabela, revistando as etapas iniciais: “Criámos um QR Code que ia parar a um formulário, para recolhermos opiniões dos colectivos e de todas as pessoas que se quisessem manifestar”.

O período de auscultação acabou por se prolongar porque “as pessoas sentiram necessidade de conhecer melhor o tema, de se apropriarem mais da questão”, nota a jurista, acrescentando que esse tempo também foi essencial para se reflectir sobre a melhor abordagem jurídica.

Além de 20 mil assinaturas

“Ainda bem que o processo foi demorado, porque assim permitiu mastigarmos bem tudo e conseguirmos chegar a um consenso”, aponta Nuno, de novo voltado para as metas.

“Obviamente que o objectivo último é fazer chegar à Assembleia as 20 mil assinaturas, para dar início a um processo de discussão e obrigar o Parlamento a debater esta proposta”, assinala, identificando outros ganhos. “Isto é também um pretexto, uma ferramenta excelente para, pelo menos durante um ano, nós conseguirmos ter este assunto discutido em vários locais, em vários fóruns. Ou seja, a ideia é também que se possa reflectir sobre a questão do Direito Penal, sobre a questão do racismo, e abrir caminho mais para a frente”.

O debate está lançado, e as assinaturas podem ser recolhidas presencialmente, em papel, por acção dos mais de 80 colectivos que compõem o GAC, e online, pelo site da Assembleia da República e das petições públicas.

“Mesmo que cheguemos ao fim da Legislatura sem as 20 mil assinaturas, as que tivermos não se perdem. Podemos dar continuidade ao processo na Legislatura seguinte”, clarifica Anizabela.

“No final, vamos juntar todas as assinaturas na plataforma da Assembleia da República, já com aquela margem dos 5% que nos dizem que é para as que não correm bem. Depois, tendo as 20 mil, somos chamados a apresentar a proposta em plenário”.

Primeiro na generalidade e a seguir na especialidade, a discussão, antecipa a jurista, “vai exigir alguma negociação e capacidade de persuasão”.

Ao mesmo tempo, nota Anizabela, “algumas entidades e alguns partidos terão que se posicionar, e será muito interessante perceber quem são essas pessoas que se vão posicionar contra as práticas racistas serem crime”.

Medo da criminalização

Por enquanto, a oposição à iniciativa evidencia-se no volume ainda inexpressivo de assinaturas, justificado, aqui e ali, com receios de que a criminalização do racismo acarreta mais custos do que benefícios.

Por exemplo, há quem tema que a alteração ao artigo 240.º do Código Penal possa ser instrumentalizada contra activistas anti-racistas, e não falta quem receie a criação de um estado policial.

No entanto, Nuno Silva afasta esses e outros cenários.  “As condutas que colocamos nesta proposta de alteração, como passíveis de serem criminalizadas já constavam na lei como ilícitas. Portanto, não vai haver um extra policiamento de condutas. O que queremos é dar-lhes consequências diferentes”.

O repertório de práticas sob escrutínio inclui, entre outras, a recusa ou condicionamento de venda, arrendamento ou subarrendamento de imóveis, motivada pela origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem.

Portanto, insiste Nuno, “quando dizem, mas vocês agora vão criar uma espécie de Estado policial com uma super vigilância, respondo que não. As condutas que são ilegais são exactamente as mesmas, o que nós queremos alterar é a forma como o Estado as interpreta, e como é que nós, como sociedade, olhamos para elas”.

O jurista defende que não avançar com a alteração proposta implica continuar a equiparar um carro mal-estacionado a agressões à honra e à dignidade.

Sobre a possibilidade de a lei se virar contra activistas anti-racistas, Nuno considera uma hipótese descabida.

“Quem é racista e quem tem comportamentos racistas é que pode estar preocupado porque vai ter aqui uma consequência diferente do que uma mera coima a pagar”.

Educar para consciencializar

Além de se dar maior gravidade às condutas, criminalizando-as, Anizabela lembra que as mudanças terão de passar sempre por um “trabalho ao nível das escolas de direito, das universidades, das magistraturas, da formação dos magistrados e da formação dos advogados”.

Confiante na transformação, a jurista sublinha que hoje em dia já temos “magistrados que lamentam não poderem ir mais longe”, na aplicação da lei, e reconhecem as limitações do artigo 240.º do Código Penal. Em concreto, Anizabela nota que é fundamental retirar a exigência de que a discriminação, para ter enquadramento criminal, tem de ocorrer publicamente, ou por qualquer meio destinado a divulgação.

Actualmente, é nessas estreitas circunstâncias que os actos racistas são criminalizados, a exemplo do que aconteceu no caso que envolveu os filhos dos actores brasileiros Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank.

Agredidos por Adélia Barros, que os chamou de “pretos imundos”, as crianças, na altura com 7 e 9 anos, tiveram de ouvir vários insultos, como: “Portugal não é lugar para vocês! Voltem para África e para o Brasil."

Condenada a quatro anos de pena suspensa e ao pagamento de uma indemnização de 14.500 euros, a que acrescem 2.500 euros para o SOS Racismo, a agressora está ainda obrigada a um internamento para tratar o alcoolismo.

Este desfecho, a que não será alheio o mediatismo dos protagonistas, comprovado por intervenções dos Presidentes da República de Portugal e do Brasil, dificulta o entendimento sobre a necessidade de endurecer a lei.

Racismo não é crime - a luta continua!

“Estamos a ser acusados de desinformação, de sermos mentirosos”, lamenta Anizabela, acrescentando: “Temos pessoas que dizem: ‘Claro que o racismo é crime, porque senão, como é que o André Ventura tinha sido condenado? Portanto, as pessoas vão buscar casos de condenações por racismo para dizer que já existem, e nós vamos desconstruindo”.

Impõe-se continuar a fazê-lo, destaca Nuno, a partir das experiências já vividas em tribunal.

“Uma coisa que sempre me afligiu muito nos julgamentos que fui acompanhando é a forma como, quer procuradores, quer juízes, sentem estes temas”, diz. “Parecem demasiado despreocupados com isto e, sobretudo, parece que remetem muitas vezes estas questões para acontecimentos singulares, em que acontece um em 1000 casos, e, portanto, não lhes dão a devida atenção”.

Atento às limitações presentes em qualquer lei – “temos consciência que nós não vamos fazer nenhuma revolução só com essa alteração legislativa” –, Nuno confia no seu bom contributo.

“As práticas racistas não vão deixar de existir, nem as instituições vão mudar. Portanto, esta alteração da lei não vai resolver o problema do racismo estrutural, mas há uma diferença relativa relevante, não só do ponto de vista da autocensura, mas também da forma como nós, a partir daqui, podemos começar a construir uma sociedade um bocadinho melhor”.

A esperança vai buscar inspiração a outras frentes. “Lembro-me, por exemplo, do caso da violência doméstica, que há uns anos nem sequer era crime. Aliás, era permitido aos homens exercerem violência sobre as mulheres. Depois, começámos a ter algumas alterações legislativas para contornar isto, e foi criado um crime específico para esta matéria”, recorda o jurista, sem saltar etapas. “Ainda assim, durante muitos anos, o crime dependia de queixa. Portanto, a pessoa que tinha sido violentada teria de apresentar queixa para haver investigação e, a certa altura, alterou-se esse requisito e o crime passou a ser público”.

A alteração trouxe muitos benefícios, reconhece Nuno, lembrando que a luta continua. “Continuamos a ter decisões profundamente machistas, profundamente patriarcais, mas as mesmas são sindicáveis, ou seja, é possível mudar as decisões de um tribunal pelos tribunais superiores, e passamos a ter uma base legal para combater”.

Não dar a nossa assinatura por isto, é escolher o racismo e proteger os racistas.

Leia mais
Feminismo Negro, Activismo Paula Cardoso Feminismo Negro, Activismo Paula Cardoso

“Vulva Negra” - a militância discursiva de Yasmin que exorciza o espírito obsessor da branquitude

Com apenas 18 anos, Yasmin Morais criou, em Salvador, na Bahia, o projecto “Vulva Negra” para difundir “o trabalho intelectual que mulheres negras têm construído no Brasil e na América do Sul”.  Aos 24 anos, e de passagem por Portugal – um dos destinos de internacionalização da iniciativa – activista falou com o Afrolink sobre esta proposta, que descreve como “feminista material e radical”.

Com apenas 18 anos, Yasmin Morais criou, em Salvador, na Bahia, o projecto “Vulva Negra” para difundir “o trabalho intelectual que mulheres negras têm construído no Brasil e na América do Sul”.  Aos 24 anos, e de passagem por Portugal – um dos destinos de internacionalização da iniciativa – a activista falou com o Afrolink sobre esta proposta, que descreve como “feminista material e radical”. A conversa passou também pelo “ranço colonial” que ainda reveste de “grande animosidade” as relações entre portugueses e brasileiros, sem esquecer as ameaças à nossa humanidade, decorrentes da ascensão de forças políticas anti-democráticas. “A extrema-direita está muito bem organizada, não apenas no continente europeu, como também ali na América do Norte e infelizmente também na América do Sul. Eles já perceberam que a grande luta desse século é a luta por significado”, nota a baiana, reflectindo sobre a demonização das identidades. “Algumas pessoas dizem que as pautas negras são identitárias, ou que as pautas das mulheres são identitárias, quando são extremamente materiais”, assinala, sublinhando: “Nós estamos falando das nossas vidas e das nossas possibilidades de existência”.  Quem se recusa a escutar?

Yasmin Morais, fundadora do “Vulva Negra”, aqui fotografada por Catherine Sant’ Ana e, na foto de capa,  por Ivny Coura

Os olhares atravessaram-lhe o caminho para não ser quem é. “Eu me sentia vista como algo diferente de humana”. Ainda criança, Yasmin Morais confrontou-se com a impossibilidade até mesmo de estar. “No recreio, momento de confraternização entre as crianças, eu brincava sozinha, porque elas fingiam que que eu não estava ali”.

Única negra da sala, a baiana começou, logo aí, a destituir-se de si própria.

“Essas violências contribuem para um auto-ódio muito grande em mulheres negras. Lembro que a primeira vez que os meus cabelos foram alisados eu tinha 7 ou 8 anos”, conta a hoje escritora, palestrante e comunicóloga, sublinhando a importância dos questionamentos.

“Fui percebendo desde cedo como a desigualdade ia moldando minhas possibilidades, minhas oportunidades, e a maneira como as pessoas me viam. Então, me perguntava: por que as pessoas me olham de uma maneira que elas não olham para as minhas outras colegas, garotas brancas e loiras? Por que isso acontece? O que significa isso? Por que as coisas são como são? Buscar respostas, acabou sendo um caminho natural para mim”.

Natural do estado da Bahia, onde nasceu há 24 anos, Yasmin explica como a vida lhe demonstrou que “a cidade mais negra fora do continente africano também é um tanto hostil com a comunidade negra”.

Além das desigualdades no acesso à educação, a activista aponta para as diferenças no acesso à habitação. “Estudei em uma escola particular, porque a minha mãe era professora lá, mas a maior parte das pessoas negras se concentram nas instituições de ensino público”, nota, sublinhando o quanto a estratificação social se evidencia no quotidiano – “As pessoas brancas vivem nos melhores bairros”.

Mais do que observar e questionar, Yasmin decidiu actuar.

“Comecei a procurar leituras que me trouxessem respostas. Então, acabei esbarrando com autoras maravilhosas, tanto nos Estados Unidos como no Brasil”.

Os encontros literários, com figuras como Angela Davis e Lélia González, trouxeram-lhe compreensão e construção da sua identidade, negra e feminina.

“As pessoas olham a aquisição de conhecimento como algo bom – e é realmente muito bom –, mas quando nós falamos do conhecimento sobre a questão étnico-racial e feminina, sempre vem de um lugar muito doloroso. Você se interessa por saber porque as coisas são como são, porque elas te atingiram primeiro e isso também tem de ser levado em consideração”.

Para começar, Yasmin pergunta: “Quantas de nós não gostariam de ser mais claras, por exemplo? Ou de se enquadrar na noção de feminilidade eurocêntrica?”.

Quebrar correntes de subalternização

Assumidamente fora dos padrões ocidentais, a baiana defende que “como mulher negra, com um nariz largo e cabelos crespos”, não cabe na construção feminina dita ‘universal’. “Os meus traços estão muito mais associados àquilo que dentro da concepção eurocêntrica seria masculino ou animalizado”.

Hoje consciente dos mecanismos de apagamento e silenciamento, e das tentativas de aniquilação da existência negra, a activista alerta para a importância da resistência e ruptura com dinâmicas de subalternização.

“O ódio que nos dirigem acaba se impregnando na nossa personalidade. Então, o trabalho de conscientização com mulheres negras também é uma espécie de exorcismo do espírito obsessor da branquitude, que tenta incutir nas nossas cabeças que não somos boas o suficiente, quando na verdade somos”.

O auto-conhecimento e reconhecimento, iniciado na infância, amplifica-se, há seis anos, através da plataforma “Vulva Negra”.

“Tinha apenas 18 anos, um celular velho e um sonho. Hoje, já representamos o Brasil em mais de seis países e, no ano retrasado [2022] me tornei a primeira brasileira a palestrar no palco principal da maior conferência feminista actual da Europa – a FiLiA Conference”.

O testemunho está afixado na página do projecto no Instagram, lugar de afirmação e celebração.

“Eu demorei muito para me apropriar de uma percepção positiva sobre mim. Hoje eu considero que eu tenho uma óptima autoestima, mas é uma construção, porque na minha infância, na minha adolescência, eu passei por muitos conflitos internos”.

Desde logo, Yasmin conta como não se identificava com as construções de feminino.

“Eu sei que sou uma mulher, mas levei anos e anos para conseguir dizer que eu sou uma mulher, porque não me sentia dessa forma”, diz, explicando que cresceu com “uma definição completamente limitante” do que representa estar nessa pele.

“Pensando especificamente no contexto brasileiro, e religioso, as pessoas apresentaram para mim que ser mulher é ser submissa, é ser compassiva, é ser compreensiva…É andar dois passos atrás de um homem. Não lado a lado, nem à frente. Dois passos atrás. E eu, como aquela criança, como aquela adolescente, pensava: isso é ser uma mulher? Então, eu anulo essa possibilidade”.

A importância de ler

Já longe dessa invalidação, a escritora conta que o estudo, associado às experiências que foi tendo ao longo da vida, lhe permitiram desmontar essa construção social.

“Percebi que, na verdade, aquilo ali é uma noção completamente arcaica e patriarcal de quais são as possibilidades para uma mulher”.

Aos 24 anos, Yasmin afasta-se de impossibilidades, e propõe, com o seu projecto, “uma perspectiva crítica às noções clássicas”, posicionando-se pelo abolicionismo de género, por acreditar que o mesmo nos é imposto, de forma limitante.

Apesar de reconhecer as condicionantes, a palestrante faz questão de se afirmar mulher, ao mesmo tempo que desafia padrões. “Ser uma mulher que viaja, que é activista, que está no mundo”, e “não ser submissa, não ser feminilizada, não ter o nariz fino…não retira a minha mulheridade”.

Segura na sua pele, a escritora reafirma a importância da literatura no seu processo de humanização, afirmação e exaltação negra.

“Sei que tenho uma história incomum, um pouco fora da curva”, admite, de volta aos tempos de criança.

“A minha mãe é professora, e sempre foi professora. O meu pai, durante a adolescência, início da juventude, era um escritor. Então, a minha família sempre foi circundada pela questão educacional da parte da minha mãe, e pela questão literária da parte do meu pai”.

A conjugação facilitou o acesso a livros, congratula-se a palestrante, reiterando que “apesar de ser uma pessoa negra que veio da classe socioeconómica baixa no Brasil”, desfrutou do “privilégio de ter pais que encorajam a ler”.

A influência permitiu-lhe treinar, precocemente, o músculo da escrita. “Eu me descobri escritora muito cedo. Com 10 anos, eu já escrevia poemas porque eu me sentia mesmo incentivada pela minha família”.

Lembrando que, no Brasil, “a maioria das pessoas lê, no máximo, um livro por ano”, Yasmin questiona o impacto dessa circunstância.

“Não estou aqui dizendo que é impossível construir conhecimento de outras formas. Você pode assistir a documentários, aulas, palestras, mas ler é uma forma de se apropriar do seu próprio senso crítico, da sua própria perspectiva”.

Enraizada no seu lugar de pensamento, a fundadora do “Vulva Negra” reflecte sobre as ameaças da extrema-direitas a múltiplas identidades; sobre “ranço colonial” que tensiona as relações entre brasileiros e portugueses; e sobre a proposta do seu projecto.

Militância discursiva

“O nome “Vulva Negra” surge por dois motivos interessantes: primeiro, porque é um trocadilho com a aranha viúva-negra, que devora o macho depois do acasalamento; segundo, porque essa palavra ainda é um grande tabu, e, por isso, as pessoas utilizam 1001 nomes inventados para não falar vulva”.

Em contracorrente, a escritora avançou para o que chama de “militância discursiva”: “Toda pessoa que tiver que falar do meu trabalho, vai ter que falar a palavra”.

A ‘profecia’ cumpre-se em jornais, revistas e nas televisões, que acompanham as actividades, nacionais e internacionais, em que o projecto criado por Yasmin Morais está envolvido.

É também na arena mediática que se percebe, cada vez mais, a ascendência da extrema-direita, que cresce sob impulso de polarizações identitárias.

“Penso que é interessante que todos nós, a nível individual, defendamos nossas identidades e nossas questões. Mas é importante, sobretudo, que isso também não nos impeça de ter um olhar colectivo”, defende a baiana, alertando para a distorção de termos por forças anti-democráticas: “Apropriam-se e colocam tudo de forma pejorativa”.

Atenta a essa perversão, a comunicóloga nota que “a extrema-direita está muito bem organizada, não apenas no continente europeu, como também ali na América do Norte e, infelizmente na América do Sul”, e já percebeu que “a grande luta desse século é a luta por significado”.

Por isso, diz, “eles estão a todo o momento se apropriando e se reapropriando de conceitos”.

A manobra exige maior e melhor concertação de esforços, aponta Yasmin. “É muito importante nós termos consciência que estamos vivendo um momento social em que aqueles que se posicionam contra nós, contra as minorias, a comunidade negra e as mulheres, sentem muito medo dos nossos movimentos auto-organizados, não apenas por emancipação, mas também pela justiça que todos nós merecemos como cidadãos”.

A palestrante destaca ainda que “quando esses indivíduos nos vêem nos auto-organizando, criando nossos eventos, nossos movimentos, nossas petições, quando nos vêem pensando a nível político, eles gostam de nos taxar como pessoas perigosas, como pessoas radicais, em um sentido ruim”.

Dando como exemplo o Brasil, a escritora nota que “não há uma polémica dentro dos movimentos de esquerda em falar que nós precisamos de um combate radical às estruturas: do próprio capitalismo, da opressão social e económica”.

No entanto, prossegue a fundadora do “Vulga Negra”: “Quando se fala na questão étnico-racial ou na questão de género, as pessoas vêm com um discurso, que é muito mais próximo do ‘não se pode ser radical demais’”. Então, continua Yasmin, “enquanto você acredita que pessoas negras ou que mulheres precisam também vivenciar uma emancipação completa, outras pessoas olham esse discurso como se fosse algo pernicioso para a sociedade, começam a demonizar, quando, na verdade, o feminismo material nada mais é do que a busca pela emancipação das mulheres e das pessoas negras, compreendendo que nós somos oprimidos historicamente, por razões que nos foram impostas a partir da nossa materialidade: ser negro e mulher”.

Sem nunca perder o fio aos questionamentos, a activista baiana dispara: “Se nós não observamos quais são os factores que constituem a nossa realidade, como vamos pensar políticas públicas para mulheres negras? Como vamos pensar políticas públicas para as pessoas em situação de subalternidade?”.

Sublinhando que “essas questões são históricas”, a escritora adianta que “o empobrecimento das mulheres negras no Brasil, por exemplo, vem desde a época da colonização”.

A explicação é simples: “Quando nós pensamos que, após a Abolição da Escravatura no Brasil, pessoas negras não receberam políticas de reparação; quando pensamos que mulheres demoraram muitíssimo para poder ter acesso a condições financeiras e económicas, temos de reconhecer como isso influencia de certa forma a maneira como nós vivemos hoje”.

Limpar o ranço colonial, para Portugal aprender com o Brasil

O impacto do passado no presente não é teórico, avisa a baiana, insistindo na dimensão concreta das opressões.

“Porque quando nós estamos vivendo em países que não são a favor de pessoas negras, de mulheres e de minorias, nós não estamos em uma guerra conceitual, nós estamos em uma guerra por sobrevivência, por existência com dignidade. Então, algumas pessoas dizem que as pautas negras são identitárias, ou que as pautas das mulheres são identitárias, sem compreenderem que essas pautas são extremamente materiais”.

Por entender está igualmente o caminho que brasileiros e portugueses podem construir juntos.

 “Eu sinto que há uma grande animosidade, de certa forma, entre portugueses e brasileiros, porque ainda há no Brasil o que nós chamamos de ranço colonial. Ainda há ali uma sensação de superioridade dos portugueses face aos brasileiros por termos sido colonizados”.

Poderá a forte presença da comunidade brasileira em Portugal contribuir para eliminar esse “ranço”?

“Sinto que nós temos muito a ensinar no quesito étnico-racial, porque estamos há muito tempo fazendo isso, lutando por isso no Brasil, e já houve vitórias. Apesar de tudo, temos aí a lei de cotas. Temos aí o Ministério da Igualdade Racial. Temos avançado da maneira que nos é possível”.

Nessa trajectória, Yasmin destaca o protagonismo feminino.

“Lá atrás, houve uma questão muito interessante, das ganhadeiras, mulheres negras que às vezes não eram sequer libertas, e ainda trabalhavam para os seus senhores. Utilizavam a venda de alimentos, e de pequenas coisas como método para financiar a compra da alforria de outros indivíduos negros, de suas famílias e de suas comunidades”.

Séculos depois, a história renova-se com o movimento feminista e anti-racista, nota a escritora. “É muito mais fácil a gente ficar quieta do que falar sobre as coisas como elas são. Mas nós, mulheres negras, saímos desse lugar, e estamos, de certa forma, contribuindo para a compra dessa alforria – que agora é psicológica – das pessoas que fazem parte da nossa comunidade.” Até à libertação final!

Fotografia de Catherine Sant’ Ana, num dos encontros promovidas pelo projecto “Vulva Negra”

Leia mais